Número 209 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 16 de maio de 2007 

«Rosa, ó pura contradição, volúpia / de ser o sono de ninguém sob tantas / pálpebras.» (Rainer Maria Rilke) *
 


Afonso Henriques Neto


Caros,


Nascido em Belo Horizonte, em 1944, o poeta Afonso Henriques Neto transferiu-se aos 10 anos para o Rio Janeiro e depois para Brasília, onde concluiu o curso de direito. Afonso Neto estreou na poesia em 1972 com o livro O Misterioso Ladrão de Tenerife, escrito em parceria com Eudoro Augusto. Em 1976, publicou Restos & Estrelas & Fraturas e, até hoje, já produziu cerca de dez títulos de poesia.

Pertencente a uma linhagem de poetas mineiros, Afonso Henriques [de Guimarães] Neto é filho do poeta contemporâneo Alphonsus de Guimaraens Filho (1918-) e neto do simbolista Alphonsus de Guimaraens
(1870-1921) . Seu nome começou a circular com mais freqüência depois que Afonso Neto apareceu na já histórica antologia 26 Poetas Hoje, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda em 1976. Essa coletânea deu foro nacional à chamada geração mimeógrafo, integrada pelos ditos "poetas marginais".

Depois dos anos 70, Afonso Henriques Neto experimentou outras formas poéticas e, mais recentemente, desenvolveu um trabalho que se aproxima do surrealismo. Neste boletim, escolhi, de propósito, algumas peças que nem se enquadram claramente no rótulo "marginal" nem pendem para a safra neo-surrealista. Os quatro poemas ao lado foram extraídos do livro Ser Infinitas Palavras, reunião de textos escolhidos e versos inéditos publicada em 2001.


Abro a minisseleta deste boletim com um poema sem título de 1975 que me parece marcado por um tom solene de mantra: "engole o peixe com a espinha / e tocarás a guelra de Deus". As raízes mineiras do poeta aparecem em "Café com Broa". Neste, o poeta confessa: "nunca perdi o jeitão / de me fazer habitante / de insondáveis minas". E arremata: "minas é muito mais fundo". Nesse aspecto, ele repete o que parece ser um consenso na mitologia mineira: "Minas é dentro / e fundo" (Drummond, em As Impurezas do Branco, 1973).

Nos poemas "Exercício" e "Discurso", Afonso Henriques Neto exibe, mais uma vez, uma certa visão oriental que já se insinuava nos versos em tom de mantra: "empurre as mãos lentamente / através da pele do rio / até tocar o coração da beleza". Ou então: "o nascer e o morrer / não nos acontece. / só para os outros somos espetáculo."

Pensando bem, esses poemas estão mais para pensador zen do que para poeta marginal. 


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



                      •o•

RETRATO DE CLASSE

Dica para quem está em São Paulo. No dia 25 de maio, o jornalista e cineasta Gregório Bacic (atual diretor de programas como Provocações e Contos da Meia-Noite, da TV Cultura), vai mostrar o documentário Retrato de Classe, realizado em 1977
para o Globo Repórter. O trabalho, superelogiado à época, parte de uma clássica fotografia reunindo a professora e as crianças de uma turma do primário, em São Paulo. Vinte anos depois, Bacic promove seu reencontro.


A foto: ponto de partida para o documentário, vinte anos depois


As diferentes trajetórias de vida dos ex-colegas mostram as desigualdades sociais, o preconceito, assim como os sonhos e frustrações daquelas pessoas. Vale lembrar que era 1977, em plena ditadura militar e já na fase de esgotamento do chamado "milagre brasileiro". Um documentário exemplar, que vale a pena ver, trinta anos depois de sua realização. A entrada é franca.

Data: sexta feira, 25/05/2006
Hora: 19h00
Local: Fundação Getúlio Vargas
           Sessão Cine/DOC/GV
           Rua Itapeva, 432, 4º andar,
           Salão Nobre

O peixe e a espinha

Afonso Henriques Neto

 



*


engole o peixe com a espinha
e tocarás a guelra de Deus

aprende todas as palavras
antes de reduzi-las a Uma

ser infinitas palavras
não precisar de Nenhuma

                    De Restos & Estrelas & Fraturas (1975)



CAFÉ COM BROA

pois do fundo das minas
gritaram meu nome
estalidos de ossos
do paraíso.
meu avô medievo
raspou de cima do poema
o farelo da rosquinha
esmalte trincado do bule.
altas copas mangueirais azuis.
meu avô boa praça
sumiu no verso
da névoa.
da carne das minas
essa inauguração de mim.
ave maria pai nosso
minha mãe me botava
na cama meu pai
sorrindo a poesia quentinha.
o café
o hálito da tarde.
jabuticabas pêssegos jambos
dentro do sono do tio.
um dia reclamaram
que a música
como a vida
se partira
e eu nunca perdi o jeitão
de me fazer habitante
de insondáveis minas
fazenda circo solidão.
enterrar passarinho morto
e flores de natal.
fazer da cigarra o sangue
circulando em praça e quintal.
por favor esqueça meu rosto.
minas é muito mais fundo.

                    De Ossos do Paraíso (1981)



EXERCÍCIO

empurre as mãos lentamente
através da pele do rio
até tocar o coração da beleza
(ruína do tempo impenetrável)

depois as retire lentamente
como se puxasse do infinito
a respiração
da criança nascendo

                    De Piano Mudo (1992)



DISCURSO

nada existe, celebremos
a alegria.
o nascer e o morrer
não nos acontece.
só para os outros
somos espetáculo.
há vento em excesso
pelos buracos da linguagem.
um jardim muito espesso
labirinto de idéias
flocos de imagens sobre natais de fumaça.
nada existe, celebremos
aventura.
tudo se instala
o sentido esvaziou-se do oceano
praias da totalidade.
o que não existe
celebra a concretude.
é grave a pedra
a pele desgarrada
o esqueleto do silêncio.
lábios se tocam em alegria
beijo seco
jardim de séculos.
quase nenhuma fala
ninguém
mas os caminhos.
recordemos:
infância veloz
olfato de espantos
estátua ardente arfando
no sonho.
apenas não há
ninguém
mas os espaços
(apenas o já nascido
previamente ido).
infinito buraco sem tempo
celebração.

                    De Abismo com Violinos (1995)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

Afonso Henriques Neto
In Ser Infinitas Palavras (Poemas Escolhidos e Versos Inéditos)
Azougue Editorial, Rio de Janeiro, 2001
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* Rainer Maria Rilke, "Epitáfio", trad. de Manuel Bandeira,
  in Bandeira, Poemas Traduzidos