Márcia Maia
Caros,
A médica recifense Márcia Maia (1951-) é poeta, não somente
por escrever poesia, mas também no sentido da escritora que milita no partido da
poesia. Blogueira de primeira hora, ela tem três
blogs na internet. No primeiro,
Tábua de Marés,
ela mostra seus próprios poemas.No segundo,
Mudança de
Ventos, um blog mais pessoal, faz anotações em prosa. O último blog,
Alfabeto, é uma
antologia dedicada a poetas de todos os quadrantes.
Márcia Maia já publicou quatro coletâneas em livro:
Espelhos (2003); Um Tolo Desejo de Azul (2003);
Olhares/Miradas (2004); e Em Queda Livre (2005). A amostra de seu
trabalho mostrada ao lado contém poemas de Em Queda Livre e Um Tolo
Desejo de Azul, além de inéditos em papel, publicados no blog da autora.
A poesia de Márcia Maia situa-se freqüentemente entre várias afinações do
lirismo amoroso — que vão do desencanto ao sensualismo — e uma certa reflexão
existencial. Em cada uma dessas diferentes vozes ou tonalidades líricas, a poeta
descobre seus elementos de expressão em referências bem concretas e cotidianas.
Assim, em "Prestidigitação", o sujeito lírico do poema se apresenta como uma
mulher ausente cuja sombra se projeta "nas águas turvas de junho". A mesma
nostalgia habita o "cheiro de terra molhada", imagem recorrente em "Retalhos".
Em "Marítima", é uma voz talvez nostálgica que diz ter a "pele salgada de amor e
maresia".
Num tom mais ácido, outra voz anuncia que "o amor apodrece como fruta / sobre a
mesa". Por fim, a mulher que lança ao amigo pequenos enigmas e provocações
eróticas parece ser mais arrebatada que as outras — saudosas, reflexivas ou
levemente sensuais.
Há uma pequena população feminina habitando nos textos de Márcia Maia.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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Cheiro de terra molhada
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Márcia Maia |
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PRESTIDIGITAÇÃO
sou a que se perdeu
a ausente
e embora esteja quase
sempre aqui
aparentemente presente
não sou eu a que me vêem
— tu e toda essa gente —
mas o esboço
a sombra
o rastro
ou talvez apenas o reflexo
nas águas turvas de junho
da que fui
quando o inverno era
ainda
uma improvável e longínqua
possibilidade
MARÍTIMA
era àquela hora em que o mar por estar
o céu já quase rosa tem um tom entre
o verde-prata e o violeta.
havia sargaços — tantos — um manto verde
escuro sobre a areia e a maré vazante
descobria os primeiros arrecifes.
uma lua — crescente — brotava do horizonte
quando tuas mãos sorriam em minha pele
desvendando caminhos de antigamente
e debruçava-se azul sobre a janela quando
acordei — pele salgada de amor e maresia
e o eco da tua voz em minha boca.
POEMINHA CÍNICO
mesmo o mais cinzento dos domingos
diz-se azul quando amanhece
ainda que em meio a terremotos
maremotos tempestades.
mesmo o amor mais corrosivo sabe
a mel quando engatinha
ainda que respingue sangue e fel
a cada passo.
mais importa o prometido que o
que encerra
à luz dos dias a crua e cínica
e vã realidade.
sendo assim seguem sempre azuis
e doces os amores e os domingos
: a propaganda é a alma do negócio
bem se sabe.
DA FINITUDE DAS COISAS BELAS
traçado à mão livre sobre a areia
o círculo contém o sol.
conteria também lua e estrelas
não o viessem beijar as ondas
quando mais tarde a maré se
fizer cheia
pondo fim a tão bela e efêmera
perfeição.
RETALHOS
sabe a amor a sono esse cheiro
de terra molhada
cortinas corridas rádio tocando baixinho
talvez luiz melodia
um tempo em que dormíamos
abraçados nas tardes quentes do subúrbio.
não há mais nós nem subúrbio
— amor tampouco —
só o cheiro de terra molhada na tarde
de verão chuvosa e quente
além de vez por outra essa lembrança
FOTOGRAFIA
à beira da estrada
um cemitério
cruzes enfeitadas com
coroas de primeira-comunhão
inocência estendida entre
as lápides
num misto de saudade e
decomposição
MANHÃZINHA
nem dália nem mangueira
rosa tampouco
só um canteiro de marias-
sem-vergonha
vermelhando a areia
DECOMPOSIÇÃO
o amor apodrece como fruta
sobre a mesa
as moscas zunem
o sol se põe azul no vidro
da fruteira
no mais além de solidão e
pasmaceira
um cheiro acre-adocicado
de decomposição
De Em Queda Livre (2005)
IMPERTINÊNCIA
sei de tantos descaminhos
desolhares desistências.
sei como é estar sozinho
sem nenhuma indulgência
sem nunca pedir clemência.
sei de mim: um ser marinho
perdido a meio caminho
do deserto na iminência
de esquecer o mar vizinho
de abismo e insolvência.
mas não será desse espinho
que hei de morrer. paciência.
a tal vil redemoinho
ofereço a impertinência
de quem conhece a ciência
do sobreviver: sem vinho
herói quixote ou moinho,
sigo adiante. e de ausência
cinjo-me enquanto escrevinho
meus versos de inexistência.
(Inédito em livro)
INTIMIDADE
se tocar um blues
e eu estiver de azul
como a tarde
me beija o pescoço
me explora o decote
(aos amigos se permitem
certas intimidades )
mas se tocar um tango
dança comigo
beija-me a boca
quem sabe me ama
(que não é de ferro
a amizade)
depois
tomar café com leite
e pão torrado
e seguir sendo amigos
por infinitas outras tardes
De Um Tolo Desejo de Azul (2003)
|
poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007
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Márcia Maia
• "Prestidigitação", "Marítima", "Poeminha
Cínico", "Da Finitude das Coisas Belas",
"Retalhos", "Fotografia", "Manhãzinha",
"Decomposição"
In
Em Queda Livre
Edição da autora, Recife, 2005
• "Intimidade"
In Um Tolo Desejo de Azul
Edição da autora, Recife, 2003
• "Impertinência"
Publicado no blog da autora
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* Eugénio de Andrade, "O Amor",
in Obscuro Domínio
(1971)
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