Número 210 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 23 de maio de 2007 

«As palavras têm rosto: ou de silêncio ou de sangue.» (António Ramos Rosa) *
 


Ivan Junqueira


Caros,

Talvez vocês não conheçam o poeta Ivan Junqueira. Mas se já leram em português poetas como Charles Baudelaire, T.S. Eliot e Dylan Thomas ou prosadores como Marguerite Yourcenar, quase com certeza leram Ivan Junqueira. De fato, ele é mais conhecido pelas traduções do que por seus próprios poemas. Seu nome certamente figura entre os escritores com maiores serviços prestados na seara da tradução poética. Destemido, Ivan Junqueira traduziu a poesia completa de Baudelaire, de Eliot e de Dylan Thomas.

Nascido no Rio de Janeiro em 1934, Junqueira estudou medicina e filosofia, cursos que não concluiu. Depois, iniciou-se no jornalismo e foi desenvolvendo habilidades de editor, ensaísta e conferencista. Na poesia, Ivan Junqueira estreou em 1964, com o livro Os Mortos. Seus seis livros foram publicados em 1999 no volume Poemas Reunidos. (Record). Outra coletânea de nome similar, Poesia Reunida, saiu em 2005 pela editora Girafa.
Os poemas da amostra ao lado foram extraídos da primeira reunião, a de 1999.

Não é preciso muito esforço para identificar em Ivan Junqueira um poeta neoclássico. Expressando-se quase sempre em versos medidos, rimados ou não, ele muitas vezes recorre às formas fixas, como os sonetos. De fato, o poeta parece sentir-se mais à vontade com esses padrões do que com com o verso livre, que é raro em sua obra.

Outro traço marcante na poesia de Ivan Junqueira é a aproximação com a música. O poeta não apenas cultiva o ritmo ("É o vento que vem uivando") como faz referências musicais explícitas. Somente nesses poucos poemas encontram-se três títulos reveladores: "Três Meditações na Corda Lírica", "Quase uma Sonata" e "Cinco Movimentos". Nas meditações, observa-se a inescapável influência de T.S. Eliot, poeta com cuja obra Junqueira deve ter convivido longos anos em seu esforço tradutório.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado


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NOTA, EM 09/07/2014

O poeta, tradutor e ensaísta Ivan Junqueira faleceu, aos 79 anos, em 3 de julho de 2014.



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LANÇAMENTOS

Nesta quinta-feira, dois poetas estão lançando livros em São Paulo.

• Carlos Felipe Moisés

Carlos Felipe Moisés lança Conversa com Fernando Pessoa (Entrevista e Antologia), que sai pela Editora Ática. Trata-se de um livro didático que apresenta o autor de Ficções do Interlúdio a estudantes do ensino fundamental e médio.

Data: 24/05/2007, quinta-feira
Hora: 19h00
Local: Livraria da Vila
Rua Fradique Coutinho, 915


• Mariana Ianelli

O livro de Mariana Ianelli chama-se Almádena e é sua quinta coletânea de poesia. A editora é a Iluminuras.




Data: 24/05/2007, quinta-feira
Hora: 19h00
Local: Livraria Cultura
Conjunto Nacional
Av. Paulista, 2073


 

Meditações na corda lírica

Ivan Junqueira

 



É O VENTO

É o vento que vem uivando
pelas frinchas do infinito
é o vento que vem gemendo
na espinha do plenilúnio
é o vento que vem rolando
como um cascalho de treva

É o vento que vem quebrando
as vidraças do silêncio
é o vento que vem abrindo
as cicatrizes da véspera
é o vento que vem pulsando
nas veias murchas do tempo

É o vento que vem mordendo
a carne tenra das nuvens
é o vento que vem regendo
a sinfonia das águas
é o vento que vem varrendo
a nostalgia dos túmulos

É o vento que vem trazendo
teu sorriso embalsamado
é o vento que vem despindo
a salsugem de teus seios
é o vento que vem moldando
tua gótica nudez

É o vento que vem brincando
de roda com minha infância
é o vento que vem tangendo
meus pensamentos sem rumo
é o vento que vem traçando
o mapa de minha face

É o vento que vem roendo
o pergaminho das horas
que monótonas gotejam
sobre as escarpas herméticas
do abismo turvo insondável
que me separa de mim



RITUAL

Fecho as janelas desta casa
(seus corredores, seus fantasmas
sua aérea arquitetura de pássaro)
fecho a insônia que inundava
meu quarto debruçado sobre o nada
fecho as cortinas onde a larva
do tempo tece agora sua praga
fecho a clara algazarra plácida
das vozes sangüíneas da alvorada
fecho o trecho taciturno da tocata
a chuva percutindo as teclas do telhado
as sombras navegando pelo pátio
                                               e o bambuzal

Fecho as torneiras da memória

Fecho também a tumultuosa torrente de vida
que poderia ter rompido o cerco das paredes
e feito explodir a argamassa de calcário e solidão

Fecho ainda as lentas pálpebras da amada
o mofo acumulado entre seus lábios
o limo que vestiu sua carne desolada

Fecho tudo e depois me fecho

Estou cansado
                 estou triste
                                     estou só

                         De Os Mortos (1956-64)
 


TRÊS MEDITAÇÕES NA CORDA LÍRICA - I


              Only through time time is conquered.
                    T. S. Eliot, Four Quartets, Burnt Norton, 92

Deixa tombar teu corpo sobre a terra
e escuta a voz escura das raízes,
do limo primitivo, da limalha
fina do que é findo e ainda respira.

O que passou (não tanto a treva e a cinza
que os mortos vestem para rir dos vivos)
mais vivo está que toda essa harmonia
de claves e colcheias retorcidas,
mais vivo está porque o escutas limpo,
fora do tempo, mas no tempo audível
de teu olvido, partitura antiga,
para alaúde e lira escrita, timbre
que vibra sem alívio no vazio,
coral de sinos, música de si
mesma esquecida, aquém e além ouvida.

O que passou (à tona, cicatriz)
é dor que nunca dói na superfície,
ao nível do martírio, mas na fibra
da dor que só destila sua resina
quando escondida sob o pó das frinchas
e que, doída assim tão funda e esquiva,
é mais que dor ou cicatriz: estigma
aberto pela morte de outras vidas
nas pálpebras cerradas do existido,
espessa floração de espinhos ígneos,
solstício do suplício, dor a pino
de te saberes resto de um menino
que anoiteceu contigo num jardim
entre brinquedos e vogais partidas.

E tudo é apenas isso, esse fluir
de vozes quebradiças, ida e vinda
de ti por tuas veias e teus rios,
onde o tempo não cessa, onde o princípio
de tudo está no fim, e o fim na origem,
onde mudança e movimento filtram
sua alquimia de vigília e ritmo,
onde és apenas linfa e labirinto,
caminho que retorna ao limo, à fina
limalha do que é findo e ainda respira
para depois, o mesmo, erguer-se a ti,
ao que serás, porque estás vivo aqui,
agora e sempre, antes e após de tudo.

Deixa tombar teu corpo e te acostuma,
húmus, à terra — útero e sepulcro.

                         De Três Meditações na Corda Lírica (1968)



QUASE UMA SONATA

É música o rigor com que te moves
à fluida superfície do mistério,
os pés quase suspensos, a aérea
partitura do corpo, seus acordes.
Espaço e tempo são teu solo. E colhem,
não tanto a luz que entornas, mas o pólen
com que ela cinge e arroja as coisas mortas
além da espessa morte que as enrola.
E música o silêncio que te cobre
quando lampeja à noite tua nudez,
em franjas derramada sobre o leito
das águas, onde as algas te incendeiam
porque semelhas, mais que o mar profundo,
o intemporal princípio e fim de tudo.

                         De Opus Descontínuo (1969-75)

 

CINCO MOVIMENTOS - I

Que amor é esse que, desperto, dorme
e quando acorda faz-se ambíguo sonho,
transfigurando o belo no medonho
e em noite espessa a vida multiforme?
Então amor é só o que suponho,
o que não digo por ser tão informe
que fôrma alguma lhe é jamais conforme
como este molde em que teimoso o ponho?
Será amor o que se esquiva à fala
ou à linguagem que o pretende claro?
E o que seria esse tremor mais raro
que ao aflorar parece que se cala?
Amor oblíquo que olha de soslaio,
mas que ilumina e queima como raio...

                         De Cinco Movimentos (1982)



MORRER

Pois morrer é apenas isto:
cerrar os olhos vazios
e esquecer o que foi visto;

é não supor-se infinito,
mas antes fáustico e ambíguo,
jogral entre a história e o mito;

é despedir-se em surdina,
sem epitáfio melífluo
ou testamento sovina;

é talvez como despir
o que em vida não vestia
e agora é inútil vestir;

é nada deixar aqui:
memória, pecúlio, estirpe,
sequer um traço de si;

é findar-se como um círio
em cuja luz tudo expira
sem êxtase nem martírio.

                         De O Grifo (1983-86)

 

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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

Ivan Junqueira
•  Poemas Reunidos
    Record, Rio de Janeiro, 1999
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* António Ramos Rosa, in Animal Olhar (Escrituras, 2005)