Número 197 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007 

«Assim é o amor: mortal e navegável.» (Eugénio de Andrade) *
 


Márcia Maia


Caros,

A médica recifense Márcia Maia (1951-) é poeta, não somente por escrever poesia, mas também no sentido da escritora que milita no partido da poesia. Blogueira de primeira hora, ela tem três blogs na internet. No primeiro, Tábua de Marés, ela mostra seus próprios poemas.No segundo, Mudança de Ventos, um blog mais pessoal, faz anotações em prosa. O último blog, Alfabeto, é uma antologia dedicada a poetas de todos os quadrantes.

Márcia Maia já publicou quatro coletâneas em livro:
Espelhos (2003); Um Tolo Desejo de Azul (2003); Olhares/Miradas (2004); e Em Queda Livre (2005). A amostra de seu trabalho mostrada ao lado contém poemas de Em Queda Livre e Um Tolo Desejo de Azul, além de inéditos em papel, publicados no blog da autora.

A poesia de Márcia Maia situa-se freqüentemente entre várias afinações do lirismo amoroso — que vão do desencanto ao sensualismo — e uma certa reflexão existencial. Em cada uma dessas diferentes vozes ou tonalidades líricas, a poeta descobre seus elementos de expressão em referências bem concretas e cotidianas.

Assim, em "Prestidigitação", o sujeito lírico do poema se apresenta como uma mulher ausente cuja sombra se projeta "nas águas turvas de junho". A mesma nostalgia habita o "cheiro de terra molhada", imagem recorrente em "Retalhos". Em "Marítima", é uma voz talvez nostálgica que diz ter a "pele salgada de amor e maresia".

Num tom mais ácido, outra voz anuncia que "o amor apodrece como fruta / sobre a mesa". Por fim, a mulher que lança ao amigo pequenos enigmas e provocações eróticas parece ser mais arrebatada que as outras — saudosas, reflexivas ou levemente sensuais.

Há uma pequena população feminina habitando nos textos de Márcia Maia.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



                      •o•


 



 

Cheiro de terra molhada

Márcia Maia

 



PRESTIDIGITAÇÃO


sou a que se perdeu
a ausente
e embora esteja quase
sempre aqui
aparentemente presente
não sou eu a que me vêem
— tu e toda essa gente —
mas o esboço
a sombra
o rastro
ou talvez apenas o reflexo
nas águas turvas de junho
da que fui
quando o inverno era
ainda
uma improvável e longínqua
possibilidade



MARÍTIMA

era àquela hora em que o mar por estar
o céu já quase rosa tem um tom entre
o verde-prata e o violeta.

havia sargaços — tantos — um manto verde
escuro sobre a areia e a maré vazante
descobria os primeiros arrecifes.

uma lua — crescente — brotava do horizonte
quando tuas mãos sorriam em minha pele
desvendando caminhos de antigamente

e debruçava-se azul sobre a janela quando
acordei — pele salgada de amor e maresia
e o eco da tua voz em minha boca.



POEMINHA CÍNICO

mesmo o mais cinzento dos domingos
diz-se azul quando amanhece

ainda que em meio a terremotos
maremotos tempestades.

mesmo o amor mais corrosivo sabe
a mel quando engatinha

ainda que respingue sangue e fel
a cada passo.

mais importa o prometido que o
que encerra

à luz dos dias a crua e cínica
e vã realidade.

sendo assim seguem sempre azuis
e doces os amores e os domingos

: a propaganda é a alma do negócio
bem se sabe.



DA FINITUDE DAS COISAS BELAS

traçado à mão livre sobre a areia
o círculo contém o sol.

conteria também lua e estrelas
não o viessem beijar as ondas

quando mais tarde a maré se
fizer cheia

pondo fim a tão bela e efêmera
perfeição.



RETALHOS

sabe a amor a sono esse cheiro
de terra molhada
cortinas corridas rádio tocando baixinho
talvez luiz melodia
um tempo em que dormíamos
abraçados nas tardes quentes do subúrbio.

não há mais nós nem subúrbio
— amor tampouco —
só o cheiro de terra molhada na tarde
de verão chuvosa e quente

além de vez por outra essa lembrança

 

FOTOGRAFIA

à beira da estrada
um cemitério

cruzes enfeitadas com
coroas de primeira-comunhão

inocência estendida entre
as lápides

num misto de saudade e
decomposição



MANHÃZINHA

nem dália nem mangueira
rosa tampouco

só um canteiro de marias-
sem-vergonha

vermelhando a areia



DECOMPOSIÇÃO

o amor apodrece como fruta
sobre a mesa

as moscas zunem

o sol se põe azul no vidro
da fruteira

no mais além de solidão e
pasmaceira

um cheiro acre-adocicado
de decomposição

               De Em Queda Livre (2005)



IMPERTINÊNCIA

sei de tantos descaminhos
desolhares desistências.
sei como é estar sozinho
sem nenhuma indulgência
sem nunca pedir clemência.
sei de mim: um ser marinho
perdido a meio caminho
do deserto na iminência
de esquecer o mar vizinho
de abismo e insolvência.

mas não será desse espinho
que hei de morrer. paciência.
a tal vil redemoinho
ofereço a impertinência
de quem conhece a ciência
do sobreviver: sem vinho
herói quixote ou moinho,
sigo adiante. e de ausência
cinjo-me enquanto escrevinho
meus versos de inexistência.

               (Inédito em livro)
 


INTIMIDADE


se tocar um blues
e eu estiver de azul
como a tarde
me beija o pescoço
me explora o decote
(aos amigos se permitem
certas intimidades )

mas se tocar um tango
dança comigo
beija-me a boca
quem sabe me ama
(que não é de ferro
a amizade)

depois
tomar café com leite
e pão torrado

e seguir sendo amigos
por infinitas outras tardes

               De Um Tolo Desejo de Azul (2003)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

Márcia Maia
•  "Prestidigitação", "Marítima", "Poeminha  
    Cínico", "Da Finitude das Coisas Belas",
    "Retalhos", "Fotografia", "Manhãzinha",
    "Decomposição"
    In Em Queda Livre
   
Edição da autora, Recife, 2005
•  "Intimidade"
   
In Um Tolo Desejo de Azul
   
Edição da autora, Recife, 2003
•  "Impertinência"
    Publicado no blog da autora
______________
* Eugénio de Andrade, "O Amor",
  in
Obscuro Domínio (1971)