Número 208 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 9 de maio de 2007 

«Creio que o morto chorou depois da morte./ Chorou por não ter sido outro./ (É só por isso que se chora.)» (Cecília Meireles) *
 


Aleilton Fonseca


Caros,

O escritor e professor baiano Aleilton Fonseca (1959-) é mais da prosa que da poesia. Em prosa, dois de seus trabalhos mais recentes são O Canto de Alvorada (contos, 2003) e Nhô Guimarães (romance, 2006). Na poesia, estreou em 1981, com Movimento de Sondagem. Em seguida, publicou O Espelho da Consciência (1984) e Teoria Particular (Mas Nem Tanto) do Poema — ou Poética Feita em Casa (1994).

Em 2006, Aleilton organizou As Formas do Barro & Outros Poemas, uma reunião de seus escritos poéticos, revista e diminuída. A uma seleção de poemas dos três livros anteriores agregou textos inéditos ou publicados dispersamente em revistas. Dessa coletânea extraí os poemas mostrados ao lado.

Muito ativo na área literária, Aleilton é também diretor da revista Iararana, sediada em Salvador, que vem se firmando como uma das mais permantes publicações da atualidade.

Quande se lê As Formas do Barro atentando para a evolução de um livro para outro, nota-se claramente a evolução da poesia de Aleilton Fonseca. Ao longo do tempo, o poeta vai-se apetrechando de de novas técnicas e ardis. Os textos  ganham compleição mais sofisticada até desaguar em peças como "Moças e Garças" ou "As Formas do Barro", o poema-título.

Em "Moças e Garças" se desenha o lirismo do homem que olha para trás e se vê numa paisagem do interior, com o rio, as garças e as moças inatingíveis dos sonhos infanto-juvenis. Garças e moças diluídas no tempo. No metapoema "As Formas do Barro", o poeta aproxima
a criação poética ao ofício do oleiro, que transforma a argila em objetos artesanais.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



                      •o•


QUINTA POÉTICA

Amanhã, 10 de maio, um bom programa para você, de São Paulo: é a Quinta Poética, realizada na Casa das Rosas. Participam os poetas Contador Borges, Floriano Martins, Raimundo Gadelha e Israel Azevedo. A entrada é livre. Anote:

Data: 10 de maio, quinta-feira
Hora: 19h00
Local: Casa das Rosas
           Av. Paulista, 37
           Tel: (11) 3285-6986
       


 

As formas do barro

Aleilton Fonseca

 



MOÇAS E GARÇAS

O rio mergulhava em nossas tardes
e nos vinha inundar os olhos,
enquanto olhávamos as garças
que pousavam nas pedras baixas,
com suas asas talhadas:
chegássemos mais perto delas,
voejavam no lençol corrente,
e só as águas sobravam.

O rio se afogava em nossas noites
e nos vinha inundar os sonhos,
enquanto olhávamos as moças
que escoavam nas pedras baixas,
com suas curvas molhadas:
chegássemos mais perto delas,
diluíam-se na água corrente
e só os desejos sobravam.



AS FORMAS DO BARRO

Eu trago as formas do barro
esculpidas em minhas mãos:
o cheiro molhado de argila
umedece as minhas palavras
e o sol que vem do passado
revela um segredo guardado.

A mão cumpre o risco no ar
e os dedos beneficiam a argila,
mergulhando no gesto vertical.
A esquerda recebe a dádiva
e juntas compartilham o corpo
medido em areia, argila e água.

O verbo nas mãos se enconcha,
se eleva, beija o ar em curva,
e sobre o vazio da forma passa
contra a madeira sem reclame.
A direita alça o arco de arame
e as aparas se despem da massa.

Assim se repete a procura
em novo bolo que se enforma:
vira-se a forma sobre a mesa
de trabalho do artesão,
e feito o asseio de areia,
dois poemas brotam no chão.

De dois em dois, em soma de pares
os montes de argila se multiplicam.
E o oleiro, sem que se repare,
contempla as paredes do futuro,
que hoje, por certo, ainda abrigam
os seus sonhos riscados num muro.



ANTI(TESTAMENTO)

Os pais, os avós
cumpriram os caminhos;
já não têm a bênção do futuro:
caminhemos sozinhos.

Os pais, os avós
inventaram ofícios;
mas agora é difícil:
aprendamos sozinhos.

os pais, os avós,
remoemos seus versos;
os nossos poemas
são pós diversos.

os pais, os avós,
os sinais da estrada,
seus contras, seus prós,
somos nós,
entre o Sol
e o nada.



PROJEÇÕES

imagem,
não lhe conheço o fundo
do olhar:
mas habito no teu sonho,
enquanto mudo e invisível

caminho:
entre verbo e substância,
planto sílabas no bolso,
caixas de sentido móvel:
e o mais vermelho óleo
nas veias

imagem e caminho,
mergulho no mundo
do mar amaro e largo:
como sumo de algas soltas
nos sulcos de mastros:
somos poucos,
impossíveis
e bastos



NOTÍCIA

Um poema beliscou-me
e passou
tão de súbito
que não tive tempo
de capturá-lo.

Desde então
trago
esta página
em branco
no meu olhar.
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

Aleilton Fonseca
•  As Formas do Barro & Outros Poemas
    EPP Publicações, Salvador, 2006
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* Cecília Meireles (1901-1964), "Os Mortos",
  in Mar Absoluto e Outros Poemas (1945)