Número 211 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 30 de maio de 2007 

«Pois que é o Belo / senão o grau do Terrível que ainda suportamos (...)?» (Rainer Maria Rilke) *
 


François Villon


Caros,

Nesta edição o boletim traz à presença de vocês um poeta do fim da Idade Média o francês François Villon. Misterioso, contraditório, Villon é sempre referido nas enciclopédias como poeta, ladrão e vagabundo. As incertezas em torno de sua biografia são imensas. Nasceu em 1431 e recebeu o nome de François de Montcorbier, nome que ele depois ao entrar para a Universidade de Paris mudou para François Villon, em homenagem a seu protetor, Guillaume de Villon.

O poeta terminou os estudos em 1452. Três anos depois, envolveu-se numa briga de rua e matou um padre, Philippe Sermoise. Villon fugiu e foi condenado ao banimento sentença revista em 1456 por um perdão concedido pelo rei Charles VII. No final do mesmo ano, Villon já estava outra vez em apuros. Foi acusado de liderar um roubo e desapareceu por cerca de quatro anos.

Em 1461, aos 30 anos, ele escreveu o Grand Testament, obra que o imortalizou e que contém todos os seus poemas conhecidos. Os fatos da vida de Villon são desencontrados. Entre prisões e a proteção de nobres da época, ele foi levando. Em 1462, preso outra vez, foi condenado à forca. Mas a sentença foi comutada e convertida para banimento em 5 de janeiro de 1463. Essa é a última data de que se tem notícia dele. A partir daí, ele desaparece da História. Não se sabe como nem quando morreu.

François Villon é o poeta mais conhecido de sua época. Sua poesia, fiel ao estilo de então, é vazada em poemas de forma fixa, especialmente as baladas e os rondós. São famosos seus textos "Balada dos Enforcados" (escrito quando estava na prisão, condenado à forca) e a "Balada das Damas dos Tempos Idos", ambos reproduzidos aqui.

Na "Balada dos Enforcados", também conhecida como "Epitáfio de Villon", sentenciados já mortos se dirigem aos contemporâneos sobreviventes. Com um toque de crueza que antecipa certas ousadias modernas, eles descrevem a decomposição dos próprios corpos pendurados ("Eis que a chuva nos gasta e lava, e eis / Que o sol nos enegrece e tem secado") e suplicam que se peça a Deus pela sua absolvição.

A estrofe final de uma balada, chamada "oferta" ou "oferecimento", é sempre dedicada a alguém. Na "Balada dos Enforcados", os mortos rogam diretamente a Jesus Cristo pela sua absolvição. Aqui, a tradução desse poema é do sempre competente Ivo Barroso, já citado mais de uma vez neste boletim.

Menos trágica, a "Balada das Damas dos Tempos Idos" celebra com nostalgia uma lista de mulheres ao longo da História. Cada uma das estrofes dessa balada termina com a pergunta que se tornou um célebre refrão em francês e em outros idiomas: Mais où sont les neiges d'antan? ("Mas onde estão as neves de outrora?").

Entre as damas de antanho cantadas por Villon encontram-se figuras hoje pouco conhecidas como Flora, cortesã romana, e Taís que, segundo os estudiosos, poderia ser várias damas antigas com esse nome. A soberana não nomeada que mandou lançar Buridan ao Sena dentro de um saco teria sido Margarida de Borgonha, mulher de Luís, o Teimoso, condenada à morte por adultério em 1315. Conta-se que Margarida recebia os amantes numa torre e depois os mandava matar e atirar o corpo no Sena. Jean Buridan, reitor da Universidade de Paris e professor de Villon, teria estado com a rainha na juventude, mas encontrara um jeito de se safar da morte nas águas do Sena.

Mas na balada das senhoras antigas há também figuras conhecidas e citadas até hoje, a exemplo de Heloísa. Pedro Abelardo, filósofo, professor de Heloísa ele, 37; ela, vinte anos menos tornou-se amante da aluna. Após uma série de peripécias, o tio da moça termina por mandar castrar Abelardo. Final triste: ela ingressa num convento, e ele vai para um mosteiro ao lado. Não se encontram mais, porém trocam cartas apaixonadas.

Estranho é que o tradutor Modesto de Abreu não cita a castração de Abelardo. No original, Villon é explícito: "Où est la très sage Héloïs, / Pour qui fut châtré et puis moine / Pierre Esbaillart à Saint-Denis?" Tradução, ao pé da letra: "Onde está a mui sábia Heloísa /  Por quem foi castrado e depois se tornou monge / Pedro Abelardo em Saint-Denis?"

Outra dama dos tempos idos muito conhecida é Joana, a boa lorena,
que foi queimada em Ruão. Mais uma vez, o original diz mais que a tradução. Lá está escrito que Joana foi queimada por ingleses. Villon refere-se, obviamente, a Joana d'Arc, heroína da Guerra dos Cem Anos, morta na fogueira em 1431, ano do nascimento de Villon. Joana foi canonizada pela igreja católica em 1920 e é a padroeira da França.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado


 

                      •o•


LANÇAMENTOS

Para quem está na cidade de São Paulo esta semana.


• Lauro Machado Coelho

O jornalista e crítico musical Lauro Machado Coelho autografa Poesia Soviética, uma antologia com 24 autores russos do século XX com seleção, tradução e notas dele. Machado Coelho é autor de outro livro com versões de poemas russos: Anna Akhmátova – Poesia 1912-1964.
O volume Poesia Soviética é publicado pela Algol Editora.

Data: 1º de junho, sexta-feira
Hora: 18h30
Local: Livraria Cultura
Conjunto Nacional
Av. Paulista, 2073
Tel: (11) 3170-4033


• Donizete Galvão

O poeta Donizete Galvão lança neste sábado o livro infantil O Sapo Apaixonado – Uma História Inspirada em Uma Narrativa Indígena. O volume tem ilustrações de Mariana Massarani e prefácio de Betty Mindlin e sai pela Musa Editora.

Data: 2 de junho, sábado
Hora: 11h00 às 16h00
Local: Casa das Rosas
Av. Paulista, 37
Tels: (11) 3288-9447 e 3285-6986

Onde estão as neves de outrora?

François Villon

 



BALADA DOS ENFORCADOS

Homens irmãos que a nós sobreviveis,
Não nos tenhais o coração fechado;
A pena que por nós demonstrareis
Mais cedo Deus terá de vosso estado.
Aqui nos vedes juntos, cinco, seis;
Nossos corpos, demais alimentados,
Agora estão podridos, devorados,
E os nossos ossos vão ao pó volver.
Que não se ria alguém de nossos fados,
Mas peça a Deus que nos queira absolver!

Se de irmãos vos chamamos, não deveis
Mostrar desdém, embora condenados
Por justiça. Contudo, bem sabeis,
Nem todos são os homens assisados.
Junto ao Filho da Virgem bem podeis
Interceder de coração lavado:
Não haja a graça para nós secado
E do raio infernal nos possa haver.
Mortos, noss'alma já nos tem deixado;
Pedi a Deus que nos queira absolver!

Eis que a chuva nos gasta e lava, e eis
Que o sol nos enegrece e tem secado.
Pega ou corvo dos olhos nos desfez
E tem-nos barba e cílios arrancado.
Nossos corpos agitam-se, revéis,
Daqui, dali, ao vento balançados,
Sem cessa a seu prazer; de aves bicados,
Chegamos com dedais nos parecer.
Não queirais ser dos nossos congregados,
Mas pedi que Deus nos queira absolver!

Príncipe Jesus, mestre incontestado,
De nós não se haja o inferno apoderado,
Que ali não temos que pagar nem ver.
Homens, nada vai nisto de zombado:
Rogai a Deus que nos queira absolver!

                  Tradução de Ivo Barroso



Os enforcados: afresco na igreja de Santa Anastácia, em Verona.
Obra de Pisanello, 1436-1438.



L'ÉPITAPHE DE VILLON OU
BALLADE DES PENDUS

Frères humains, qui après nous vivez,
N'ayez les coeurs contre nous endurcis,
Car, si pitié de nous pauvres avez,
Dieu en aura plus tôt de vous mercis.
Vous nous voyez ci attachés, cinq, six :
Quant à la chair, que trop avons nourrie,
Elle est piéça dévorée et pourrie,
Et nous, les os, devenons cendre et poudre.
De notre mal personne ne s'en rie ;
Mais priez Dieu que tous nous veuille absoudre!

Se frères vous clamons, pas n'en devez
Avoir dédain, quoique fûmes occis
Par justice. Toutefois, vous savez
Que tous hommes n'ont pas bon sens rassis.
Excusez-nous, puisque sommes transis,
Envers le fils de la Vierge Marie,
Que sa grâce ne soit pour nous tarie,
Nous préservant de l'infernale foudre.
Nous sommes morts, âme ne nous harie,
Mais priez Dieu que tous nous veuille absoudre!

La pluie nous a débués et lavés,
Et le soleil desséchés et noircis.
Pies, corbeaux nous ont les yeux cavés,
Et arraché la barbe et les sourcils.
Jamais nul temps nous ne sommes assis
Puis çà, puis là, comme le vent varie,
A son plaisir sans cesser nous charrie,
Plus becquetés d'oiseaux que dés à coudre.
Ne soyez donc de notre confrérie ;
Mais priez Dieu que tous nous veuille absoudre!

Prince Jésus, qui sur tous a maistrie,
Garde qu'Enfer n'ait de nous seigneurie :
A lui n'ayons que faire ne que soudre.
Hommes, ici n'a point de moquerie ;
Mais priez Dieu que tous nous veuille absoudre!




BALADA DAS DAMAS DOS TEMPOS IDOS

Dizei-me em que terra ou país
Está Flora, a bela romana;
Onde Arquipíada ou Taís,
que foi sua prima germana;
Eco, a imitar na água que mana
de rio ou lago, a voz que a aflora,
E de beleza sobre-humana?
Mas onde estais, neves de outrora?

E Heloísa, a mui sábia e infeliz
Pela qual foi enclausurado
Pedro Abelardo em São Denis,
por seu amor sacrificado?
Onde, igualmente, a soberana
Que a Buridan mandou pôr fora
Num saco ao Sena arremessado?
Mas onde estais, neves de outrora?

Branca, a rainha, mãe de Luís
Que com voz divina cantava;
Berta Pé-Grande, Alix, Beatriz
E a que no Maine dominava;
E a boa lorena Joana,
Queimada em Ruão? Nossa Senhora!
Onde estão, Virgem soberana?
Mas onde estais, neves de outrora?

Príncipe, vede, o caso é urgente:
Onde estão elas, vede-o agora;
Que este refrão guardeis em mente:
Onde estão as neves de outrora?

                  Tradução de Modesto de Abreu




Joana d'Arc: heroína francesa, depois santa católica.
Óleo de Jean Auguste Dominique Ingres, 1854


BALLADE DES DAMES DU TEMPS JADIS

Dites-moi où, n'en quel pays,
Est Flora la belle Romaine,
Archipiades, ne Thaïs,
Qui fut sa cousine germaine,
Echo, parlant quant bruit on mène
Dessus rivière ou sur étang,
Qui beauté eut trop plus qu'humaine?
Mais où sont les neiges d'antan?

Où est la très sage Héloïs,
Pour qui fut châtré et puis moine
Pierre Esbaillart à Saint-Denis?
Pour son amour eut cette essoine.
Semblablement, où est la roine
Qui commanda que Buridan
Fût jeté en un sac en Seine?
Mais où sont les neiges d'antan?

La roine Blanche comme un lis
Qui chantait à voix de sirène,
Berthe au grand pied, Bietrix, Aliz,
Haramburgis qui tint le Maine,
Et Jeanne, la bonne Lorraine
Qu'Anglais brûlèrent à Rouen ;
Où sont-ils, où, Vierge souvraine?
Mais où sont les neiges d'antan?

Prince, n'enquerrez de semaine
Où elles sont, ni de cet an,
Que ce refrain ne vous remaine :
Mais où sont les neiges d'antan?


 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

François Villon
•  "Balada das Damas dos Tempos Idos"
  
 In R. Magalhães Junior
    Antologia de Poetas Franceses (Do Século XV ao Século XX)
    Tradução do poema: Modesto de Abreu
    Gráfica Tupy, Rio de Janeiro, 1950
 
•  "Balada dos Enforcados"
     In Ivo Barroso
     O Torso e o Gato
     
Record, Rio de Janeiro, 1991
_________________
* Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno (I),
  trad. de Dora Ferreira da Silva