Número 185 - Ano 4

São Paulo, quarta-feira, 18 de outubro de 2006 

«A ode cristalina / é a que se faz sem poeta.» (Carlos Drummond de Andrade) *
 


Júlio Castañon Guimarães


Caros amigos,


Nascido em Juiz de Fora (MG), em 1951, o poeta Júlio Castañon Guimarães é doutor em letras e mora no Rio de Janeiro há mais de três décadas. Crítico e também tradutor, Castañon estreou na poesia em 1975 com o livro Vertentes, um trabalho em que revisita suas raízes mineiras, mas com o olho na poesia concreta.

Esse namoro com a vanguarda visual se intensifica no livro seguinte, 17 Peças, de 1983. Em seus trabalhos posteriores são, no total, seis títulos, reunidos este ano no volume Poemas [1975-2005] —, o poeta não produz mais peças de estruturação marcadamente visual. No entanto, mantém traços dessa passagem pelo construtivismo.

Uma característica que salta dos poemas de Castañon — e que pode ser facilmente constatada nos poemas ao lado — é seu uso da poesia como lente de observação de fatos, pessoas e coisas ao redor. Obviamente, não se trata de mera observação, mas de reflexão em torno do que essa lente é capaz de captar.

Praticamente todos os textos da pequena amostra que colhi confirmam esse traço da poesia de Júlio Castañon Guimarães. Somente com um esforço de dedução é que se sente a presença do narrador. Durante todo o tempo, ele se oculta atrás dessa lente que se esforça para parecer objetiva, como um instrumento óptico do qual de pode dizer com precisão o alcance e a distância focal. Mas, sem dúvida, há sempre uma brecha para a "medida maquinaria impalpável de emoção à flor da matéria", como diz o poeta em "Tarde de Domingo". Mas essa maquinaria, ele corrige logo em seguida, gira "numa recusa ao devaneio" e "se articula avessa à dispersão".

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



                      •o•



poesia.net no jornal

Este boletim e o site Alguma Poesia foram objeto de reportagem no jornal O Tempo, de Belo Horizonte, em 05/10/2006. Publicada na seção blogdepapel, a matéria, escrita por Marcelo Miranda, fala de escritores que chegaram ao livro depois de escrever para a web. Desse modo, meu livro de poemas Pássaro de Vidro também é citado. Leia a matéria de O Tempo clicando aqui. (Atenção: a página está no formato PDF. Portanto, você precisa ter em seu computador um programa que leia esse tipo de arquivo.)
 

Recusa ao devaneio

Júlio Castañon Guimarães

 

 

TARDE DE DOMINGO

assim
disposta num terraço
aberto ao tempo
a cadeira se balança
com cuidado e conforto
mas leve indecisão
quanto ao ritmo

não tanto
pelo frágil frêmito
da imagem do mar
seu brilho
de espelho fraturado
sob o sol

mas sobretudo
pela regularidade
do movimento mesmo do mar:
avanço sistemático
e recuo estratégico
a tracejar
uma linha de ameaça
ou simples prenúncio
de perigos mais fundos
— o frio dos abismos
e os restos
que habitam esta baía

não fosse vir
de dentro da casa
essa música
feita de limpidez
e medida
maquinaria impalpável
de emoção à flor da matéria
que numa recusa ao devaneio
se articula avessa à dispersão
para expor
por entre sombras
iluminadas pela razão
todo o seu desalento



HORIZONTE

a janela enquadra
quase ao pé
um jardim
uma faixa de areia
e adiante
um lance de mar
e ainda além
um trecho de terra
que antecipa
uma linha de montanhas

a janela (não) enquadra
o ar maculado
(escórias escárnios)
o estertor dos músculos
acionado pelo trânsito de ruídos
a tensão de ofensas ascos
lacerações (acúmulo
de escombros)

entre o que a janela
e o que não
toda uma vida (oculta)
relances limites
algumas disposições
nesgas de perspectivas
traços de razão

sim o que insistente
degrada o quadro
é tudo tudo
menos
este crespo cansaço e talvez
a música de sua imaginação



NOTURNO À JANELA

certas noites
a névoa invade
tão densa tudo
que impede ver
o outro lado da baía

não apenas
a linha do horizonte
ou o corpo das montanhas
ou mesmo o espaço de mar
e as ilhas interpostas

que toda noite
quase ocultos
já tendem a se tornar
mera hipótese
salvo a brisa
e o que nela há
de memória e suposição

mas sobretudo
os faróis
suas luzes intermitentes
ora pontuações do silêncio
ora suturas de uma arquitetura
sem limites sem traves
volumes insuspeitos opacos
sim um tudo desmesuradamente nada


                    De Matéria e Paisagem (1998)



CICLISTA

curvado sobre a paisagem
pedala os estribilhos da memória

que músculo aciona
a brisa da tarde?

por onde a língua passeia?

o rosto se apoia na coxa esquerda


                    De Inscrições (1992)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2006

Júlio Castañon Guimarães
•  in Poemas [1975-2005]
    7Letras/CosacNaify, Rio/São Paulo, 2006
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* Carlos Drummond de Andrade,
  "Lição", in Corpo (1985)