Número 194 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 20 de dezembro de 2006 

«Nenhum lugar é onde estamos./ A vida é para passar.» (Antonio Brasileiro) *
 


Carlos Drummond de Andrade, em
retrato pintado por Candido Portinari


Caros,


Este é o último boletim do ano. Também em janeiro, como ocorre desde 2002, o poesia.net não circula. Inicio com esta nota burocrática porque, nos anos anteriores, coloquei um aviso (como agora) no final desta coluna. Não bastou. Muita gente me enviou e-mail estranhando a ausência do boletim. Feliz 2007 para todos.

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Embora o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) seja, por assim dizer, o patrono deste boletim e do site Alguma Poesia, ele nunca havia sido objeto (direto) de uma edição do poesia.net. Essa não-inclusão do autor de Claro Enigma é fácil de explicar. O poesia.net é, na verdade, a continuação de outro boletim
(40 edições de puro Drummond), produzido entre setembro e dezembro de 2002, para comemorar o centenário do poeta.

Agora, voltamos à seara drummondiana. Para isso escolhi um único poema, "Caso do Vestido", um dos meus preferidos. Em versos de sete sílabas, bem ao gosto da tradição popular, esse caso realista, doído e fantástico, mostra bem o Drummond fincado na mais funda raiz brasileira e, ao mesmo tempo, aberto para o que há de universal nas pequenas tragédias humanas.

O "Caso do Vestido" foi adaptado para o cinema pelo cineasta Paulo Thiago, também diretor de Policarpo Quaresma. O filme se chama O Vestido. Paulo Thiago filmou ainda um documentário sobre Drummond chamado Poeta de Sete Faces, disponível em DVD.

No início do poema, é fácil perceber que a mãe se esquiva a esclarecer por que aquele vestido está lá, pendurado num prego da parede. Ela apenas indica, vagamente: "é o vestido / de uma dona que passou". Curiosas, as filhas insistem. A mãe se dispõe a contar a história. À medida que vai contando, ela se envolve com a narrativa. No trecho que começa em "Chorou no prato de carne", ela já fala de maneira ofegante: as orações, curtas, são apenas verbos de ação em seqüência rápida: "bebeu, gritou, me bateu, / me deixou com vosso berço, / foi para a dona de longe".

Em seguida, chega o momento mais excruciante. "Então vosso pai, irado, / me pediu que lhe pedisse, / a essa dona tão perversa, / que tivesse paciência / e fosse dormir com ele..." Atenção para as reticências. É como um suspiro. Um momento que dói até quando apenas lembrado.

A linguagem cerimonial, usada na intimidade entre mãe e filhas, sugere um ambiente arcaico, patriarcal. Desde os primeiros versos, percebe-se que a presença do pai impõe medo. Os versos de sete sílabas — os mesmos usados na maioria dos romances de cordel — reforçam a idéia de uma história antiga. 

Ao lembrar, a mãe vai às lágrimas e, mais uma vez, tenta fugir do assunto, anunciando que o pai se aproxima. Com essas interrupções, Drummond aumenta o suspense da narrativa. Ao mesmo tempo, mostra o quanto é penoso para a mulher continuar aquele relato. Com efeito, o pior ainda está por vir. Ela vai, pede à dona de longe que "aplaque a vontade" do marido.

"Eu fiz meu pelo-sinal, / me curvei... disse que sim." Outras reticências. Outro momento terrível. Aqui também se revela a religiosidade popular de matriz católica. Depois disso, o desespero: "Saí pensando na morte, / mas a morte não chegava". O pai "sumiu no mundo" atrás da "mulher do demo". À esposa abandonada, além do turbilhão de sentimentos, resta a difícil condição de mulher sem marido numa sociedade patriarcal. Mas ela tem de fazer das tripas coração e tocar em frente. Era preciso sobreviver e criar as filhas, ainda em idade de berço: "perdi meus dentes, meu olhos, / costurei, lavei, fiz doce," (...) "minha corrente de ouro / pagou conta de farmácia".

(Já li certa vez — não lembro o autor — uma sugestão de que o verso "passei ponte, passei rio" contém a idéia de "passei fome, passei frio". Mais uma astúcia drummondiana.)

Mas, como reza o ditado popular, o mundo dá muitas voltas. Ou, no paradoxo drummondiano, "o mundo é grande e pequeno".  A regra patriarcal também se abateu sobre a "dona ruim". O homem, antes apaixonado, enjoou dela, que um dia reaparece, arrependida, pedindo perdão à mãe das meninas. Como sinal da mudança, entrega o vestido que usava quando submeteu a rival à mais dura humilhação.

Curiosamente, o relato que a dona de longe faz de seu próprio sofrimento lembra, e muito, a narrativa da mãe. Comparem-se os trechos que vão de "Andei pelas cinco ruas" até "pagou conta de farmácia" (da mãe)  e "Me joguei a suas plantas" até "vosso marido sumiu" (da outra).

Há, nos dois, o mesmo andamento rápido de desvario e desespero. É como se o sofrimento da amante fosse a repetição do que a mulher já passara, o que dá muito a pensar sobre a condição feminina sob o patriarcalismo. Uma e outra, seja a "dona casada", seja a "dona de longe", são vítimas da mesma estrutura social.

Depois o pai volta ("nem estava mais velho") e continua a impor medo às mulheres da casa. De estranho fica apenas o vestido na parede. Talvez ele seja um sinal de mansa rebeldia da mulher. Ou, visto de outro ângulo, pode ser o símbolo de um pacto em torno do passado familiar. Ou, ainda, como sugere a mulher, não há vestido, nem nada. O que há é a cicatriz profunda de uma ferida que ainda dói à simples lembrança.


Um abraço, bom início de ano, e até fevereiro.

Carlos Machado



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poesia.net entra
em recesso

A todos os leitores do poesia.net desejo um ano novo com muita saúde, paz e poesia.

Durante o mês de janeiro, o boletim não circulará. Espero retornar em fevereiro para nosso encontro semanal.


FELIZ 2007!
 


 

Esse vestido, esse segredo

Carlos Drummond de Andrade

 


CASO DO VESTIDO

Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.



Cena do filme O Vestido, de Paulo Thiago (2003)


Era uma dona de longe,
vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,
se perdeu tanto de nós,

se afastou de toda vida,
se fechou, se devorou.

Chorou no prato de carne,
bebeu, gritou, me bateu,

me deixou com vosso berço,
foi para a dona de longe,

mas a dona não ligou.
Em vão o pai implorou,

dava apólice, fazenda,
dava carro, dava ouro,

beberia seu sobejo,
lamberia seu sapato.

Mas a dona nem ligou.
Então vosso pai, irado,

me pediu que lhe pedisse,
a essa dona tão perversa,

que tivesse paciência
e fosse dormir com ele...

Nossa mãe, por que chorais?
Nosso lenço vos cedemos.

Minhas filhas, vosso pai
chega ao pátio. Disfarcemos.

Nossa mãe, não escutamos
pisar de pé no degrau.

Minhas filhas, procurei
aquela mulher do demo.

E lhe roguei que aplacasse
de meu marido a vontade.

Eu não amo teu marido,
me falou ela se rindo.

Mas posso ficar com ele
se a senhora fizer gosto,

só para lhe satisfazer,
não por mim, não quero homem.

Olhei para vosso pai,
os olhos dele pediam.

Olhei para a dona ruim,
os olhos dela gozavam.

O seu vestido de renda,
de colo mui devassado,

mais mostrava que escondia
as partes da pecadora.

Eu fiz meu pelo-sinal,
me curvei... disse que sim.

Saí pensando na morte,
mas a morte não chegava.

Andei pelas cinco ruas,
passei ponte, passei rio,

visitei vossos parentes,
não comia, não falava,

tive uma febre terçã,
mas a morte não chegava.

Fiquei fora de perigo,
fiquei de cabeça branca,

perdi meus dentes, meus olhos,
costurei, lavei, fiz doce,

minhas mãos se escalavraram,
meus anéis se dispersaram,

minha corrente de ouro
pagou conta de farmácia.

Vosso pai sumiu no mundo.
O mundo é grande e pequeno.

Um dia a dona soberba
me aparece já sem nada,

pobre, desfeita, mofina,
com sua trouxa na mão.

Dona, me disse baixinho,
não te dou vosso marido,

que não sei onde ele anda.
Mas te dou este vestido,

última peça de luxo
que guardei como lembrança

daquele dia de cobra,
da maior humilhação.

Eu não tinha amor por ele,
ao depois amor pegou.

Mas então ele enjoado
confessou que só gostava

de mim como eu era dantes.
Me joguei a suas plantas,

fiz toda sorte de dengo,
no chão rocei minha cara,

me puxei pelos cabelos,
me lancei na correnteza,

me cortei de canivete,
me atirei no sumidouro,

bebi fel e gasolina,
rezei duzentas novenas,

dona, de nada valeu:
vosso marido sumiu.

Aqui trago minha roupa
que recorda meu malfeito

de ofender dona casada
pisando no seu orgulho.

Recebei esse vestido
e me dai vosso perdão.

Olhei para a cara dela,
quede os olhos cintilantes?

quede graça de sorriso,
quede colo de camélia?

quede aquela cinturinha
delgada como jeitosa?

quede pezinhos calçados
com sandálias de cetim?

Olhei muito para ela,
boca não disse palavra.

Peguei o vestido, pus
nesse prego da parede.



Outra cena do filme O Vestido


Ela se foi de mansinho
e já na ponta da estrada

vosso pai aparecia.
Olhou para mim em silêncio,

mal reparou no vestido
e disse apenas: Mulher,

põe mais um prato na mesa.
Eu fiz, ele se assentou,

comeu, limpou o suor,
era sempre o mesmo homem,

comia meio de lado
e nem estava mais velho.

O barulho da comida
na boca, me acalentava,

me dava uma grande paz,
um sentimento esquisito

de que tudo foi um sonho,
vestido não há... nem nada.

Minhas filhas, eis que ouço
vosso pai subindo a escada.
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2006

Carlos Drummond de Andrade
•  de A Rosa do Povo (1945)
In Poesia Completa
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 2003
___________
* Antonio Brasileiro, "Os Barcos",
  in Dedal de Areia (Garamond, 2006)