Dante Alighieri
Caros,
Os americanos usam o termo founding fathers (pais-fundadores) para
se referir a figuras como George Washington, Thomas Jefferson e Abraham Lincoln,
que se destacam na formação de seu país. Talvez seja justo usar essa mesma
expressão para fazer referência a escritores da magnitude de Dante Alighieri
(1265-1321);
Luís Vaz de Camões (c. 1524-1580);
Miguel de Cervantes (1547-1616); e
William Shakespeare (1564-1616). Eles são pais-fundadores de seus idiomas.
Foram os primeiros a provar, em obras monumentais, a riqueza e a viabilidade
expressiva do italiano, do português, do espanhol e do inglês. Este boletim é
dedicado a um desses pais-fundadores da palavra, o pater linguae Dante
Alighieri (1265-1321).
Numa época em que só tinha valor o que era escrito em latim, Dante escreveu
La Divina Commedia, imenso poema que se tornou a base da língua italiana.
Aos 18 anos, Dante lança o Dolce Stil Nuovo (Doce Estilo Novo), junto com
outros poetas como Guido Calvalcanti. Também com 18 anos, ele vê pela primeira
vez Beatrice Portinari, que teria então 9 anos de idade. Foi paixão à primeira
vista. Há quem acredite que Dante a viu uma única vez. Beatriz morreu em 1290.
Sem dúvida, vocês estão cientes de que o conceito de amor, nos tempos de Dante,
não era o mesmo que temos desde o romantismo. Há nesse amor dantesco uma
profunda dose de platonismo. A Divina Comédia descreve uma viagem do
poeta com passagens no Inferno, no Purgatório e no Paraíso. O objetivo de tal
expedição é — não podia ser outro — reencontrar a amada Beatriz, subtraída "tão
cedo desta vida descontente", como diria Camões. Nessa temporada no inferno,
Dante encontra o latino Virgílio, poeta de sua admiração, que lhe serve de guia
na terrível incursão.
Em geral, a parte mais valorizada pelos leitores modernos é o Inferno. Vale
notar que Dante escreveu a Commedia no dialeto toscano, que hoje é
conhecido como língua italiana. Além da Commedia, o poeta compôs Vita
Nuova (Vida Nova), livro que contém sonetos nos quais ele descreve seu
amor por Beatriz. Há também
Le Rime (As Rimas), obra marcada por poemas líricos, pelo amor idealizado, a
ciência e a filosofia.
Neste boletim, incluo o conhecidíssimo soneto "Tanto gentile...", de Vita
Nuova, e parte inicial do primeiro canto do Inferno, ambos traduzidos por
Augusto de Campos. Incluo ainda "Vede perfettamente...", outro soneto de
Vita Nuova, traduzido pela poeta mineira
Henriqueta Lisboa.
Não posso deixar de citar que uma obra fundamental como a de Dante tem várias
outras traduções para o português, tanto aqui como em Portugal. No Brasil, vale
lembrar, entre outras, a versão do poeta carioca
Dante Milano
(cantos V, XXV e XXXIII do Inferno) e a de Augusto de Campos, que também
traduziu vários cantos do inferno.
Quero agradecer ao poeta e ensaísta Eduardo Sterzi, especialista em Dante, a
indicação da tradução de Henriqueta Lisboa.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
DANTE E OS BRASILEIROS
O verso de abertura do Inferno
— "Nel mezzo del cammin di nostra vita" — vem servindo de inspiração a poetas do
mundo inteiro ao longo dos seis séculos que nos separam de Dante. No Brasil, os
exemplos mais ilustres são o soneto "Nel mezzo del cammin", do parnasiano Olavo
Bilac ("Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada"...) e o célebre "No meio do
caminho", de
Carlos
Drummond de Andrade ("No meio do caminho tinha
uma pedra"), escrito nos anos 1920. Drummond retornaria à companhia de Dante no
poema "A Máquina do Mundo", publicado em 1951. Nesse texto repete-se a idéia da
pedra e do caminho. A presença dantiana está na própria forma do poema, plasmado
em tercetos decassilábicos, como a Commedia. Esses ingredientes também
estão em A Máquina do Mundo Repensada (2000), livro de
Haroldo de Campos.
•o•
poesia.net, do Oiapoque ao Chuí — e mais
além
O poesia.net chega ao último mês do ano com alguns resultados
estimulantes. A distribuição semanal do boletim já passa das 2 mil cópias
diretas, com leitores em todos os Estados brasileiros. Naturalmente, São Paulo
segue à frente com mais de 600 leitores cadastrados. Em seguida, vêm Bahia
(268), Rio de Janeiro (118) e Minas Gerais (76). Esses números foram apurados no
dia 3/12 e envolvem apenas os leitores que declaram onde moram (muitos se
inscrevem e, com receio, dão somente o endereço de e-mail e um apelido.
Vale notar que há muitos leitores em cidades do interior. O boletim é lido em
Açailândia (MA) e em Pradópolis (SP); em Afogados da Ingazeira (PE) e Arapongas
(PR). Também há leitores em Ananindeua (PA), Andrelândia (MG), Eunápolis (BA),
Gujará Mirim (RO); Barbalho (CE) e Brejinho de Nazaré (TO). Em Catolé do Rocha
(PB) e em Paty do Alferes (RJ). Em Serra Talhada (PE) e em Volta Redonda (RJ).
Em Novo Hamburgo (RS) e em Nova Friburgo (RJ). E, para não perder o jogo de
palavras, na minha Muritiba (BA) e em Curitiba (PR).
Há também leitores fora do Brasil: em Portugal, Argentina, França, Itália,
Estados Unidos etc., e até na Suíça e na Suécia. Quanto aos leitores na
internet, o site Alguma Poesia, que abriga o boletim, recebeu a média de 687
visitantes diários.
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Nel mezzo del
cammin
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Dante Alighieri |
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INFERNO
CANTO I (trecho inicial)
No meio do caminho desta vida
me vi perdido numa selva escura,
solitário, sem sol e sem saída.
Ah, como armar no ar uma figura
desta selva selvagem, dura, forte,
que, só de eu a pensar, me desfigura?
É quase tão amargo como a morte;
mas para expor o bem que encontrei,
outros dados darei da minha sorte.
Não me
recordo ao certo como entrei,
tomado de uma sonolência estranha,
quando a vera vereda abandonei.
Sei que cheguei ao pé de uma montanha,
lá onde aquele vale se extinguia,
que me deixara em solidão tamanha,
e vi que o ombro do monte aparecia
vestido já dos raios do planeta
que a toda gente pela estrada guia.
Então a angústia se calou, secreta,
lá no lago do peito onde imergira
a noite que tomou minha alma inquieta;
e como náufrago, depois que aspira
o ar, abraçado à areia, redivivo,
vira-se ao mar e longamente mira,
o meu ânimo, ainda fugitivo,
voltou a contemplar aquele espaço
que nunca ultrapassou um homem vivo.
(...)
Tradução: Augusto de Campos
INFERNO
Dal CANTO I
Nel mezzo del cammin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura
ché la diritta via era smarrita.
Ah quanto a dir qual era è cosa dura
esta selva selvaggia e aspra e forte
che nel pensier rinova la paura!
Tant'è amara che poco è più morte;
ma per trattar del ben ch'i' vi trovai,
dirò de l'altre cose ch'i' v'ho scorte.
Io non so ben ridir com'i' v'intrai,
tant'era pien di sonno a quel punto
che la verace via abbandonai.
Ma poi ch'i' fui al piè d'un colle giunto,
là dove terminava quella valle
che m'avea di paura il cor compunto,
guardai in alto, e vidi le sue spalle
vestite già de' raggi del pianeta
che mena dritto altrui per ogne calle.
Allor fu la paura un poco queta
che nel lago del cor m'era durata
la notte ch'i' passai con tanta pieta.
E come quei che con lena affannata
uscito fuor del pelago a la riva
si volge a l'acqua perigliosa e guata,
così l'animo mio, ch'ancor fuggiva,
si volse a retro a rimirar lo passo
che non lasciò già mai persona viva.
(...)
Inferno (recorte), Hyeronimus Bosch (1450-1516), pintor
flamengo
[É TÃO GENTIL E TÃO HONESTO O AR]
É tão gentil e tão honesto o ar
de minha Dama, quando alguém saúda,
que toda boca vai ficando muda
e os olhos não se afoitam de a fitar.
Ela assim vai sentindo-se louvar
na piedosa humildade em que se escuda,
qual fosse um anjo que dos céus se muda
para uma prova dos milagres dar.
Tão afável se mostra a quem a mira
que o olhar infunde ao coração dulçores
que só não sente quem jamais olhou-a.
E quando fala, dos seus lábios voa
Uma aura suave, trescalando amores,
que dentro d'alma vai dizer: "Suspira!"
Tradução: Augusto de Campos
[TANTO GENTILE E TANTO ONESTA PARE]
Tanto gentile e tanto onesta pare
la donna mia, quand'ella altrui saluta,
ch'ogne lingua deven tremando muta,
e gli occhi no l'ardiscon di guardare.
Ella si va, sentendosi laudare,
benignamente e d'umiltà vestuta;
e par che sia una cosa venuta
dal cielo in terra a miracol mostrare.
Mostrasi sì piacente a chi la mira,
che dà per li occhi una dolcezza al core,
che 'ntender nolla può chi nolla prova.
E par che de la sua labbia si mova
un spirito soave pien d'amore,
che va dicendo a l'anima: Sospira.
Dante e Beatriz, Marie Spartali Stillman
(1844-1927), pintora inglesa
[VÊ-SE DENTRO DO CÉU PRODIGAMENTE]
Vê-se dentro do céu prodigamente
quem minha amada entre outras damas veja.
E toda aquela que a seu lado esteja
rende graças a Deus por ser clemente.
Tanta virtude tem sua beleza
que inveja acaso às outras não consente,
por isso as tem vestida simplesmente
de confiança, de amor, de gentileza.
Tudo se faz humilde em torno dela;
por ser sua visão assim tão bela
às que a cercam também chega o louvor.
Pela atitude mostra-se tão mansa
que ninguém pode tê-la na lembrança
que não suspire, no íntimo, de amor.
Tradução: Henriqueta Lisboa
[VEDE
PERFETTAMENTE ONNE SALUTE]
Vede perfettamente onne salute
chi la mia donna tra le donne vede;
quelle che vanno con lei son tenute
di bella grazia a Dio render merzede.
E sua bieltate è di tanta vertute,
che nulla invidia a l'altre ne procede,
anzi le face andar seco vestute
di gentilezza, d'amore e di fede.
La vista sua fa onne cosa umile;
e non fa sola sé parer piacente,
ma ciascuna per lei riceve onore.
Ed è ne li atti suoi tanto gentile,
che nessun la si può recare a mente,
che non sospiri in dolcezza d'amore.
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