Número 195 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007 

«Apenas te digo o ouro de uma palavra no meio da névoa.» (Herberto Helder) *
 


Alberto da Cunha Melo


Caros amigos,


Após um período de recesso para recarregar as baterias, volta hoje o nosso poesia.net. Aproveito a oportunidade para dar as boas-vindas aos novos leitores. São 94 recém-chegados, reunidos apenas no período de férias.

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Neto e filho de poetas, o pernambucano Alberto da Cunha Melo nasceu em Jaboatão dos Guararapes, na região metropolitana do Recife, em 1942. Sociólogo e jornalista, produziu trabalhos nas duas áreas. Também desenvolveu intensa atividade cultural. Participou das Edições Pirata, movimento editorial alternativo que publicou mais de 300 títulos entre 1979 e 1984.

Como poeta, Cunha Melo estreou em 1966 com o volume Círculo Cósmico. Já publicou, no total, dezesseis livros de poesia. Um dos mais recentes é Dois Caminhos e Uma Oração (2003), que engloba três títulos: Meditação sob os Lajedos, de 2002; Yacala, de 1999; e Oração pelo Poema, de 1967. Há ainda O Cão de Olhos Amarelos e Outros Poemas Inéditos (2006).

Embora também se expresse em versos livres, Alberto da Cunha Melo tornou-se um mestre do octossílabo. Com versos dessa medida, ele criou um poema de forma fixa muito peculiar que lembra um soneto abreviado. Trata-se de uma estrutura de 11 linhas, divididas em quatro estrofes de quatro, dois, três e dois versos. Cunha Melo batizou como "retranca" esse tipo de composição. O esquema rímico é também especial. Há um par de versos rimantes em cada estrofe. Veja-se, como exemplos, os textos a partir  de "Casa Vazia", ao lado.

O poeta, aparentemente, passou a sentir-se tão à vontade com suas retrancas que as escreveu às centenas. O volume Dois Caminhos e Uma Oração — livro com mais de 300 páginas — é todo composto de poemas nesse formato.

Para o professor Alfredo Bosi, da USP, a poesia de Alberto da Cunha Melo contém "uma estranha beleza", título do prefácio que escreveu para o livro Yacala. De fato, com as antenas da sensibilidade permanentemente ligadas, o poeta consegue captar e transfundir em sua poesia essa terrível combinação de cinismos e tragédias que marcam os tempos atuais. Sem ilusões, ele diz: "Poema nenhum, nunca mais, / será um acontecimento: / escrevemos cada vez mais / para um mundo cada vez menos" (Casa Vazia).

Para quem considera muito crua a realidade mais imediata, vale prestar atenção para outros poemas de Alberto Cunha Melo, afinados em diferente diapasão. É o caso de "Relógio de Ponto", publicado em 1974. Aí o poeta convida a descumprir compromissos na Terra e lavar as pupilas cegas com o verniz das estrelas. Também vale a pena ler com atenção os pungentes "Orgasmo" e "Colegiais".

Para terminar, vamos recorrer, mais uma vez a Alfredo Bosi. Ele escreve: "A estranha beleza que sai dos versos de Alberto da Cunha Melo nasce da fusão de um visceral sentimento da terra (quantas imagens pejadas de lama e lixo, mangue e cinzas!) com a aspiração infinita de quem está

mirando o mar e altas distâncias
numa luneta de escoteiro.
"


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado





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Para saber mais sobre Alberto da Cunha Melo e sua poesia, visite o site do poeta:
www.albertocmelo.com/


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FALECIMENTO

O poeta Alberto da Cunha Melo faleceu no início da noite de 13 de outubro de 2007.

Meditação sob os lajedos

Alberto da Cunha Melo

 



Atroshenko - Fan dancer
Andrew Atroshenko, russo, Dançarina com leque


RELÓGIO DE PONTO

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim os jogos,
a poesia, todos os pássaros,
mais do que tudo: todo o amor.

De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e atravessaremos os córregos
cheios de areia, após as chuvas.

Se alguma súbita alegria
retardar o nosso regresso,
um inesperado companheiro
marcará o nosso cartão.

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim as faixas
da vitória, a própria vitória,
mais do que tudo: o próprio Céu.

De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e lavaremos as pupilas
cegas com o verniz das estrelas.

               De Publicação do Corpo (1974)




Atroshenko - Before the dance
Andrew Atroshenko, Antes da dança


CASA VAZIA

Poema nenhum, nunca mais,
será um acontecimento:
escrevemos cada vez mais
para um mundo cada vez menos,

para esse público dos ermos
composto apenas de nós mesmos,

uns joões batistas a pregar
para as dobras de suas túnicas
seu deserto particular,

ou cães latindo, noite e dia,
dentro de uma casa vazia.





Atroshenko - Flamenco dancer
Andrew Atroshenko, Dançarina de flamenco


CONDENSAR/CONCERTAR

A vida aqui fala bem claro,
mas sem a eloqüência da lágrima;
como a renda, como a poesia,
é uma linguagem concentrada;

é cloro na água da piscina
da cobertura, lá em cima,

onde Clara, uma pós-donzela,
posa nua para o helicóptero
que faz evoluções sobre ela;

e a luz do sol, como toalha,
só existe para enxugá-la.





Andrew Atroshenko - Passionate
Andrew Atoshenko, Impetuosa


MORTE SOB CONTRATO

Sua morte, sob encomenda,
ajustada a si como roupa,
não prêt-à-porter, contra entrega,
mas bala a bala, gota a gota,

era, no entanto, igual à vida
que antes viveu, sob a medida

da ordem, da métrica demência,
a que distribui a matança
de acordo com a procedência

e o cadastro da freguesia
da morte, a crescer todo dia.





Andrew Atroshenko - Vibrance
Andrew Atroshenko, Vibração


AVE ANO 2000

Só agora sabemos, quando
outro século bate à porta:
tudo tocado pelo Homem
tem o cheiro de coisa morta,

e o som do réquiem, som da nênia
dos morteiros sobre a Chechênia,

e dos vagidos africanos
sobre as favelas tropicais,
som de escopeta de dois canos,

anunciando-nos, com susto,
que ainda impera César Augusto.





Andrew Atroshenko - Black swan
Andrew Atroshenko, Cisne negro


ORGASMO

Todo corpo, em seu esplendor,
divide em duas esta vida,
mas este êxtase existe mesmo
para ocultar uma descida

da carne, no único momento
em que do cosmo é instrumento;

truque do eterno é todo amor:
toca por baixo o fogo alto
que aquece o sonho ao sol se pôr,

porque logo devolve aos dois
o nada de antes e depois.





Andrew Atroshenko - Into the light
Andrew Atroshenko, Para dentro da luz


COLEGIAIS

São todos eles imortais
e onde estiverem lhes transborda
voraz a vida, com seus volts,
sua guitarra de mil cordas;

tanta energia é uma cegueira,
manhã sem fim, a vida inteira,

até que a tarde se anuncia
ao primeiro tremor das mãos,
até que o corpo não sacia

mais o outro corpo e a noite eleva
sua alta parede de treva.

               De Meditação sob os Lajedos (2002)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

Alberto da Cunha Melo
•  "Relógio de Ponto"
    In Soma dos Sumos
    José Olympio/Fundarpe,
    Rio de Janeiro/Recife, 1983
•  "Casa Vazia", "Condensar/Concertar", "Morte
    sob Contrato", "Ave Ano 2000", "Orgasmo" e
    "Colegiais"
    In Dois Caminhos e Uma Oração
    A Girafa/Instituto Maximiano Campos,
    São Paulo/Recife, 2003
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* Herberto Helder, "Fonte (V)",
  in Ou O Poema Contínuo
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* Imagens: quadros de Andrew Atroshenko,
  pintor russo contemporâneo