François Villon
Caros,
Nesta edição o boletim traz à presença de vocês um poeta do fim da Idade Média
— o francês François Villon. Misterioso,
contraditório, Villon é sempre referido nas enciclopédias como poeta, ladrão e
vagabundo. As incertezas em torno de sua biografia são imensas. Nasceu em 1431 e
recebeu o nome de François de Montcorbier, nome que ele depois
— ao entrar para a Universidade de Paris
— mudou para François Villon, em homenagem a seu
protetor, Guillaume de Villon.
O poeta terminou os estudos em 1452. Três anos depois, envolveu-se numa briga de
rua e matou um padre, Philippe Sermoise. Villon fugiu e foi condenado ao
banimento — sentença revista em 1456 por um perdão
concedido pelo rei Charles VII. No final do mesmo ano, Villon já estava outra
vez em apuros. Foi acusado de liderar um roubo e desapareceu por cerca de quatro
anos.
Em 1461, aos 30 anos, ele escreveu o Grand Testament, obra que o
imortalizou e que contém todos os seus poemas conhecidos. Os fatos da vida de
Villon são desencontrados. Entre prisões e a proteção de nobres da época, ele
foi levando. Em 1462, preso outra vez, foi condenado à forca. Mas a sentença foi
comutada e convertida para banimento em 5 de janeiro de 1463. Essa é a última
data de que se tem notícia dele. A partir daí, ele desaparece da História. Não
se sabe como nem quando morreu.
François Villon é o poeta mais conhecido de sua época. Sua poesia, fiel ao
estilo de então, é vazada em poemas de forma fixa, especialmente as baladas e os
rondós. São famosos seus textos "Balada dos Enforcados" (escrito quando estava
na prisão, condenado à forca) e a "Balada das Damas dos Tempos Idos", ambos
reproduzidos aqui.
Na "Balada dos Enforcados", também conhecida como "Epitáfio de Villon",
sentenciados já mortos se dirigem aos contemporâneos sobreviventes. Com um toque
de crueza que antecipa certas ousadias modernas, eles descrevem a decomposição
dos próprios corpos pendurados ("Eis que a chuva nos gasta e lava, e eis / Que o
sol nos enegrece e tem secado") e suplicam que se peça a Deus pela sua
absolvição.
A estrofe final de uma balada, chamada "oferta" ou "oferecimento", é sempre
dedicada a alguém. Na "Balada dos Enforcados", os mortos rogam diretamente a
Jesus Cristo pela sua absolvição. Aqui, a tradução desse poema é do sempre
competente Ivo Barroso, já citado mais de uma vez neste boletim.
Menos trágica, a "Balada das Damas dos Tempos Idos" celebra com nostalgia uma
lista de mulheres ao longo da História. Cada uma das estrofes dessa balada
termina com a pergunta que se tornou um célebre refrão em francês e em outros
idiomas: Mais où sont les neiges d'antan? ("Mas onde estão as neves de
outrora?").
Entre as damas de antanho cantadas por Villon encontram-se figuras hoje pouco
conhecidas como Flora, cortesã romana, e Taís que, segundo os estudiosos,
poderia ser várias damas antigas com esse nome. A soberana não nomeada que
mandou lançar Buridan ao Sena dentro de um saco teria sido Margarida de
Borgonha, mulher de Luís, o Teimoso, condenada à morte por adultério em 1315.
Conta-se que Margarida recebia os amantes numa torre e depois os mandava matar e
atirar o corpo no Sena. Jean Buridan, reitor da Universidade de Paris e
professor de Villon, teria estado com a rainha na juventude, mas encontrara um
jeito de se safar da morte nas águas do Sena.
Mas na balada das senhoras antigas há também figuras conhecidas e citadas até
hoje, a exemplo de Heloísa. Pedro Abelardo, filósofo, professor de Heloísa
— ele, 37; ela, vinte anos menos —
tornou-se amante da aluna. Após uma série de peripécias, o tio da moça termina
por mandar castrar Abelardo. Final triste: ela ingressa num convento, e ele vai
para um mosteiro ao lado. Não se encontram mais, porém trocam cartas
apaixonadas.
Estranho é que o tradutor Modesto de Abreu não cita a castração de Abelardo. No
original, Villon é explícito: "Où est la très sage Héloïs, / Pour qui fut châtré
et puis moine / Pierre Esbaillart à Saint-Denis?" Tradução, ao pé da letra:
"Onde está a mui sábia Heloísa / Por quem foi castrado e depois se tornou
monge / Pedro Abelardo em Saint-Denis?"
Outra dama dos tempos idos muito conhecida é Joana, a boa lorena,
que foi queimada em Ruão. Mais uma vez, o original diz mais que a tradução. Lá
está escrito que Joana foi queimada por ingleses. Villon refere-se, obviamente,
a Joana d'Arc, heroína da Guerra dos Cem Anos, morta na fogueira em 1431, ano do
nascimento de Villon. Joana foi canonizada pela igreja católica em 1920 e é a
padroeira da França.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
LANÇAMENTOS
Para quem está na cidade de São Paulo esta semana.
• Lauro Machado Coelho
O
jornalista e crítico musical Lauro Machado Coelho autografa Poesia Soviética,
uma antologia com 24 autores russos do século XX com seleção, tradução e notas
dele. Machado Coelho é autor de outro livro com versões de poemas russos:
Anna Akhmátova – Poesia 1912-1964.
O volume Poesia Soviética é publicado pela Algol Editora.
Data: 1º de junho, sexta-feira
Hora: 18h30
Local: Livraria Cultura
Conjunto Nacional
Av. Paulista, 2073
Tel: (11) 3170-4033
• Donizete Galvão
O
poeta Donizete Galvão lança neste sábado o livro infantil O Sapo Apaixonado –
Uma História Inspirada em Uma Narrativa Indígena. O volume tem ilustrações
de Mariana Massarani e prefácio de Betty Mindlin e sai pela Musa Editora.
Data: 2 de junho, sábado
Hora: 11h00 às 16h00
Local: Casa das Rosas
Av. Paulista, 37
Tels: (11) 3288-9447 e 3285-6986 |
Onde estão as neves de outrora?
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François Villon |
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BALADA DOS ENFORCADOS
Homens irmãos que a nós sobreviveis,
Não nos tenhais o coração fechado;
A pena que por nós demonstrareis
Mais cedo Deus terá de vosso estado.
Aqui nos vedes juntos, cinco, seis;
Nossos corpos, demais alimentados,
Agora estão podridos, devorados,
E os nossos ossos vão ao pó volver.
Que não se ria alguém de nossos fados,
Mas peça a Deus que nos queira absolver!
Se de irmãos vos chamamos, não deveis
Mostrar desdém, embora condenados
Por justiça. Contudo, bem sabeis,
Nem todos são os homens assisados.
Junto ao Filho da Virgem bem podeis
Interceder de coração lavado:
Não haja a graça para nós secado
E do raio infernal nos possa haver.
Mortos, noss'alma já nos tem deixado;
Pedi a Deus que nos queira absolver!
Eis que a chuva nos gasta e lava, e eis
Que o sol nos enegrece e tem secado.
Pega ou corvo dos olhos nos desfez
E tem-nos barba e cílios arrancado.
Nossos corpos agitam-se, revéis,
Daqui, dali, ao vento balançados,
Sem cessa a seu prazer; de aves bicados,
Chegamos com dedais nos parecer.
Não queirais ser dos nossos congregados,
Mas pedi que Deus nos queira absolver!
Príncipe Jesus, mestre incontestado,
De nós não se haja o inferno apoderado,
Que ali não temos que pagar nem ver.
Homens, nada vai nisto de zombado:
Rogai a Deus que nos queira absolver!
Tradução de Ivo Barroso
Os enforcados: afresco na igreja
de Santa Anastácia, em Verona.
Obra de Pisanello, 1436-1438.
L'ÉPITAPHE DE VILLON OU
BALLADE DES PENDUS
Frères humains, qui après nous vivez, N'ayez les coeurs contre nous
endurcis, Car, si pitié de nous pauvres avez, Dieu en aura plus tôt de
vous mercis. Vous nous voyez ci attachés, cinq, six : Quant à la
chair, que trop avons nourrie, Elle est piéça dévorée et pourrie, Et
nous, les os, devenons cendre et poudre.
De notre mal personne ne s'en rie ; Mais priez Dieu que tous nous
veuille absoudre!
Se frères vous clamons, pas n'en devez Avoir dédain, quoique fûmes
occis Par justice. Toutefois, vous savez Que tous hommes n'ont pas bon
sens rassis. Excusez-nous, puisque sommes transis, Envers le fils de
la Vierge Marie, Que sa grâce ne soit pour nous tarie, Nous préservant
de l'infernale foudre. Nous sommes morts, âme ne nous harie, Mais
priez Dieu que tous nous veuille absoudre!
La pluie nous a débués et lavés, Et le soleil desséchés et noircis.
Pies, corbeaux nous ont les yeux cavés, Et arraché la barbe et les
sourcils. Jamais nul temps nous ne sommes assis Puis çà, puis là,
comme le vent varie, A son plaisir sans cesser nous charrie, Plus
becquetés d'oiseaux que dés à coudre.
Ne soyez donc de notre confrérie ; Mais priez Dieu que tous nous
veuille absoudre!
Prince Jésus, qui sur tous a maistrie, Garde qu'Enfer n'ait de nous
seigneurie : A lui n'ayons que faire ne que soudre. Hommes, ici n'a
point de moquerie ; Mais priez Dieu que tous nous veuille absoudre!
BALADA DAS DAMAS DOS TEMPOS IDOS
Dizei-me em que terra ou
país Está Flora, a bela romana; Onde Arquipíada ou Taís, que foi
sua prima germana; Eco, a imitar na água que mana de rio ou lago, a
voz que a aflora, E de beleza sobre-humana? Mas onde estais, neves de
outrora?
E Heloísa, a mui sábia e infeliz Pela qual foi enclausurado Pedro
Abelardo em São Denis, por seu amor sacrificado? Onde, igualmente, a
soberana Que a Buridan mandou pôr fora Num saco ao Sena arremessado?
Mas onde estais, neves de outrora?
Branca, a rainha, mãe de Luís Que com voz divina cantava; Berta
Pé-Grande, Alix, Beatriz E a que no Maine dominava; E a boa lorena
Joana, Queimada em Ruão? Nossa Senhora! Onde estão, Virgem soberana?
Mas onde estais, neves de outrora?
Príncipe, vede, o caso é urgente: Onde estão elas, vede-o agora;
Que este refrão guardeis em mente: Onde estão as neves de outrora?
Tradução de Modesto de Abreu
Joana d'Arc: heroína francesa,
depois santa católica.
Óleo de Jean Auguste Dominique Ingres, 1854
BALLADE DES DAMES DU TEMPS JADIS
Dites-moi où, n'en
quel pays, Est Flora la belle Romaine, Archipiades, ne Thaïs, Qui
fut sa cousine germaine, Echo, parlant quant bruit on mène Dessus
rivière ou sur étang, Qui beauté eut trop plus qu'humaine? Mais où
sont les neiges d'antan?
Où est la très sage Héloïs, Pour qui fut châtré et puis moine
Pierre Esbaillart à Saint-Denis? Pour son amour eut cette essoine.
Semblablement, où est la roine Qui commanda que Buridan Fût jeté en un
sac en Seine? Mais où sont les neiges d'antan?
La roine Blanche comme un lis Qui chantait à voix de sirène,
Berthe au grand pied, Bietrix, Aliz, Haramburgis qui tint le Maine, Et
Jeanne, la bonne Lorraine Qu'Anglais brûlèrent à Rouen ; Où sont-ils,
où, Vierge souvraine? Mais où sont les neiges d'antan?
Prince, n'enquerrez de semaine Où elles sont, ni de cet an, Que ce
refrain ne vous remaine : Mais où sont les neiges d'antan?
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