Número 187 - Ano 4

São Paulo, quarta-feira, 1 de novembro de 2006 

«A flor é sem porquê./Floresce por florescer./Não olha para si mesma./Nem pergunta se alguém a vê.» (AngelusSilesius) *
 


Alessio Brandolini


Caros amigos,


Este é um boletim especial.
Um presente que nos foi generosamente concedido pela poeta e ensaísta Vera Lúcia de Oliveira. Residente na Itália, onde é professora de literatura portuguesa e brasileira, a paulista Vera Lúcia já foi tema deste boletim, na edição n. 40. Poeta multipremiada, ela lançou este ano aqui em São Paulo seu livro mais recente: No Coração da Boca (Escrituras, 2006).

Vera é que produziu este boletim. Ela selecionou e traduziu seis poemas do italiano Alessio Brandolini, um poeta ainda pouco conhecido no Brasil. Também é dela o texto abaixo, que apresenta o autor. Portanto, deixo aqui, em meu nome e em nome dos leitores do poesia.net, nosso sincero agradecimento a Vera Lúcia de Oliveira.


Abraço, e até a próxima.
Carlos Machado


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SOBRE ALESSIO BRANDOLINI


Alessio Brandolini nasceu em 1958, em Frascati, e vive atualmente em Roma, onde se destaca por sua intensa atividade cultural. É um dos mais importantes poetas italianos da atualidade e tem representado o seu país em numerosos festivais internacionais. Estreou na poesia em 1991, na revista Galleria, e recebeu nesse mesmo ano o prestigioso Premio Montale, reservado a livros inéditos.

Em 2002, publicou Divisori orientali, (Manni Editor, Lecce), distinguido com o Premio Alfonso Gatto 2003 – Opera Prima. Em 2004, saiu o livro Poesia della terra (LietoColle, 2004), com prefácio do crítico Mario Santagostini, e em 2005 Il male inconsapevole (Il Ramo d’Oro Editore, Trieste), livro do qual extraímos os poemas aqui traduzidos.

A sua obra poética lhe tem assegurado crescente projeção internacional e vem sendo publicada em várias línguas. É editor e fundador da revista Fili d’Aquilone (www.filidaquilone.it), além de ser colaborador de vários jornais e revistas italianas e estrangeiras.

Alessio Brandolini tem uma poesia concentrada, com versos de grande vigor, em que às vezes poesia e prosa se misturam. Nela, alternam-se e convivem opostas linhas de força, de modo que são freqüentes as notações precisas e concretas do real ao lado de imagens surreais de grande intensidade, em que o dia-a-dia é transfigurado pela percepção do eu lírico. Tais contradições exprimem, além de um mundo ferido e fragmentado, a ambigüidade de sentimentos antitéticos que se chocam na alma humana. As metáforas abundantes são visuais, olfativas, auditivas, enfim sinestésicas, numa concentração de sensações que contagiam as palavras, sempre intensas e emocionadas:

È morto a quindici anni, mio padre
per questo nella scatola dei giochi
ci stava stretto e scalpitava per uscire
.

Morreu com quinze anos, meu pai
por isso na caixa dos brinquedos
estava apertado e batia os pés para sair.

Se a poesia para Alessio é produto do rigor do poeta-artesão, ela é também revelação e epifania, manifestação do mistério, dom gratuito e gnose. Os poemas parecem ser codificados pela própria matéria incandescente, que forja a sua forma, em versos breves ou longos, em que se espraiam as tensões e a busca constante pelo termo exato, que exprima a vida.
 
A sua marcada opção por um registro lírico coloquial, despojado de qualquer retórica, filia-o a uma linha de grandes poetas do século XX, como Umberto Saba, Sandro Penna e Giorgio Caproni, que buscaram uma expressão mais simples e cotidiana e se opuseram ao aulicismo imperante na poesia italiana, de matriz petrarquista.

Outro elemento importante é o projeto ético que parece guiar o percurso poético do autor, o olhar que focaliza os seres despojados e marginalizados, numa sociedade superficial e consumista, que parece não ter paciência nem tempo para os doentes, mendigos, velhos, exilados de todas as guerras, pobres do sul do mundo que batem à porta da rica Europa, feridos no corpo e na alma: Tra le pietre delle case e delle strade ci sono i volti / dei torturati che lanciano un cenno di saluto. (Entre as pedras das casas e das ruas estão os rostos / dos torturados que mandam um gesto de saudação.). Auguramos que Alessio Brancolini possa ser logo “descoberto” também pelos leitores brasileiros.

Os poemas ao lado são do livro Il male inconsapevole.

Agradeço a Roberta Barni pelas boas sugestões que me deu na tradução destes poemas.

Vera Lúcia de Oliveira


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SITES

Para saber mais sobre o poeta Alessio Brandolini, visite o site oficial dele:
http://www.alessiobrandolini.it


Visite também o site da poeta e tradutora Vera Lúcia de Oliveira: http://www.veraluciadeoliveira.it/
Poesia.htm

 

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UMA LUZ NO AQUÁRIO

Dica para quem está em Porto Alegre. O poeta gaúcho Carlos Besen está lançando seu livro Uma Luz no Aquário, vencedor do 4° Prêmio de Cultura Mario Quintana.

Data: 3 de novembro, sexta-feira
Local: 52ª Feira do Livro
           de Porto Alegre
Hora: 19h30

 

Novembro dos vivos

Alessio Brandolini


Tradução de Vera Lúcia de Oliveira


*


E se for a árvore de Judas este amor
pendurado num canto apartado da casa.
As mãos perdidas nos cortes
nas cicatrizes dos beijos
nos pés inquietos, aguardando
percorrer o mesmo idêntico percurso.

Os nossos corpos não nos bastavam
nós os tínhamos trocado entre nós
por acaso ou para derrotar a sorte.
Agora a pele cinzela outras palavras
filtra a luz e aguarda distanciada
outros perfumes, ou os jogos da morte.


Che sia l’albero di Giuda questo amore
appeso in un angolo appartato della casa.
Dalle mani perse nei tagli
nelle cicatrici dei baci
nei piedi irrequieti, in attesa
di ripercorrere lo stesso identico percorso.

I nostri corpi ci stavano stretti
ce li eravamo scambiati
per caso o per sconfiggere la sorte.
Ora la pelle scolpisce altre parole
filtra la luce e attende con distacco
altri profumi, o i giochi della morte.



NOVEMBRO DOS VIVOS

Executado e contudo anda com passo
de dança: vem de um mundo recluso
na boca tem cascas de pão mofado
na mochila uma caixa de leite
negro mesmo antes de ser bebido.

O vento quente de agosto esgotava
os lábios ensangüentados.
Estava feliz naquele dia por isto
mandou saudações aos amigos, mesmo aos
de longe ou que nunca havia conhecido.

Folhas amarelas das mãos de fogo
não o calor que vem
de baixo, da guerra,
dos lagos de petróleo
do grito sem vulto da dor.

Decapitado mas anda, está vivo
e prossegue ereto rumo ao alvo
depois de anos em que tudo dava errado
transtornado pelos estampidos, crucificado
a cara contra o muro do pecado.


NOVEMBRE DEI VIVI

Giustiziato eppure cammina a passo
di danza: viene da un mondo recluso
in bocca ha croste di pane ammuffito
nello zaino un cartone di latte
nero ancor prima d’essere bevuto.

Il vento caldo d’agosto sfibrava
le labbra insanguinate.
Era felice quel giorno per questo
inviò un saluto agli amici, anche quelli
lontani o che non aveva mai conosciuto.

Foglie gialle dalle mani di fuoco
non il calore che arriva
da sotto, dalla guerra
dai laghi di petrolio
dal grido senza volto del dolore.

Decapitato ma cammina, è vivo
e procede dritto verso il bersaglio
dopo anni dove tutto andava storto
turbato dagli scopi, messo in croce
la faccia contro il muro del peccato.

 


O QUE NÃO MEREÇO

Dentro de nós estão os postes de luzes
e as placas que o frio polar abateu
estendes tua mão de gancho e a agarro
mal me erguendo na ponta dos pés.

Mais para o alto encontro a areia e a alegre
fila dos rastros das aves: a escritura
insone, vibrante no rubro das rosas
nas veias que estouram na testa
nos sinais do abandono, dos espinhos
e por baixo os cabos gélidos porque uso o mal
como um picão, um bate-estacas
vou fundo na carne (na minha, na nossa)
arrancando fígado, pulmões, coração.

          O que resta dos olhos.


QUELLO CHE NON MERITO

Dentro di noi ci sono i pali delle luci
e i segnali abbattuti dal freddo polare
mi tendi la mano a uncino e io l’afferro
mi sollevo appena sulla punta dei piedi.

Più in alto trovo la sabbia e l’allegra
fila delle orme degli uccelli: la scrittura
insonne, vibrante nel rosso delle rose
nelle vene che scoppiano sulla fronte
nei segni dell’abbandono, delle spine
e sotto i cavi ghiacci perché uso il male
come un piccone, un martello pneumatico
vado a fondo nella carne (la mia, la nostra)
porto via il fegato, i polmoni, il cuore.

          Quello che resta degli occhi.


 

*

Aferram os cabelos as colinas aqui embaixo
os vinhedos te fazem sentir mais só,
mas de uma solidão sadia e sincera.
A balaustrada que contorna o terraço
tem o focinho retorcido do animal surrado
para que retome a costumeira mansidão.

O sono não engana
as horas de espera e o vento
da Úmbria desmorona nos lábios.
Ato-me ao jardim
interno das casas baixas
àquela árvore de louro
de pequeninas flores brancas
as folhas lisas e perfumadas.

Caminho pelas ruelas de Orvieto.
Um mar de pessoas invadiu
Roma para os funerais do papa.
É sexta-feira, 8 de abril, e está frio.


Afferrano i capelli le coline qui sotto
i vigneti ti fanno sentire più solo
ma d’usa sana e schietta solitudine.
La ringhiera che circonda il terrazzo
ha il muso torto dell’animale bastonato
per ricondurlo all’ordinaria mansuetudine.

Il sonno non inganna
le ore d’attesa e il vento
umbro frana sulle labbra.
Mi allaccio al giardino
interno delle casa basse
a quell’albero d’alloro
dai piccoli fiori bianchi
le foglie lisce e profumate.

Cammino per i vicoli d’Orvieto.
Una marea di persone ha invaso
Roma per i funerali del papa.
È venerdì, 8 aprile e fa freddo.


*

Entrecho de sombras
sem início nem fim.
Respirar e projetar-se
para além do embate.
Do amor passamos
para a boca do ódio
do afastamento absurdo.

Resta um rastro
que tu não vês
assim com o tempo
desfaz-se a aliança.

Avançam as ruas, por isto tropeço na viagem
feito cogumelos crescem em mim em hera que
                                             [ envolve
e não aquece, arrancam os músculos e esvaziam
                                             [ as veias.
Queria admirar-te (no escuro) sem pôr fogo no
                                             [ mundo.


Intreccio d’ombra
senza testa né coda.
Fiatare e proiettarsi
al di là dello scontro.
Dall’amore si passa
nella bocca dell’odio
dell’assurdo distacco.

Resta una traccia
che tu non vedi
così con il tempo
l’intesa si sfalda.

Assalgono le strade per questo inciampo nel
                                             [ viaggio
come funghi mi crescono dentro a edera che
                                             [ avvolge
e non scalda, strappano i muscoli e svuotano le
                                             [ vene.
Volevo ammirarti (al buio) senza dar fuoco al
                                             [ mondo.
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2006

Alessio Brandolini
•  In Il Male Inconsapevole
    Tradução de Vera Lúcia de Oliveira
    Il Ramo d'Oro Editore, Trieste, 2005
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* Angelus Silesius (1624-1677), alemão,
  in O Peregrino Querubínico