Número 203 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 4 de março de 2007 

«O amor/ é um calafrio/ que nos percorre/ o corpo/ e vai desaguar/ na foz/ de um secreto rio.» (Francisco Carvalho) *
 


Vítor Oliveira Jorge


Caros,

"Fazer poesia é uma forma de jardinagem", garante o poeta português Vítor Oliveira Jorge. Nascido em Lisboa, em 1948, Oliveira Jorge é arqueólogo e professor da Faculdade de Letras, na Universidade do Porto. Seu primeiro livro, Trinta e Nove Poemas Litorais, foi publicado em Angola, em 1973. Mas ele considera que sua primeira obra "amadurecida" só apareceu em 1980.

De lá para cá, o poeta mantém atividade prolífica tanto na produção como na publicação. Este boletim baseia-se em dois de seus trabalhos: A Suspensão do Mundo, de 2003, e Pequeno Livro de Aforismos seguido de Algumas Alumiações, de 2006.


No Livro de Aforismos, o poeta começa por dizer que seus textos não são aforismos, nos sentidos registrados no dicionário. Desse modo, coloca-se à vontade para escrever poemas que, de fato, têm poucos traços aforísticos.

O volume A Suspensão do Mundo tem o formato de um grande poema, subdividido em partes numeradas. No bloco 6, homônimo do livro, o poeta delineia um paralelo entre o mundo exterior e o que vai dentro do corpo, tudo isso observado à luz (ou à falta de luz) da "indecidibilidade do mundo".  No bloco 14, "Traço", o tom é sensual. Ali o eu lírico tenta, em frases, fazer o papel do desenhista para dizer/traçar o corpo de uma mulher.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



                      •o•



 

O mundo indecidível

Vítor Oliveira Jorge

 

 

11

fazer poesia é uma forma
de jardinagem:

manipular as plantas,
as coisas vivas.

umas fenecem,

outras surpreendem-nos
ao acordar,

pela carne
que discretamente
desenvolveram
durante a noite,

pelo tacto de veludo,
pela luz que parece
vir do seu centro.

às vezes, há uma flor que pende
no meu escritório,
e eu diria perdida.

e subitamente, a mesma flor
ressurge
no canteiro da varanda,
no lado oposto da casa.

fazer é polinizar,
provocar efeitos,

mas nunca se sabe
para que tempo,
nem a que distância.



13

as pessoas frustradas
são como solos ácidos.

ávidas de cálcio
que imaginam não ter,
tentam arrastar-nos

para o fundo dos seus boiões,
onde supomos que há vapores
que nos consumiriam
até os ossos.

as pessoas invejosas
mineralizam o mundo,

e assim alimentam
os pequenos vermes
litófagos.

quem pois insensatamente disse
que elas não são,
a seu modo,

também úteis?



21

o que eu procuro em ti,
ó amante maravilhosamente disponível,
é esquecer-me do que procuro,
e também de mim.


               De "Pequeno Livro de Aforismos" (2006)


3

quando baixo
durante muito tempo
os olhos para ler,
sei que aquilo
que é invisível à minha volta
aproveita para emergir.

pressinto movimento,
presenças, amigos,
vultos, volumes,
frenesim vivo.

mas quando de repente
levanto a cabeça,

só vejo os mesmos móveis
as mesmas estantes
que aqui estavam
quando me alheei.

o tique-taque do relógio
é que, salvo erro,
se manteve sempre.

às vezes um grilo canta.

               De "Algumas Alumiações" (2006)



14. TRAÇO

traço o dorso da frase
como o desenhador
que sobre a superfície pura
delineasse a curvatura
das tuas espáduas.

numa liberdade total
numa suspensão
quase asfixiante.
como uma tarde que resistisse
a declinar no clarão final
das tuas nádegas,
no aveludado êxtase
do seu volume.

enquanto por todo o chão
se espalham e se adensam
as ervas odoríferas

modelo cada vértebra
da tua coluna,
e sob o amarelo da pele
o tempo vai emergindo
numa escassez fóssil

quase irrespirável.

é assim que a tua beleza
se completa, atrai
e atraiçoa.



6. A SUSPENSÃO DO MUNDO

aqui por fora arde
e está seco:
é o reino do pó e do sol,
enquanto
no interior do corpo
se ouve o correr do sangue,
o contínuo deslizar dos fluidos.

cá dentro faz sombra:
é como em casa
quando se chega,
e os refrescos florescem
nos centros das mesas,
como as jarras garridas
nos quadros de matisse,
com as persianas
entreabertas para a rua.

mas aqui fora as pedras são rugosas,
— enquanto por dentro
a eternidade prossegue
sem asperezas.

os homens suam
com orgulho
de manipularem o mundo;
enquanto por dentro o corpo
é feminino, sente-se a si próprio
na sua intimidade receptiva.

é nesse jogo de contrastes
e complementaridades
que se tece o nosso dia-a-dia.

mas a beleza das pedras
está precisamente em serem
presenças mudas.
e a felicidade desta areia, o facto dela ser
tão intocada, que um simples passo
lhe deixa um rasto para a eternidade.

indecidibilidade do mundo,
suspensão do sentido
resistindo às pressas do corpo
e das perguntas insistentes.

               De A Suspensão do Mundo (2003)

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

Vítor Oliveira Jorge
•  "11", "13", "21", "3"
   In Pequeno Livro de Aforismos seguido de
    Algumas Alumiações
   
Edição do autor, Porto, 2006
•  "Traço", "A Suspensão do Mundo"
    In A Suspensão do Mundo
   
Editora Ausência, Porto, 2003
______________
* Francisco Carvalho, "Calafrio" (texto
  completo), in Memórias do Espantalho