Número 196 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

«Uma palavra / basta / para acordar os /demônios / que se hospedam / no poema.» (Francisco Carvalho) *
 


Ricardo Lima


Caros,

Nascido em Jardinópolis (SP), em 1966, o poeta e jornalista Ricardo Lima vive em Campinas, outra cidade paulista. Lima estreou em 1994 com o volume Primeiro Segundo (Arte  Pau-Brasil). Em seguida, lançou Chave de Ferrugem (Nankin, 1999) e Cinza Ensolarada (Azougue, 2003). Seu trabalho mais recente é Impuro Silêncio
(Azougue, 2006).

Desde o primeiro livro, a poética de Ricardo Lima se caracteriza pela dicção enxuta, na qual as palavras só comparecem na medida do essencial. Aparentemente, essa tendência à concisão vai-se tornando cada vez mais acentuada com a evolução do trabalho do poeta.

No primeiro livro, ele ainda diz, com todas as letras: "sei que as coisas têm forma / em todos os olhos há como aprendê-las". No volume mais recente, a expressão se torna mais telegráfica. Eis o começo de um dos poemas: "não faltam pássaros / na solidão // canteiros / zunido de abelha". Desaparece, de alguma forma, a necessidade de apresentar uma seqüência, uma linha clara de união entre coisas e idéias.

Os textos mais novos de Ricardo Lima parecem exigir sempre mais do leitor. A este é legada a tarefa de costurar os nexos, fazer as pontes entre um e outro verso, entre uma e outra imagem. O esforço deve ser ainda maior porque o poeta nunca dá títulos aos poemas. Os títulos, como sabemos, muitas vezes fornecem a chave do texto. É o caso, por exemplo, do sonetilho "Áporo",  de Carlos Drummond de Andrade. Sem o título, o leitor deixaria de ter um ponto de referência fundamental.


Talvez uma das chaves para a leitura da obra de Ricardo Lima esteja no título de seu terceiro livro: impuro silêncio. O poeta parece perseguir a extrema economia de meios, como quem busca a expressão no fundo do (quase) silêncio.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



                      •o•



CORREÇÃO

No boletim anterior, dedicado à poesia do pernambucano Alberto da Cunha Melo, escrevi que sua obra mais recente é Dois Caminhos e Uma Oração, de 2003. Na verdade, é O Cão de Olhos Amarelos e Outros Poemas Inéditos (A Girafa, 2006). Agradeço ao próprio autor essa correção. O deslize já foi corrigido no site. Faço-o agora também para vocês, que recebem o boletim por e-mail.

Quase silêncio

Ricardo Lima

 





sei que as coisas têm forma
em todos os olhos há como aprendê-las.

sorriso falta,
dezembros são cancelados assim.

nas curtas tônicas da tarde
sei,
há matizes de amor.

e que sujo a unha de roxo
no plano das portas.






nunca envolver-se
senão com uvas.

esquecer dublin

espalhar antenas e querubins

abrir
a lata vazia.

o amor
irresponsável:

água e travesseiro.






freqüento a manhã
como enfrento pássaros de alucinação

com perda de cílios pela rua

cabeça encharcada de presságios

nuvens rodeando a vítima.






resta o caminho não traçado do descuido
e a pele lua dos lábios.

o palito de acender olhos
queima entre dedos e cinzeiro.

roupa suja ainda se usa.

resta a aldeia esgotada do corpo.



               De Primeiro Segundo (1994)

 


 

sem tendência pra tenor
gol de placa
ou verbos na bainha

sem sorriso de fazer nada
nem olhos no infinito

sem coloquial dinheiro e cabelo
sem iogurte e papel

sem prumo
tolerância ou palco

sem tendência






tempo de pequenos santuários
vida de algumas fotos
e um sotaque

tudo névoa
casaco

nenhuma proteção

não medo
dei-me
convites goiabas sombras

um par de livros escuros
canto de bar
balcão



               De Chave de Ferrugem (1999)

 



parar para fundir
os bilhetes num teclado

reunir cenas coloridas
doces machucados
farelos de pão
com as mãos

refazer trajeto de pássaro entre antenas
de gota da folha ao chão

voltar-se
devagar para os botões

abotoar desabotoar

sem sabor algum

sem fim


               De Cinza Ensolarada (2003)



 

não faltam pássaros
na solidão

canteiros
zunido de abelha

criança zanzando com babá
atleta trotando em acrílico
gordo tinindo em pijama

e cachorros
cachorros e
velhos

debatendo o mesmo osso


               De Impuro Silêncio (2006)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

Ricardo Lima
Poemas extraídos de:
•  Primeiro Segundo
   
Arte Pau-Brasil, São Paulo, 1994
•  Chave de Ferrugem
   
Nankin, São Paulo, 1999
•  Cinza Ensolarada
   
Azougue, Rio de Janeiro, 2003
•  Impuro Silêncio
   
Azougue, Rio de Janeiro, 2006
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* Francisco Carvalho, "O Poder da Palavra",
  in Memórias do Espantalho