Afonso Henriques Neto
Caros,
Nascido em Belo Horizonte, em 1944, o poeta Afonso
Henriques Neto transferiu-se aos 10 anos para o Rio Janeiro e depois para
Brasília, onde concluiu o curso de direito. Afonso Neto estreou na poesia em
1972 com o livro O Misterioso Ladrão de Tenerife, escrito em parceria com
Eudoro Augusto. Em 1976, publicou Restos & Estrelas & Fraturas e, até
hoje, já produziu cerca de dez títulos de poesia.
Pertencente a uma linhagem de poetas mineiros, Afonso Henriques [de Guimarães]
Neto é filho do poeta contemporâneo
Alphonsus de Guimaraens Filho (1918-) e neto do simbolista
Alphonsus de Guimaraens
(1870-1921) . Seu nome começou a circular com mais
freqüência depois que Afonso Neto apareceu na já histórica antologia 26
Poetas Hoje, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda em 1976. Essa
coletânea deu foro nacional à chamada geração mimeógrafo, integrada pelos ditos
"poetas marginais".
Depois dos anos 70, Afonso Henriques Neto experimentou outras formas poéticas e,
mais recentemente, desenvolveu um trabalho que se aproxima do surrealismo. Neste
boletim, escolhi, de propósito, algumas peças que nem se enquadram claramente no
rótulo "marginal" nem pendem para a safra neo-surrealista. Os quatro poemas ao
lado foram extraídos do livro Ser Infinitas Palavras, reunião de textos
escolhidos e versos inéditos publicada em 2001.
Abro a minisseleta deste boletim com um poema sem título de 1975 que me parece
marcado por um tom solene de mantra: "engole o peixe com a espinha / e tocarás a
guelra de Deus". As raízes mineiras do poeta aparecem em "Café com Broa". Neste,
o poeta confessa: "nunca perdi o jeitão / de me fazer habitante / de insondáveis
minas". E arremata: "minas é muito mais fundo". Nesse aspecto, ele repete o que
parece ser um consenso na mitologia mineira: "Minas é dentro / e fundo"
(Drummond, em As Impurezas do Branco, 1973).
Nos poemas "Exercício" e "Discurso", Afonso Henriques Neto exibe, mais uma vez,
uma certa visão oriental que já se insinuava nos versos em tom de mantra:
"empurre as mãos lentamente / através da pele do rio / até tocar o coração da
beleza". Ou então: "o nascer e o morrer / não nos acontece. / só para os outros
somos espetáculo."
Pensando bem, esses poemas estão mais para pensador zen do que para poeta
marginal.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
RETRATO DE CLASSE
Dica para quem está em São Paulo. No dia 25 de maio, o jornalista e cineasta
Gregório Bacic (atual diretor de programas como Provocações e Contos
da Meia-Noite, da TV Cultura), vai mostrar o documentário Retrato de
Classe, realizado em 1977
para o Globo Repórter. O trabalho, superelogiado à época, parte de uma clássica
fotografia reunindo a professora e as crianças de uma turma do primário, em São
Paulo. Vinte anos depois, Bacic promove seu reencontro.
A foto: ponto de partida para o documentário, vinte anos depois
As diferentes trajetórias de vida dos ex-colegas mostram as desigualdades
sociais, o preconceito, assim como os sonhos e frustrações daquelas pessoas.
Vale lembrar que era 1977, em plena ditadura militar e já na fase de esgotamento
do chamado "milagre brasileiro". Um documentário exemplar, que vale a pena ver,
trinta anos depois de sua realização. A entrada é franca.
Data: sexta feira, 25/05/2006
Hora: 19h00
Local: Fundação Getúlio Vargas
Sessão Cine/DOC/GV
Rua Itapeva, 432,
4º andar,
Salão Nobre |
O peixe e a espinha
|
Afonso Henriques Neto |
|
*
engole o peixe com a espinha
e tocarás a guelra de Deus
aprende todas as palavras antes de
reduzi-las a Uma
ser infinitas palavras não precisar de Nenhuma
De
Restos & Estrelas & Fraturas (1975)
CAFÉ COM BROA
pois do fundo das minas gritaram
meu nome estalidos de ossos do paraíso. meu avô medievo raspou
de cima do poema o farelo da rosquinha esmalte trincado do bule.
altas copas mangueirais azuis. meu avô boa praça sumiu no verso da
névoa. da carne das minas essa inauguração de mim. ave maria pai
nosso minha mãe me botava na cama meu pai sorrindo a poesia
quentinha. o café o hálito da tarde. jabuticabas pêssegos jambos
dentro do sono do tio. um dia reclamaram que a música como a vida
se partira
e eu nunca perdi o jeitão de me fazer habitante de insondáveis
minas fazenda circo solidão. enterrar passarinho morto e flores de
natal. fazer da cigarra o sangue circulando em praça e quintal. por
favor esqueça meu rosto. minas é muito mais fundo.
De
Ossos do Paraíso (1981)
EXERCÍCIO
empurre as mãos lentamente
através da pele do rio até tocar o coração da beleza (ruína do
tempo impenetrável)
depois as retire lentamente como se puxasse do infinito a
respiração
da criança nascendo
De Piano Mudo (1992)
DISCURSO
nada existe, celebremos a alegria. o nascer e o morrer não
nos acontece.
só para os outros somos espetáculo. há vento em excesso
pelos buracos da linguagem.
um jardim muito espesso labirinto de idéias flocos de imagens
sobre natais de fumaça.
nada existe, celebremos aventura. tudo se instala o sentido
esvaziou-se do oceano
praias da totalidade. o que não existe celebra a concretude.
é grave a pedra
a pele desgarrada o esqueleto do silêncio. lábios se tocam em
alegria
beijo seco jardim de séculos. quase nenhuma fala ninguém
mas os caminhos.
recordemos: infância veloz olfato de espantos estátua
ardente arfando
no sonho. apenas não há ninguém mas os espaços (apenas o
já nascido
previamente ido). infinito buraco sem tempo celebração.
De Abismo com Violinos (1995)
|