Cacaso
Caros amigos,
Mineiro de Uberaba, o poeta Antonio Carlos Ferreira de Brito (1944-1987),
conhecido como Cacaso, viveu desde os onze anos no Rio de Janeiro. Cacaso
estudou filosofia e lecionou teoria literária na PUC-RJ. Foi também ensaísta e
letrista de música popular. Nesse último gênero foi parceiro de compositores
como Edu Lobo, Francis Hime, Sueli Costa e Maurício Tapajós.
Para os mais jovens, que talvez não saibam identificar letras de Cacaso, basta
citar duas: "Face a Face" (São as trapaças da sorte / são as graças da paixão);
e "Lero-Lero" ("Sou brasileiro / de estatura mediana / gosto muito de fulana /
mas sicrana é quem me quer"). A primeira tem música de Sueli Costa. A outra, de
Edu Lobo.
Na poesia, Cacaso estréia em 1967 com o livro A Palavra Cerzida. Nos anos
70, ele se destaca como um dos expoentes da chamada "geração mimeógrafo", que
criaria a "poesia marginal". Os poetas "marginais" retomam alguns procedimentos
do modernismo de 1922, a exemplo do coloquialismo, a crítica social e o
poema-piada.
Alguns estudiosos fazem restrições
à poesia marginal apontando sua falta de rigor. Eles vêem o movimento como uma
imagem invertida das vanguardas originárias dos anos 50 (concretismo e afins).
Enquanto estas são acusadas de formalistas, o pessoal da poesia marginal recebe
a pecha de ter relaxado os procedimentos formais da poesia.
A poesia marginal ganhou especial divulgação após
a publicação da coletânea 26 Poetas Hoje, organizada por Heloísa Buarque
de Hollanda, em 1976. Além de Cacaso, estão nessa antologia poetas como
Francisco Alvim, Torquato Neto, José Carlos Capinan, Ana Cristina César e Waly
Sailormoon.
Durante os anos 70, Cacaso lançou os livros Grupo Escolar (1974),
Segunda Classe (1975), Beijo na Boca (1975) e Na Corda Bamba
(1978). Em seguida, publicou ainda Mar de Mineiro (1982) e Beijo na
Boca e Outros Poemas (1985), que reunia toda a sua produção até então. Em
2002 saiu, postumamente, sua poesia completa, que inclui todos os títulos
citados aqui, mais poemas inéditos.
Um recurso muito praticado por Cacaso (e herdado do modernismo) é a paródia, com
referências bem-humoradas a outros poetas. Em "Há Uma Gota de Sangue no Cartão
Postal", por exemplo, o título lembra o livro de Mário de Andrade Há uma Gota
de Sangue em Cada Poema. No mesmo poema há também citações da música popular
— "Luar do Sertão", de Catulo da Paixão Cearense, e
"Tropicália, de Caetano Veloso —, além da "Canção do
Exílio", de Gonçalves Dias, e ainda do poema "Amor e Medo", de Casimiro de
Abreu.
"Ex (3)" é o típico poema-piada. "Jogos Florais" esboça uma crítica ao chamado
milagre econômico dos anos 70 e retorna à "Canção do Exílio". O espírito da
paródia e da gozação estão em toda a obra de Cacaso. O poema que originou o
título da coletânea Mar de Mineiro — um título
que, por si só, anuncia um conteúdo jocoso — chama-se
"Fazendeiro do Mar", uma óbvia brincadeira com o Fazendeiro do Ar, de
Carlos Drummond de Andrade.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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O fazendeiro do mar
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Cacaso |
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HÁ UMA GOTA DE SANGUE
NO CARTÃO POSTAL
eu sou manhoso eu sou brasileiro
finjo que vou mas não vou minha janela é
a moldura do luar do sertão
a verde mata nos olhos verdes da mulata
sou brasileiro e manhoso por isso dentro
da noite e de meu quarto fico cismando na beira
de um rio
na imensa solidão de latidos e araras
lívido
de medo e de amor
EX (3)
A minha ex-namorada
inundou minha vida de coisas belas demais
evitava que eu tivesse qualquer aborrecimento
impedia que eu saísse no sereno
me conduzia pela mão ao atravessar a rua
velava enternecida pelo meu futuro
a minha ex-namorada usurpou o lugar
onde floria, exuberante, a esposa atual
de meu pai onipresente
De Beijo na Boca (1975)
LAR DOCE LAR
p/ Maurício Maestro
Minha pátria é minha infância:
Por isso vivo no exílio.
De Na Corda Bamba (1978)
JOGOS FLORAIS I
Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.
Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre.
CINEMA MUDO IV
Neste retrato de noivado divulgamos
os nossos corpos solteiros.
Na hierarquia dos sexos, transparente,
escorrego
para o passado.
Na falta de quem nos olhe
vamos ficando perfeitos e belos
tão belos e tão perfeitos
como a tarde quando pressente
as glândulas aéreas da noite.
De Grupo Escolar (1974)
INFÂNCIA (2)
Eu matei minha saudade mas depois
veio outra
De Mar de Mineiro (1982)
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