Lawrence Ferlinghetti
Caros amigos,
Devagarinho, passo a passo, chegamos ao boletim 200. Um número redondo,
bom de dizer e comemorar. E, coincidência, hoje é o Dia Nacional da Poesia.
Portanto, mil vivas à poesia!
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Nesta edição o destaque vai para o poeta beat ítalo-americano Lawrence
Ferlinghetti. Nascido em Nova York, em 1919, ele foi Lawrence Ferling até 1955.
Na verdade, seu pai, italiano, migrara para os Estados Unidos e lá encurtara o
nome para Ferling. O que o filho fez, aos 36 anos, foi recuperar o nome original
e assim realçar sua origem italiana. Mas ele nunca
teve uma educação italiana.
Depois de estudar na Universidade de Colúmbia e se doutorar na Sorbonne,
Ferlinghetti se mudou para San Francisco, na Califórnia. Lá, lecionou francês e
se dedicou à crítica literária. Em 1953, em parceria com Peter D. Martin, abriu
a livraria City Lights, nome tomado por empréstimo de Luzes da Cidade, o
filme de Chaplin. Dois anos depois, já sem o sócio, Ferlinghetti decidiu entrar
na área de edição de livros, especializando-se em poesia. A editora City Lights
ganhou notoriedade após publicar Howl (Uivo), poema de Allen Ginsberg, em
1956. O livro foi proibido pela censura, sob a acusação de obscenidade.
Ferlinghetti, o editor, chegou a ser preso por isso.
A City Lights ficou célebre como editora ligada à poesia da chamada geração
beat, da qual fazem parte, além de Ginsberg e Ferlinghetti, nomes como os do
poeta Gregory Corso e dos prosadores Jack Kerouac (On The Road) e William
Burroughs (Junkie; O Almoço Nu).
O livro de estréia do próprio Ferlinghetti, Pictures of the Gone World
(Retratos do mundo passado) saiu em 1955, também pela City Lights. Em 1958
Ferlinghetti publicaria A Coney Island of the Mind (Uma Coney Island da
Mente), seu segundo livro de poemas, que é também sua obra mais conhecida. De lá
até agora, ele publicou mais uma dezena de livros, além de discos com leituras
de poemas.
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No início dos anos 80, houve uma onda beat no Brasil. Nessa época, foram
publicados muitos livros dos escritores da beat generation, especialmente pelas
editoras Brasiliense e L&PM. A seleção de poemas ao lado veio de um desses
livros, a antologia Vida Sem Fim, que contém textos de nove coletâneas de
Ferlinghetti. Saiu em 1984, pela Brasiliense, com tradução de Nelson Ascher,
Paulo Leminski, Marcos A.P. Ribeiro e Paulo Henriques Britto.
Escolhi um punhado de poemas que demonstram diferentes facetas da obra de
Ferlinghetti, que este mês completa 88 anos. Em “Ao longe um porto cheio...”
destacam-se o lirismo e a sensualidade. É fantástica a descrição do lençol que
se enrola na mulher empurrado pelo vento. Sensualidade é também a palavra para
descrever a cena de “Era um rosto que as trevas matariam...”. Ainda nessa linha
do lirismo está o poema “Cavalos ao amanhecer...”.
O poema “Quanto eu saiba ela talvez fosse mais feliz...” tem traços dos outros
dois já citados. Mas nele, em minha opinião, o traço dominante é a capacidade do
poeta de extrair emoção de uma cena banal com excursionistas de domingo viajando
num vagão do trem.
Em “O olho do poeta obsceno vendo...” vem para o primeiro plano a inconformidade
do poeta com as coisas deste mundo “à prova de beijos”. O mesmo registro, em tom
mais nitidamente irritado, aparece em “Saudação”. Observe-se que esse poema vem
com local e data bastante expressivos: “Prisão de Santa Rita, 1968”. Nos anos
60, essa prisão californiana era um dos lugares para onde eram levadas as
pessoas presas em demonstrações de protesto. Lá, em 1967, ficaram presas a
cantora Joan Baez e sua mãe, Joan Bridge Baez, junto com outras 70 mulheres que
ajudaram jovens convocados para o Vietnã a escapar do exército americano.
Por fim, o texto “Dois varredores de rua num caminhão, dois ricaços num
Mercedes” combina traços de crítica social com a forte capacidade descritiva do
autor, aspecto que se nota em quase todos os seus poemas. Aliás, é fácil
perceber que os poemas de Ferlinghetti se organizam como pinturas. Talvez isso
se deva ao fato de que ele também é pintor.
Vale citar que existe no Brasil uma versão específica do livro A Coney Island
of the Mind, chamada Um Parque de Diversões da Cabeça. A tradução é
de Eduardo Bueno (hoje conhecido pelos livros de História) e Leonardo Fróes. O
volume saiu pela L&PM, em 1984.
Preciso lembrar, ainda, que fui forçado a fazer algumas adaptações na disposição
dos versos destes poemas. Ferlinghetti esparrama o texto irregularmente por toda
a extensão da página. Como a largura da área de texto, aqui, é restrita, tive de
espremer um pouco os poemas, embora sempre mantendo os traços gerais da
disposição gráfica.
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Se você quiser conhecer o site da City Lights, a livraria e editora de
Ferlinghetti, visite o endereço
www.citylights.com.
Um abraço,
Carlos Machado
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O HOMEM DENTRO DE UM CÃO
Uma dica para paulistanos, residentes ou de passagem. O jornalista e escritor
Fernando Portela lança na próxima terça-feira, 20 de março, seu novo livro de
contos, O Homem Dentro de um Cão, que sai pela Editora Terceiro Nome.
Anote:
Data: 20 de março, terça-feira
Hora: A partir das 19h00
Local: Restaurante Rosmarino
Rua Henrique
Monteiro, 44
Pinheiros - São
Paulo
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O olho do poeta obsceno
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Lawrence Ferlinghetti |
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AO LONGE SOBRE UM PORTO CHEIO...
Ao longe sobre um porto cheio
de casas sem calefação
em meio às chaminés de navio
de um
telhado mastreado de varais
uma mulher hasteia velas
sobre o vento
expondo seus lençóis matinais
com pregadores de madeira
Oh mamífero adorável
seus seios seminus
arrojam sombras retesadas
quando ela se estica
para pendurar de alma lavada
seu último pecado
mas umidamente sensual
ele se enrola nela
agarrado à sua pele
Capturada assim de braços
erguidos
ela atira a cabeça
para trás
numa gargalhada muda
e num gesto espontâneo
espalha então cabelo dourado
enquanto nas inatingíveis paisagens marinhas
entre lonas brancas e enfunadas
sobressaem radiantes os barcos a vapor
para o outro mundo
[Tradução: Nelson Ascher]
AWAY ABOVE A HARBORFUL...
Away above a harborful / of caulkless houses / among the charley noble
chimneypots / of a rooftop rigged with clotheslines / a woman pastes up sails /
upon the wind / hanging out her morning sheets / with wooden pins / O lovely
mammal / her nearly naked breasts / throw taut shadows / when she stretches up /
to hang at last the last of her / so white washed sins / but it is wetly amorous
/ and winds itself about her / clinging to her skin / So caught with arms /
upraised / she tosses back her head / in voiceless laughter / and in choiceless
gesture then / shakes out gold hair / while in the reachless seascape spaces /
between the blown white shrouds / stand out the bright steamers / to kingdom
come
QUANTO EU SAIBA ELA TALVEZ FOSSE MAIS FELIZ...
Quanto eu saiba ela talvez fosse mais feliz
que qualquer um
aquela anciã solitária de xale
no trem com caixotes de laranja
com o passarinho manso
no seu lenço
e
sussurrando-lhe
todo o tempo
mia mascotta
mia mascotta
sem que nenhum dos
excursionistas de
domingo com seus cestos e garrafas
prestasse qualquer
atenção
e o vagão
chiava através dos trigais
tão devagar que
borboletas
entravam e saíam
[Tradução: Nelson Ascher]
FOR ALL I KNOW MAYBE SHE WAS HAPPIER...
For all I know maybe she was happier / than anyone / that lone crone in the
shawl / on the orangecrate train / with the little tame bird / in her
handkerchief / crooning / to it all the time / mia mascotta / mia
mascotta / and none of the sunday excursionists / with their bottles and
their baskets / paying any / attention / and the coach / creaking on through
cornfields / so slowly that / butterflies / blew in and out
A City Lights em 2002: na fachada (nas
barras vermelhas), a velha e boa rebeldia: "Stop war and war makers"
ERA UM ROSTO QUE AS TREVAS MATARIAM...
Era um rosto que as trevas matariam
num instante
um rosto facilmente magoável
por riso ou luz
"Pensamos
diversamente à noite"
disse-me certa vez
reclinando-se languidamente
E citaria Cocteau
"Sinto que há um anjo em mim" diria
"que eu abalo
constantemente"
Sorriria então olhando a esmo
me acenderia um cigarro
sorrindo e se erguendo
e estirando
sua doce anatomia
deixaria cair uma meia
[Tradução: Nelson Ascher]
IT WAS A FACE WHICH DARKNESS COULD KILL...
It was a face which darkness could kill / in an instant / a face as easily hurt
/ by laughter or light / 'We think differently at night' / she told me
once / lying back languidly / And she would quote Cocteau / 'I feel there is an
angel in me' she'd say / 'whom I am constantly / shocking' / Then she would
smile and look away / light a cigarrette for me / sigh and rise / and stretch /
her sweet anatomy / let fall a stocking
O OLHO DO POETA OBSCENO VENDO...
O olho do poeta obsceno vendo
vê a superfície do mundo redondo
com seus telhados bêbados
e pássaros de pau nos varais
e suas fêmeas e machos feitos
de barro
com pernas em fogo e peitos em
botão
em camas rolantes
e suas árvores de mistérios
e seus parques de domingos no parque e estátuas sem fala
e seus Estados Unidos
com suas cidades fantasmas e Ilhas Ellis vazias
e sua paisagem surrealista de
pradarias estúpidas
supermercados subúrbios
cemitérios com calefação
e catedrais que protestam
um mundo à prova de beijo um mundo de
tampas de privada e táxis
caubóis de butique e virgens de Las Vegas
índios sem terra e madames loucas por cinema
senadores anti-romanos e
conformistas
[ conformados
e todos os outros fragmentos desbotados
do sonho imigrante real demais
e disperso
entre esse pessoal que toma
banho de sol
[Tradução: Paulo Leminski]
THE POET'S EYE OBSCENELY SEEING...
The poet's eye osbcenely seeing / sees the surface of thc round world / with its
drunk rooftops / and wooden oiseaux on clotheslines / and its clay males and
females / with hot legs and rosebud breasts / in rollaway beds / and its trees
full of mysteries / and its Sunday parks and speechless statues / and its
America / with its ghost towns and empty Ellis Islands / and its surrealist
landscape of / mindless prairíes / super-market suburbs / stemheated cemeteries
/ and protesting cathedrals / a kissproof world of plastic toiletseats tampax
and taxis / drugged store cowboys and Ias vegas virgins / disowned indians and
cinemad matrons / unroman senators and conscientious non-objectors / and all the
other fatal shorrt-up fragments / of the immigrant's dream come too true / and
mislaid / among the sunbathers
SAUDAÇÃO
A cada animal que abate ou come sua própria
espécie
E cada caçador com rifles montados em
camionetas
E cada miliciano ou atirador particular
com mira telescópica
E cada capataz sulista de botas com seus cães
& espingardas de cano serrado
E cada policial guardião da paz com seus cães
treinados para rastrear & matar
E cada tira à paisana ou agente secreto
com seu
coldre oculto cheio de morte
E cada funcionário público que dispara contra o
público ou que alveja-para-matar
criminosos em fuga
E cada Guardia Civil em qualquer pais que
guarda os civis com algemas &
carabinas
E cada guarda-fronteiras em tanto faz qual
posto da barreira em tanto faz qual lado de
qual Muro de Berlim cortina de Bambu ou
de Tortilha
E cada soldado de elite patrulheiro rodoviário
em calças de equitação sob medida &
capacete protetor de plástico &
revólver em coldre ornado de prata
E cada radiopatrulha com armas antimotim &
sirenes
e cada tanque antimotim com
cassetetes & gás lacrimogênio
E cada piloto de avião com foguetes & napalm
sob as asas
E cada capelão que abençoa bombardeiros que
decolam
E qualquer Departamento de Estado de qualquer
superestado que vende armas aos dois lados
E cada Nacionalista em tanto faz que Nação em
tanto faz qual mundo Preto Pardo ou Branco
que mata por sua Nação
E cada profeta com arma de fogo ou branca e
quem quer que reforce as luzes do espírito
à força ou reforce o poder de qualquer
estado com mais Poder
E a qualquer um e a todos que matam & matam & matam & matam pela Paz
Eu ergo meu dedo médio na única saudação apropriada
Prisão de Santa Rita, 1968
[Tradução: Nelson Ascher]
SALUTE
To every animal who eats or shoots his own kind / And every hunter with rifles
mounted in pickup trucks / And every private marksman or minuteman / with
telescopic sight / And every redneck in boots with dogs / & sawed-off shotguns /
And every Peace Officer with dogs / trained to track & kill / And every
plainclothes-man or undercover agent / with shoulderholster full of death / And
every servant of the people gunning down people / or shooting-to-kill fleeing
felons / And every Guardia Civil in any country guarding civilians / with
handcuffs & carbines / And every border guard at no matter what Check Point
Charley / on no matter which side of which Berlin Wall / Bamboo or Tortilla
curtain / And every elite statetrooper highwaypatrolman in custom-tailored
ridingpants & plastic crash helmet / & shoestring necktie & sixshooter in
silver-studded holster / And every prowlcar with riotguns & sirens and every
riot-tank / with mace & teargas / And every crackpilot with rockets & napalm
underwing / And every skypilot blessing bombers at takeoff / And any State
Department of any superstate selling guns / to both sides / And every
Nationalist of no matter what Nation in no matter / what world Black Brown or
White / who kills for his Nation / And every prophet or poet with gun or shiv
and any enforcer / of spiritual enlightenment with force and any / enforcer of
the power of any state with Power / And to any and all who kill & kill & kill &
kill for Peace / I raise my middle finger / in the only proper salute
Santa Rita Prison, 1968
CAVALOS AO AMANHECER
Os cavalos os cavalos selvagens ao amanhecer
como numa aquarela de Ben Shahn
vivos em plena campina
no planalto ao longe
eles galopam
eles bufam
eles trovejam ao longe
seus cascos pequeninos
provocam pequenos trovões
insistentemente
como martelos de madeira batendo
num tambor distante
O sol ruge &
joga as sombras dos cavalos
pra fora da noite
[Tradução: Paulo Henriques Britto]
HORSES AT DAWN
The horses the horses the wild horses at dawn / as in a watercolor by Ben Shahn
/ they are alive in the high meadow / in the high country on the far mesa / you
can see them galloping / you can see them snorting / you can hear their thunder
distantly / you can hear the small thunder / of their small hooves / insistently
/ like wood hammers thrumming / on a distant drum / The sun roars & / throws
their shadows / out of the night
DOIS VARREDORES DE RUA NUM CAMINHÃO, DOIS
RICAÇOS NUM MERCEDES
Esperando a luz verde no sinal
centro de São
Francisco, nove da manhã
um brilhante caminhão amarelo de lixo
com dois lixeiros de jaquetas plásticas
[ vermelhas
pendurados de cada lado do estribo traseiro
olhando para um elegante casal
num elegante Mercedes conversível
O homem
vestindo ótimo terno de linho de três peças
cabelos louros até os ombros & óculos escuros
A jovem negligentemente penteada
saia curta e meias coloridas
a caminho de seu escritório de arquitetura
E os dois varredores acordados desde às Quatro
da Madrugada
sujando-se por todo o caminho
desde suas casas
O mais velho de cabelos crespos grisalhos
e corcunda
olhando para baixo como um
Quasímodo carrancudo
O mais jovem
também de óculos escuros & cabelos longos quase
da mesma idade do chofer do Mercedes
Os dois varredores olhando fixamente
como se de uma longa distância
o
lépido casal
como se assistindo a algum inodoro comercial
[ de TV
onde tudo é sempre possível
E a luz vermelha por um instante
manteve os quatro juntos na
mesma cena
como se afinal alguma coisa fosse possível
entre eles
através daquele grande golfo
nos altos mares
desta democracia
[Tradução: Marcos A.P. Ribeiro]
TWO SCAVENGERS IN A TRUCK,TWO BEAUTIFUL
PEOPLE IN A MERCEDES
At the stoplight waiting for the light / Nine A.M. downtown san Francisco / a
bright yellow garbage truck / with two garbagemen in red plastic blazers /
standing on the back stoop / one on each side hanging on / and looking down into
/ an elegant open Mercedes / with an elegant couple in it / The man / in a hip
three-piece linen suit / with shoulder-length blond hair & sunglasses / The
young blond woman so casually coifed / with a short skirt and colored stockings
/ on the way to his architect's office / And the two scavengers up since Four
A.M. / grungy from their route / on the way home / The older of the two with
grey iron hair / and hunched back / looking down like some / gargoyle Quasimodo
/ And the younger of the two / also with sunglasses & longhair / about the same
age as the Mercedes driver / And both scavengers gazing down / as from a great
distance / at the cool couple / as if they were watching some odorless TV ad /
in which every-thing is always possible / And the very red light for an instant
/ holding all four close together / as if anything at all were possible /
between them / across that great gulf / in the high seas / of this democracy
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