Alberto da Cunha Melo
Caros amigos,
Após um período de recesso para recarregar as baterias, volta hoje o nosso
poesia.net. Aproveito a oportunidade para dar as boas-vindas aos novos
leitores. São 94 recém-chegados, reunidos apenas no período de férias.
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Neto e filho de poetas, o pernambucano Alberto da Cunha Melo nasceu em Jaboatão
dos Guararapes, na região metropolitana do Recife, em 1942. Sociólogo e
jornalista, produziu trabalhos nas duas áreas. Também desenvolveu intensa
atividade cultural. Participou das Edições Pirata, movimento editorial
alternativo que publicou mais de 300 títulos entre 1979 e 1984.
Como poeta, Cunha Melo estreou em 1966 com o volume Círculo Cósmico. Já
publicou, no total, dezesseis livros de poesia. Um dos mais recentes é Dois
Caminhos e Uma Oração (2003), que engloba três títulos: Meditação sob os
Lajedos, de 2002; Yacala, de 1999; e Oração pelo Poema, de
1967. Há ainda O Cão de Olhos Amarelos e Outros Poemas Inéditos (2006).
Embora também se expresse em versos livres, Alberto da Cunha Melo tornou-se um
mestre do octossílabo. Com versos dessa medida, ele criou um poema de forma fixa
muito peculiar que lembra um soneto abreviado. Trata-se de uma estrutura de 11
linhas, divididas em quatro estrofes de quatro, dois, três e dois versos. Cunha
Melo batizou como "retranca" esse tipo de composição. O esquema rímico é também
especial. Há um par de versos rimantes em cada estrofe. Veja-se, como exemplos,
os textos a partir de "Casa Vazia", ao lado.
O poeta, aparentemente, passou a sentir-se tão à vontade com suas retrancas que
as escreveu às centenas. O volume Dois Caminhos e Uma Oração — livro com
mais de 300 páginas — é todo composto de poemas nesse formato.
Para o professor Alfredo Bosi, da USP, a poesia de Alberto da Cunha Melo contém
"uma estranha beleza", título do prefácio que escreveu para o livro Yacala.
De fato, com as antenas da sensibilidade permanentemente ligadas, o poeta
consegue captar e transfundir em sua poesia essa terrível combinação de cinismos
e tragédias que marcam os tempos atuais. Sem ilusões, ele diz: "Poema nenhum,
nunca mais, / será um acontecimento: / escrevemos cada vez mais / para um mundo
cada vez menos" (Casa Vazia).
Para quem considera muito crua a realidade mais imediata, vale prestar atenção
para outros poemas de Alberto Cunha Melo, afinados em diferente diapasão. É o
caso de "Relógio de Ponto", publicado em 1974. Aí o poeta convida a descumprir
compromissos na Terra e lavar as pupilas cegas com o verniz das estrelas. Também
vale a pena ler com atenção os pungentes "Orgasmo" e "Colegiais".
Para terminar, vamos recorrer, mais uma vez a Alfredo Bosi. Ele escreve: "A
estranha beleza que sai dos versos de Alberto da Cunha Melo nasce da fusão de um
visceral sentimento da terra (quantas imagens pejadas de lama e lixo, mangue e
cinzas!) com a aspiração infinita de quem está
mirando o mar e altas distâncias
numa luneta de escoteiro."
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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Para saber mais sobre Alberto da Cunha Melo e sua poesia, visite o site do
poeta:
www.albertocmelo.com/
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FALECIMENTO
O poeta Alberto da Cunha Melo faleceu no início da noite de 13 de outubro de
2007. |
Meditação sob os lajedos
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Alberto da Cunha Melo |
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Andrew Atroshenko, russo, Dançarina com leque
RELÓGIO DE PONTO
Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim os jogos,
a poesia, todos os pássaros,
mais do que tudo: todo o amor.
De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e atravessaremos os córregos
cheios de areia, após as chuvas.
Se alguma súbita alegria
retardar o nosso regresso,
um inesperado companheiro
marcará o nosso cartão.
Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim as faixas
da vitória, a própria vitória,
mais do que tudo: o próprio Céu.
De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e lavaremos as pupilas
cegas com o verniz das estrelas.
De Publicação do Corpo (1974)
Andrew Atroshenko, Antes da dança
CASA VAZIA
Poema nenhum, nunca mais,
será um acontecimento:
escrevemos cada vez mais
para um mundo cada vez menos,
para esse público dos ermos
composto apenas de nós mesmos,
uns joões batistas a pregar
para as dobras de suas túnicas
seu deserto particular,
ou cães latindo, noite e dia,
dentro de uma casa vazia.
Andrew Atroshenko, Dançarina de flamenco
CONDENSAR/CONCERTAR
A vida aqui fala bem claro,
mas sem a eloqüência da lágrima;
como a renda, como a poesia,
é uma linguagem concentrada;
é cloro na água da piscina
da cobertura, lá em cima,
onde Clara, uma pós-donzela,
posa nua para o helicóptero
que faz evoluções sobre ela;
e a luz do sol, como toalha,
só existe para enxugá-la.
Andrew Atoshenko, Impetuosa
MORTE SOB CONTRATO
Sua morte, sob encomenda,
ajustada a si como roupa,
não prêt-à-porter, contra entrega,
mas bala a bala, gota a gota,
era, no entanto, igual à vida
que antes viveu, sob a medida
da ordem, da métrica demência,
a que distribui a matança
de acordo com a procedência
e o cadastro da freguesia
da morte, a crescer todo dia.
Andrew Atroshenko, Vibração
AVE ANO 2000
Só agora sabemos, quando
outro século bate à porta:
tudo tocado pelo Homem
tem o cheiro de coisa morta,
e o som do réquiem, som da nênia
dos morteiros sobre a Chechênia,
e dos vagidos africanos
sobre as favelas tropicais,
som de escopeta de dois canos,
anunciando-nos, com susto,
que ainda impera César Augusto.
Andrew Atroshenko, Cisne negro
ORGASMO
Todo corpo, em seu esplendor,
divide em duas esta vida,
mas este êxtase existe mesmo
para ocultar uma descida
da carne, no único momento
em que do cosmo é instrumento;
truque do eterno é todo amor:
toca por baixo o fogo alto
que aquece o sonho ao sol se pôr,
porque logo devolve aos dois
o nada de antes e depois.
Andrew Atroshenko, Para dentro da luz
COLEGIAIS
São todos eles imortais
e onde estiverem lhes transborda
voraz a vida, com seus volts,
sua guitarra de mil cordas;
tanta energia é uma cegueira,
manhã sem fim, a vida inteira,
até que a tarde se anuncia
ao primeiro tremor das mãos,
até que o corpo não sacia
mais o outro corpo e a noite eleva
sua alta parede de treva.
De Meditação sob os Lajedos (2002)
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