Vítor Oliveira Jorge
Caros,
"Fazer poesia é uma forma de jardinagem", garante o poeta português Vítor
Oliveira Jorge. Nascido em Lisboa, em 1948, Oliveira Jorge é arqueólogo e
professor da Faculdade de Letras, na Universidade do Porto. Seu primeiro livro,
Trinta e Nove Poemas Litorais, foi publicado em Angola, em 1973. Mas ele
considera que sua primeira obra "amadurecida" só apareceu em 1980.
De lá para cá, o poeta mantém atividade prolífica tanto na produção como na
publicação. Este boletim baseia-se em dois de seus trabalhos: A Suspensão do
Mundo, de 2003, e Pequeno Livro de Aforismos seguido de Algumas
Alumiações, de 2006.
No Livro de Aforismos, o poeta começa por dizer que seus textos não são
aforismos, nos sentidos registrados no dicionário. Desse modo, coloca-se à
vontade para escrever poemas que, de fato, têm poucos traços aforísticos.
O volume A Suspensão do Mundo tem o formato de um grande poema,
subdividido em partes numeradas. No bloco 6, homônimo do livro, o poeta delineia
um paralelo entre o mundo exterior e o que vai dentro do corpo, tudo isso
observado à luz (ou à falta de luz) da "indecidibilidade do mundo". No
bloco 14, "Traço", o tom é sensual. Ali o eu lírico tenta, em frases, fazer o
papel do desenhista para dizer/traçar o corpo de uma mulher.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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O mundo indecidível
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Vítor Oliveira Jorge |
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fazer poesia é uma forma
de jardinagem:
manipular as plantas,
as coisas vivas.
umas fenecem,
outras surpreendem-nos
ao acordar,
pela carne
que discretamente
desenvolveram
durante a noite,
pelo tacto de veludo,
pela luz que parece
vir do seu centro.
às vezes, há uma flor que pende
no meu escritório,
e eu diria perdida.
e subitamente, a mesma flor
ressurge
no canteiro da varanda,
no lado oposto da casa.
fazer é polinizar,
provocar efeitos,
mas nunca se sabe
para que tempo,
nem a que distância.
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as pessoas frustradas
são como solos ácidos.
ávidas de cálcio
que imaginam não ter,
tentam arrastar-nos
para o fundo dos seus boiões,
onde supomos que há vapores
que nos consumiriam
até os ossos.
as pessoas invejosas
mineralizam o mundo,
e assim alimentam
os pequenos vermes
litófagos.
quem pois insensatamente disse
que elas não são,
a seu modo,
também úteis?
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o que eu procuro em ti,
ó amante maravilhosamente disponível,
é esquecer-me do que procuro,
e também de mim.
De "Pequeno Livro de Aforismos" (2006)
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quando baixo
durante muito tempo
os olhos para ler,
sei que aquilo
que é invisível à minha volta
aproveita para emergir.
pressinto movimento,
presenças, amigos,
vultos, volumes,
frenesim vivo.
mas quando de repente
levanto a cabeça,
só vejo os mesmos móveis
as mesmas estantes
que aqui estavam
quando me alheei.
o tique-taque do relógio
é que, salvo erro,
se manteve sempre.
às vezes um grilo canta.
De "Algumas Alumiações" (2006)
14. TRAÇO
traço o dorso da frase
como o desenhador
que sobre a superfície pura
delineasse a curvatura
das tuas espáduas.
numa liberdade total
numa suspensão
quase asfixiante.
como uma tarde que resistisse
a declinar no clarão final
das tuas nádegas,
no aveludado êxtase
do seu volume.
enquanto por todo o chão
se espalham e se adensam
as ervas odoríferas
modelo cada vértebra
da tua coluna,
e sob o amarelo da pele
o tempo vai emergindo
numa escassez fóssil
quase irrespirável.
é assim que a tua beleza
se completa, atrai
e atraiçoa.
6. A SUSPENSÃO DO MUNDO
aqui por fora arde
e está seco:
é o reino do pó e do sol,
enquanto
no interior do corpo
se ouve o correr do sangue,
o contínuo deslizar dos fluidos.
cá dentro faz sombra:
é como em casa
quando se chega,
e os refrescos florescem
nos centros das mesas,
como as jarras garridas
nos quadros de matisse,
com as persianas
entreabertas para a rua.
mas aqui fora as pedras são rugosas,
— enquanto por dentro
a eternidade prossegue
sem asperezas.
os homens suam
com orgulho
de manipularem o mundo;
enquanto por dentro o corpo
é feminino, sente-se a si próprio
na sua intimidade receptiva.
é nesse jogo de contrastes
e complementaridades
que se tece o nosso dia-a-dia.
mas a beleza das pedras
está precisamente em serem
presenças mudas.
e a felicidade desta areia, o facto dela ser
tão intocada, que um simples passo
lhe deixa um rasto para a eternidade.
indecidibilidade do mundo,
suspensão do sentido
resistindo às pressas do corpo
e das perguntas insistentes.
De A Suspensão do Mundo (2003)
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