Eugénio de Andrade
Caros amigos,
Pela terceira vez em quatro anos, tenho o prazer de ceder a um amigo a
elaboração deste semanário. Desta vez, o boletim foi organizado pela jornalista
e poeta paulista Luíza Mendes Furia, tema da
edição n. 168. Admiradora do
poeta português Eugénio de Andrade (nome literário de José Fontinhas), Luíza fez
a seleção de textos ao lado e escreveu a apresentação a seguir. Registro aqui o
meu agradecimento a ela.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
Um dos grandes poetas portugueses contemporâneos,
Eugénio de Andrade (1923-2005) merece ser mais bem conhecido no Brasil. Escritor
de alta voltagem lírica, o Prêmio Camões de 2001 nasceu em 19 de janeiro de 1923
em Póvoa do Atalaia (Fundão) e viveu durante muito tempo no Porto, onde morreu,
em 13 de junho do ano passado, ironicamente no 117º aniversário de nascimento de
outro grande das letras portugueses, ninguém menos que Fernando Pessoa, a quem
dedica a reunião de seus primeiros poemas, publicada em 1977. Parece ser para
ele, aliás, o poema F.P., do livro Escrita da Terra e Outros Epitáfios
(1949-1978): “De rosto em rosto a ti mesmo procuras/ e só encontras a noite por
onde entraste/ finalmente nu – a loucura acesa e fria/ iluminando o nada que
tanto procuraste.”
Traduzido em diversos idiomas, tradutor de Safo e García Lorca, detentor de
vários outros prêmios importantes, publicou o primeiro livro, Adolescente,
em 1942, depois renegado, aos quais se seguiram, entre outros, As Mãos e os
Frutos
(48), Até Amanhã (56), Coração do Dia (58), Ostinato Rigore
(64),
Escrita da Terra (74), Matéria Solar (80), Rente ao Dizer
(92), O Sal da Língua (95) e
Os Sulcos da Sede (2001). Publicou também obras de prosa, como Os
Afluentes do Silêncio (68) e À Sombra da Memória (93), e literatura
infantil.
Numerosos ensaios dão conta da produção de Eugénio, assinados por grandes nomes
da intelectualidade portuguesa, como Vitorino Nemésio, João Gaspar Simões,
António José Saraiva, Eduardo Lourenço e Jorge de Sena.
“O segredo maior da poesia de Eugénio de Andrade – do seu processo, da sua
temática e da qualidade da sua estesia – consiste numa maneira muito sua de
transmitir dada vivência da duração e do tempo”, escreveu Joel Serrão no ensaio
"Cronos, Eros e Tanatos nas Palavras do Poeta" (*), de 1970. É desse autor
também a observação de que na poesia de Eugénio “direta ou indiretamente,
imediata ou mediatamente, o ato poético prende-se de raiz ao espasmo erótico, o
qual assume quase sempre, senão sempre, caráter andrógino”. “O amor (a miragem?)
que esta poesia persegue, numa sintonização de todo o ser do poeta, está
presente em todos os versos que escreveu”, assinala.
Já Óscar Lopes chama a atenção para a dimensão épica de Eugénio. Afirma que ao
contrário da maioria dos poetas atuais, ele “não nos oferece predominantemente,
na sua obra, a face da privação ou carência”. Ao comentar Mar de Setembro,
livro de 1961, no ensaio "Morte e Ressurreição dos Mitos na Poesia de Eugénio de
Andrade" (*), escreve que “se verifica bem, não tanto a mágoa, mais ou menos
agridoce, de um paraíso perdido, como a certeza de um paraíso recuperado, à
medida humana, sobre a terra”. E conclui: “Usemos, a seu respeito, o nome
aparentemente arriscado de poesia épica. Poesia de presença, logo poesia épica.
O épico desta poesia consiste em instaurar qualquer coisa como a magia de Orfeu
ou o mito homérico, mas a outro nível, o nível moderno em que tais coisas se não
degradam em alegoria da irracionalidade, e, pelo contrário, se depuram num sonho
possível e, mais do que possível, realizado à justa medida do possível.”
Difícil fazer uma breve seleção que abranja toda a riqueza do universo do
escritor, mas aqui vão alguns poemas nos quais se pode conferir as
características apontadas pelos ensaístas. Sem dúvida, deixarão um gosto de
“quero mais”.
Quem os apreciou deve visitar o site da fundação que leva seu nome. Embora seja
atualizado só de vez em quando, nele se pode ler vários outros trabalhos do
autor. O endereço é: www.fundacaoeugenioandrade.pt
[Nota posterior: A
Fundação Eugénio de Andrade foi extinta em setembro de 2011.]
Maria Luíza Mendes Furia
_______
(*) Estes e outros textos estão em 21 Ensaios sobre Eugénio de Andrade
(Porto, Editorial Inova, s/data).
•o•
Veja outros poemas de Eugénio de Andrade no boletim:
-
poesia.net 286
•o•
VISTA PARCIAL DA NOITE
Uma dica para o pessoal de Curitiba: no próximo dia 8/12, sexta-feira, o
escritor Luiz Ruffato está lançando aí seu novo romance, Vista Parcial da
Noite. Nesse livro, Ruffato dá continuidade às histórias da série "Inferno
Provisório", iniciadas nos volumes Mamma, Son Tanto Felice e O Mundo
Inimigo. Anote os detalhes:
Local: Livrarias Curitiba Megastore
- Shopping Curitiba
Rua Brigadeiro Franco, 2300,
piso L1, loja 126 - Batel - Curitiba
Data e hora: 8/12/2006, 19h00.
|
Amoras bravas
|
Eugénio de Andrade |
|
AS PALAVRAS
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam;
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
De Coração do Dia (1958)
LITANIA
O teu rosto inclinado pelo vento;
a feroz brancura dos teus dentes;
as mãos, de certo modo, irresponsáveis,
e contudo sombrias, e contudo transparentes;
o triunfo cruel das tuas pernas,
colunas em repouso se anoitece;
o peito raso, claro, feito de água;
a boca sossegada onde apetece
navegar ou cantar, ou simplesmente ser
a cor de um fruto, o peso de uma flor;
as palavras mordendo a solidão,
atravessadas de alegria e de terror;
são a grande razão, a única razão.
De Até Amanhã (1956)
O AMOR
Estou a amar-te como o frio
corta os lábios.
A arrancar a raiz
ao mais diminuto dos rios.
A inundar-te de facas,
de saliva esperma lume.
Estou a rodear de agulhas
a boca mais vulnerável.
A marcar sobre os teus flancos
itinerários da espuma.
Assim é o amor: mortal e navegável.
De Obscuro Domínio (1971)
TRÊS OU QUATRO SÍLABAS
Neste país
onde se morre de coração inacabado
deixarei apenas três ou quatro sílabas
de cal viva junto à água.
É só o que me resta
e o bosque inocente do teu peito
meu tresloucado e doce e frágil
pássaro das areias apagadas.
Que estranho ofício o meu
procurar rente ao chão
uma folha entre a poeira e o sono
húmida ainda do primeiro sol.
De Véspera da Água (1973)
AS AMORAS
O meu país sabe às amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.
De O Outro Nome da Terra (1988)
###
Que fizeste das palavras?
Que contas darás tu dessas vogais
de um azul tão apaziguado?
E das consoantes, que lhes dirás,
ardendo entre o fulgor
das laranjas e o sol dos cavalos?
Que lhes dirás, quando
te perguntarem pelas minúsculas
sementes que te confiaram?
De Matéria Solar (1980)
PÓVOA DE ATALAIA
O dia cresceu tanto que não tarda
que a sombra nos dê pelos joelhos,
as mães tecem o riso das crianças,
pelo balcão entornam os cabelos.
LISBOA
Esta névoa sobre a cidade, o rio,
as gaivotas doutros dias, barcos, gente
apressada ou com o tempo todo para perder,
esta névoa onde começa a luz de Lisboa,
rosa e limão sobre o Tejo, esta luz de água,
nada mais quero de degrau em degrau.
De Escrita da Terra (1974)
###
Às vezes entra-se em casa com o outono
preso por um fio,
dorme-se então melhor,
mesmo o silêncio acabou por se calar.
Talvez pela noite fora ouça cantar o galo,
e um rapazito suba as escadas
com um cravo
e notícias de minha mãe.
Nunca fui tão amargo, digo-lhe então,
nunca à minha sombra a luz
morreu tão jovem
e tão turva.
Parece que vai nevar.
XLIX
As casas entram pela água,
a porta do pátio aberta à estrela
matutina, em flor
os espinheiros,
nas janelas apenas a cintilação
juvenil do mar antigo,
esse que viu ainda as naves
do mais errante de quantos marinheiros
perderam norte e razão
a contemplar a reflectida estrela
da manhã:
só na morte não somos estrangeiros.
De Branco no Branco (1984)
|