Número 202 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 28 de março de 2007 

«Quimonos secando / ao sol. Oh aquela manguinha / da criança morta!» (Bashô) *
 


Mariana Ianelli


Caros amigos,


Paulistana, nascida em 1979,
Mariana Ianelli é jornalista e mestre em literatura. Escritora precoce, já publicou quatro livros de poesia: Trajetória de Antes (1999); Duas Chagas (2001); Passagens (2003); e Fazer Silêncio (2005).

Talvez o primeiro aspecto a destacar na poesia de Mariana Ianelli seja o tom reflexivo. Embora muito jovem, ela surpreende com a maturidade de pensamento. Como assinala a poeta e crítica Sônia Régis, escrevendo sobre o livro Passagens: "Seus poemas são pesados de reflexão, são como rastros nas areias do deserto a indicar alguma trilha como possibilidade de conhecimento e de salvação. De aprendizagem, principalmente".

Para confirmar a inclinação meditativa da poesia de Mariana Ianelli, vale lembrar que, em Passagens, ela se propõe a fazer uma releitura de textos bíblicos (O Livro de Jó e Lamentações). Na amostra ao lado, que contém poemas de todos os quatro livros dela, pode-se constatar que a reflexão é mesmo o traço mais destacado dessa poeta.

Para Sônia Régis, Mariana tenta "religar o homem à sua memória (...) no enigma de ser e existir". Dessa memória sua "trajetória de antes" , claro, também faz parte o animal, que fomos e somos. Ou, como diz a própria poeta num poema não transcrito aqui: "O animal arredio que vive dentro do homem/ A maquinar contra o amor e a razão".


Para saber mais sobre Mariana Ianelli, visite o site dela.



Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



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MAIS MARIANA IANELLI

Veja mais poemas de Mariana Ianelli no boletim
- poesia.net 289

Trajetória de antes

Mariana Ianelli

 


FILHOS DO FOGO

Não foi o cansaço da jornada
Que de novo nessa noite nos venceu,
Mas um sofrimento antigo, igual a sempre,
A realidade com sua mão espadaúda
Juntando a poeira de uns castelos demolidos,
De tudo extraindo o que sobra de nosso, afinal:
O irreversível.

Cultivamos rituais silenciosos,
Temos dentro de nós a alma do mundo.
Fomos feitos para a solidão,
A mesma que sente um animal
Ao largar o seu rebanho
E esperar a morte suavemente
Numa longa tarde de chuva em Gibeon.

Damos calor às coisas enquanto é tempo
E mais tempo há enquanto estamos mudos.
Gozamos um amor tranqüilo, sem heroísmo.
Assim acontece certas vezes, por espanto:
De um golpe, o infinito nos apanha.

               De Fazer Silêncio (2005)



PÂNTANO

Haverá uma noite
No fundo desta lama
Para tudo o que foi teu:
O caminho de partida,
O horizonte das bandeiras,
O extraordinário ano de 1980.

Entre guelras e barbatanas,
No ventre de uma água sonolenta,
O castelo de tua memória se acende.
Ressurge um alto portão de madeira,
De longe brilha a pesada maçaneta,
Cresce para baixo o tronco do velho castanheiro.

No escuro passeia o teu amigo inexistente,
Deitam-se juntas as tuas amantes insatisfeitas,
Do topo de uma escada o teu filho te acena.
Os muros contornados e logo desconhecidos,
As alamedas visitadas e já desaparecidas
Formarão ali tua cidade secreta e sem
                                            [ fronteiras.

O retorno para casa como se para um cativeiro,
Toda vacuidade do suplício e do desejo,
Um gemido de orgasmo reboando no silêncio:
Tudo o que foi teu renascerá
No pântano de uma noite derradeira
Para além do tempo do esquecimento.

               De Fazer Silêncio (2005)



FAZER SILÊNCIO

Seja o ar da montanha
Para o sono dos cordeiros.

Neve recém-caída,
Puríssimo grão de açúcar,
Duna sob a lua cheia.

Tal qual o fruto da terra
Que se dá a comer no sexto dia.

Jazida inexplorada,
Casa sem mobília,
Vácuo do não-dito,
Êxtase nunca interrompido.

Tal como o olho cego
Que percebe o invisível,
Gema de opalina.

Seja o restante, o indiviso.

Magma transmudado em cinza,
Fóssil na noite da cripta,
O vaivém milenar da água viva,
Líquido momento de sentir
E estar sozinho.

Fazer silêncio.


               De Fazer Silêncio (2005)



[AVE DEGOLADA É A TUA MEMÓRIA]

Ave degolada é a tua memória,
Inocência ressentida de abandono,
Grande mentira imperdoada,
Brasa que resiste ainda,
Chuva de cinzas num mar que não acaba.
Fica a pergunta indesejável e necessária:
Quantas figuras reais sonhaste em teu luto
Sem que a imaginação as transformasse em
                                           [ fatuidade ?
Horror de algo que pulsa e não existe mais,
O que por ti já passou, mas sempre retornará,
Carrossel dos enforcados, profecia de tua
                                           [ desgraça,
Insânia nas alturas, e mais desgraça.


               De Passagens (2003)



ESSENCIAL

O branco há de me cobrir.
Nenhuma ótima filosofia,
Nenhuma música para essa vez.
Os bárbaros conversam comigo do poço,
Os mais hábeis, os mais inertes.
Minha confidência se abre para eles:
É a demolição do minuto pontual,
Da cadeia insustentável de regras,
Dos meus calçados infalíveis
Que respeitaram sempre um certo simulacro.
Bárbaros por uma ausência profana
De ideais e arrependimentos:
O exemplo da rendição inocente.
Deveres à parte,
Costumes exauridos e desígnios à parte,
O branco há de deitar sobre mim.

               De Duas Chagas (2001)



BUSCA

Não se sabe de Clara.
Se me procuram para revelações,
Esvazio o meu rosto e quedo,
Ocultando a sua ida.
Eu aceito, se me acusam.
Sua figura longa vertendo,
Tardando, com a retina em veludo
Clara, cedendo, num gesto de flor.
Se me encerram, eu não rogo ou protesto.
Sua forma contrária andando na terra,
Invertendo as linhas que seguiam retas,
Sua passagem lenta pelas trilhadas
Se firmou algures...
Mas se aumentam as pesquisas,
Esquadrinham suspeitas,
Eu vou tomar seus olhos convincentes
E com eles direi:
"Não há mais Clara".

               De Trajetória de Antes (1999)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

Mariana Ianelli
•  "Filhos do fogo", "Pântano" e "Fazer Silêncio"
    in Fazer Silêncio
   
Iluminuras, São Paulo, 2005
•  "[Ave Degolada é a Tua Memória]"
    in Passagens
   
Iluminuras, São Paulo, 2003
•  "Essencial"
    in Duas Chagas
   
Iluminuras, São Paulo, 2001
•  "Busca"
    in Trajetória de Antes
   
Iluminuras, São Paulo, 1999
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* Matsuo Bashô (Japão, 1644-1694),
  trad. Manuel Bandeira,
  in Poemas Traduzidos (1945)