Número 189 - Ano 4

São Paulo, quarta-feira, 15 de novembro de 2006 

«Ó palavras desmoralizadas, entretanto salvas, ditas de novo.» (Carlos Drummond de Andrade) *
 


Nuno Garcia Lopes


Caros amigos,


Poeta, jornalista e educador, o português Nuno Garcia Lopes nasceu na milenária cidade de Tomar, em 1965. Depois de morar em Lisboa e em outras cidades, regressou definitivamente para sua região natal, onde criou, com um irmão e outros parceiros, o grupo O Contador de Histórias. Trata-se de um misto de companhia teatral, educativa e poética que se apresenta em escolas e centros culturais em diversas regiões de Portugal. Além de despertar em crianças e jovens o gosto pela literatura, O Contador de Histórias treina e orienta pais e professores.

Por causa dessa atividade, Nuno Garcia Lopes também escreve ficção para crianças. Tive a oportunidade de ler dois de seus títulos desse gênero: O Livro de Pentear Macacos e O Livro de Dar Corda aos Sapatos. Deliciosos, ambos levam a criança a brincar com o sentido figurado de expressões jocosas do dia-a-dia, como "pentear macacos".

Nuno Garcia Lopes já publicou três coletâneas de poesia: Poemas de Constância e Desafio (1995), O Sonolento Hábito das Casas (1999) e Este Pão Não É de Trigo, É de Papoilas (2001).  Todos esses livros saíram pela editora O Contador de Histórias, ligada ao grupo.

Garcia Lopes revela-se um amante e cronista de Tomar, sua cidade natal.
A intimidade com ruas, praças e edifícios impregnados de história é que levou o poeta a escrever Este Pão Não É de Trigo, É de Papoilas. Esse livro é dedicado "a Tomar, cidade mágica que não cabe em si". Dele extraí a maior parte dos poemas ao lado.

Nesses poemas vemos, em dois momentos, o poeta extasiado na varanda fronteira ao Claustro de Santa Bárbara. "Foi feito p'ra voar este lugar". Vemo-lo também a pensar em anjos num coro de igreja e a flagrar um "tropel nocturno" de palavras na biblioteca de Tomar, outro prédio antigo, conforme se pode depreender. Mas Tomar é também um lugar turístico.
Lá, num café, o poeta reflete sobre a cena protagonizada por um rapaz de piercing no nariz e sua namorada de miniblusa e cabelos raspados. Quem lê esse livro dedicado à cidade do poeta, sente-se levado pela mão a passear pelas vias e prédios antiqüíssimos do lugar.

Para concluir a amostra de poemas de Nuno Garcia Lopes, transcrevo ainda mais um texto extraído de Poemas de Constância e Desafio. Aqui, com a força da lírica portuguesa, que sabe extrair o mel e o fel das palavras mais comezinhas, o poeta desfralda as bandeiras da paixão e escreve: "soçobro ante a constância da maré, as vagas / altas, o vago sopro dos teus lábios / a percorrer-me doidamente a flor da pele".

Atenção: como sempre faço ao transcrever textos portugueses, mantive nos poemas a grafia original.

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Vocês certamente devem estar curiosos para saber como fui descobrir o poeta Nuno Garcia Lopes. Não o descobri: ele é que fez contato comigo, através do site Alguma Poesia. Inicialmente, increveu-se para receber os boletins. Depois, mandou-me um e-mail para comentar — já contei isso aqui — que seu pai, lá em Portugal, recitava versos de Ascenso Ferreira ("Hora de comer — comer" etc.) incluídos no boletim 166. Daí passamos a trocar figurinhas. Ele me enviou alguns livros dele, mandei-lhe o meu.

Para conhecer melhor o trabalho de Nuno Garcia Lopes e de seu grupo, O Contador de Histórias, visite o site deles.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



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365 NOITES DE POESIA

Surge um novo projeto de divulgação de poesia via e-mail e site. Trata-se de 365 Noites de Poesia, da brasileira Natalia Emery Trindade, residente na suíça. Natália criou um calendário completo com poemas todos os dias. No site, ela diz que o poesia.net foi uma de suas inspirações. Visite o projeto no endereço www.artemery.net [desativado]. Aproveite e veja, no mesmo site, os trabalhos de Natália, que também é artista plástica.


 

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1ª MOSTRA DE LITERATURA
DIADEMA, SP DE 17/11 a 30/11

Começa esta semana a 1ª Mostra Internacional de Literatura Poesia & Prosa. Superevento literário,  realiza-se de 17 a 30 de novembro em Diadema, com leituras e outras atividades artísticas, além do diálogo do público com os autores. A mostra é iniciativa da Secretaria Municipal de Cultura de Diadema, em parceria com o Grupo Palavreiros.
 

Trigo e papoilas

Nuno Garcia Lopes

 

 

NA VARANDA FRONTEIRA AO CLAUSTRO DE S. BÁRBARA

os homens que edificaram o templo,
se homens terão sido e não alados enviados
                               [ de deus,
trabalhavam sem rede e só o acaso de
                               [ conhecerem leonardo
lhes terá sugerido a prática montagem de
                               [ andaimes metálicos.
e todavia conceberam do seu próprio sémen
Ia fameuse fenêtre manueline
de que falam com fascínio os turistas franceses
que agora a envolvem.
alheios à universalidade desta janela invertida,
feita para olhar de fora para dentro e entrever
                              [ a alma,
os anjos afadigam-se no telhado fronteiro
que hão de impermeabilizar p'ra que nenhum
fluido demoníaco ouse atravessar tão sagrados
                              [ muros.



AINDA NA VARANDA FRONTEIRA AO CLAUSTRO DE S. BÁRBARA

apetece voar. correr o risco de
abrir os braços como asas sobre este pátio
                             [ empedrado.
foi feito p'ra voar este lugar
lê-se na posição erecta das colunas apontando ao
                             [ céu
e no movimento suspenso das gárgulas.
quantos daqueles que povoaram esta casa
terão tentado aqui o voo em direcção a deus?
o seu nome está inscrito no raiado das pedras
e perdura como um eco
nas orações esquecidas pelos claustros.



CORO CANTO FIRME NA IGREJA
DE SANTA MARIA

se anjos houvera cantariam deste modo,
as vozes ecoando nas paredes límpidas da alma.
matizes de água, vento de folhas na música do
                             [ outono,
penetram indeléveis pelos poros da pedra.
ousasse alguém quebrar este silêncio
e o templo tombaria sobre os tímpanos.
 


NA SALA DE LEITURA DA BIBLIOTECA DE TOMAR

um silêncio de papel, nas paredes ressoa ainda
o eco longínquo de milhões de palavras
que passaram a noite em desenfreada orgia.
há um leitor atento nos periódicos, perscruta
linha a linha para decifrar o entrelinhado,
mas no sereno do seu rosto vê-se que não se
                            [ apercebeu
deste tropel nocturno. se procurasse
os livros de poesia teria testemunhado
a existência de palavras suspensas
e espaços brancos que a hora matinal não
                            [ permitira
ainda preencher, e no recanto de uma estante
aconchegadas aos pés de camões,
vénus e amor repousam descansadas,
esquecidas das horas e do regresso à página onde habitam.



CARDUMES DE BARBOS JUNTO
AO BELA VISTA

quase quietas, só os barbos movem estas águas
em hiperbólicos cardumes.
no calor da tarde, também o ar está quieto,
mas corta-o, repentino, o inaudível silvo
de um naco de pão. é um splash rápido
ao tocar a água, e ei-los que acorrem como
um bando de famintos de fama a despirem
a alma nos aquários concursivos
perante a multidão que espreita do sofá.
                                  [ coitados,
tão inconscientes de si mesmos que nem vêem
que só comem pão do velho enquanto os
mirones os vão pescando nas fotografias.

 

CAFÉ PARAÍSO ENTRE A TARDE
E A NOITE

é isto o paraíso: enquanto delicadamente as
                                 [ senhoras
tomam chá e cumprem a secular tarefa
da transmissão dos saberes mais comezinhos,
na mesa ao lado um rapaz de longos cabelos
e anelado brinco no nariz palpa com decisão
o avesso da camisola curta
com que a miúda calva esconde os seios.
nos longuíssimos espelhos se reflectem,
                                [ polaroids pardacentas
comovidas pelo fumo e pelo terno encanto da
                                [ árvore da ciência.


            De Este Pão Não É de Trigo, É de Papoilas (2001)

 

AS BANDEIRAS DESFRALDADAS
COMO PÉTALAS


uma a uma, as bandeiras desfraldadas como
                                         [ pétalas
ou acaso loucos símbolos a cruzar a manhã.
coloca a mão no meu peito, sente,
demora o tempo que necessário for
para entenderes o sal que trago nos olhos.
os navios, os espectros de navios para lá das
                                        [ bandeiras,
se julgares o meu nome apenas uma linha
no imensurável molho do cordame.
noites a fio, assim, até a inocência morrer
sob os olhos vadios da lua nova.
acaso me socorres nos teus braços,
soçobro ante a constância da maré, as vagas
altas, o vago sopro dos teus lábios
a percorrer-me doidamente a flor da pele.


            De Poemas de Constância e Desafio (1995)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2006

Nuno Garcia Lopes
•  Todos os seis primeiros poemas de:
    Este Pão Não É de Trigo, É de Papoilas
   
O Contador de Histórias, Tomar,
    Portugal, 2001
•  "As bandeiras desfraldadas..." de:
    Poemas de Constância e Desafio
   
O Contador de Histórias, Tomar,
    Portugal, 1995
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* Carlos Drummond de Andrade,
"Canto ao Homem do Povo Charlie Chaplin",
in A Rosa do Povo (1945)