Neide Archanjo
Caros amigos,
Poeta, advogada, psicóloga, Neide Archanjo nasceu em São Paulo em 1940. Estreou na
poesia em 1964 como o livro Primeiros Ofícios da Memória. Ativista
literária, participou de movimentos como o Poesia na Praça, que promovia
recitais na rua. Aliás, seu terceiro livro, publicado em 1970, tem exatamente
esse título: Poesia na Praça.
Em 2004 Neide Archanjo juntou dez livros no volume Todas as Horas e
Antes – Poesia Reunida, do qual extraí todos os
poemas ou trechos transcritos ao lado. Num volume de 500 páginas há certamente o
que escolher. No entanto, curiosamente, assinalei uma série de textos. Depois
percebi que, sem premeditar, selecionei apenas poemas que destacam o rico
lirismo amoroso da autora.
Conforme vocês podem constatar, trata-se de poemas intensamente sensuais,
escritos como se houvesse um feixe de sensações estabelecendo um circuito
fechado entre a mão que escreve e o olho que vê. Sim, são textos muito visuais,
muito corporais, voyeuristicamente eróticos. "Atrás da curva dos teus ombros /
uma chuva caía incessante / um pouco água um pouco bruma", diz um poema.
Outro: "A carne dos meus pensamentos tem a polpa / destas ameixas / mas falta
volúpia / e perfume".
Para mim, no entanto, a poeta atinge seu apogeu nessa temática amorosa no longo
poema "Sítio III", do qual reproduzo aqui um excerto relativamente extenso.
Apreciem este trecho: "Veio negra / lindíssima / como um lírio de Ofir / e
habitou a tenda que armei / entre silêncios / do ócio mais ardente / alegria
luminosa de carícias / coisas perfumadas trazidas de viagens / feitas por terra
/ e por mar."
Há outros assim, muitos outros, ao longo do poema. Páginas luminosas.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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CARTAS DE AMOR
Hoje é 13 de junho, dia em que nasceu o poeta Fernando António Nogueira
Pessoa, em 1888. Para lembrar o dia de São Fernando António, a amiga Amélia
Pais, lá de Portugal, enviou a letra de uma canção italiana, Le Lettere d'Amore,
interpretada por Roberto Vecchioni.
A canção baseia-se no famoso poema de Pessoa —
ou melhor, de Álvaro de Campos — sobre as
cartas de amor, escrito em 21/10/1935, cerca de um mês antes da morte do poeta.
Partes da letra, que transcrevo abaixo, são traduções diretas do poema. Em
outros trechos, o autor fala da vida e de vários poemas de Pessoa. Ophélia, vale
lembrar, era a namorada, à qual ele nunca deu muita atenção.
Mais abaixo ainda (não sei italiano), anotei o que entendo do texto. Quem quiser
me corrigir, sinta-se à vontade. Como recebi o texto hoje, não podia deixar
passar a data — portanto, não havia tempo para consultar alguém que conheça bem
o idioma.
Clique
aqui,
ou no alto-falante ao lado, e ouça a bela canção de Roberto Vecchioni,
acompanhando a letra.
LE LETTERE D'AMORE
Roberto Vecchioni
Fernando Pessoa chiuse gli occhiali
e si addormentò
e quelli che scrivevano per lui
lo lasciarono solo
finalmente solo...
così la pioggia obliqua di Lisbona
lo abbandonò
e finalmente la finì
di fingere fogli
di fare male ai fogli...
e la finì di mascherarsi
dietro tanti nomi,
dimenticando Ophelia
per cercare un senso che non c'è
e alla fine chiederle "scusa
se ho lasciato le tue mani,
ma io dovevo solo scrivere, scrivere
e scrivere di me..."
e le lettere d'amore,
le lettere d'amore
fanno solo ridere:
le lettere d'amore
non sarebbero d'amore
se non facessero ridere;
anch'io scrivevo un tempo
lettere d'amore,
anch'io facevo ridere:
le lettere d'amore
quando c'è l'amore,
per forza fanno ridere.
E costruì un delirante universo
senza amore,
dove tutte le cose
hanno stanchezza di esistere
e spalancato dolore.
Ma gli sfuggì che il senso delle stelle
non è quello di un uomo,
e si rivide nella penna
di quel brillare inutile,
di quel brillare lontano...
e capì tardi che dentro
quel negozio di tabaccheria
c'era più vita di quanta ce ne fosse
in tutta la sua poesia;
e che invece di continuare a tormentarsi
con un mondo assurdo
basterebbe toccare il corpo di una donna,
rispondere a uno sguardo...
e scrivere d'amore,
e scrivere d'amore,
anche se si fa ridere;
anche quando la guardi,
anche mentre la perdi
quello che conta è scrivere;
e non aver paura,
non aver mai paura
di essere ridicoli:
solo chi non ha scritto mai
lettere d'amore
fa veramente ridere.
Le lettere d'amore,
le lettere d'amore,
di un amore invisibile;
le lettere d'amore
che avevo cominciato
magari senza accorgermi;
le lettere d'amore
che avevo immaginato,
ma mi facevan ridere
magari fossi in tempo
per potertele scrivere...
*
Fernando Pessoa fechou os óculos / E adormeceu
e todos os que escreviam por ele o deixaram só / finalmente só... / Assim
a chuva oblíqua de Lisboa / o abandonou / e finalmente acabou / de se
fingir de folhas / de fazer mal às folhas... / E deixou de mascarar-se / por
trás de mil nomes
esquecendo-se de Ophélia /
para buscar um sentido que não há / E no final dizer-lhe "desculpa-me / se
deixei tuas mãos / mas eu tinha só que escrever, escrever / e escrever sobre
mim..."
E as cartas de amor, / todas as cartas de amor / são ridículas /
não seriam cartas de amor /
se não fossem ridículas /
Também escrevi em meu tempo
cartas de amor / eu também fui ridículo / As cartas de amor, se há
amor, / têm de ser ridículas
E construí um delirante universo
sem amor / onde todas as coisas / têm cansaço de existir /
e dor desesperada / Mas não percebi que o sentido das estrelas / não é o mesmo
de um homem, / E se reviu na pena
daquele brilho inútil / daquele brilho longínquo / e percebeu tarde que dentro /
de uma tabacaria / havia mais vida
que em toda a sua poesia /
E que em vez de atormentar-se /
num mundo absurdo / bastaria tocar o corpo duma mulher, / responder a um
olhar...
E escrever sobre o amor / escrever sobre o amor / mesmo sendo ridículo / mesmo
quando a olhas / mesmo enquanto a perdes / O que conta é escrever
E não ter medo /nunca ter medo de ser ridículo / Só os que nunca escreveram /
cartas de amor é que são ridículos
As cartas de amor / as cartas de amor / de um amor invisível
As cartas de amor / que eu comecei / talvez sem perceber
As cartas de amor / que eu tinha imaginado / mas me tornavam ridículo / oxalá eu
tivesse o tempo / para poder escrevê-las
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Carne dos meus pensamentos
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Neide Archanjo |
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*
Não conhecer teu corpo mas sabê-lo possível
passível a viagens que não as minhas. Como te dizer por exemplo:
Vem amiga; dar-te-ei a tua ceia e a comida que acaso desejares e algum poema que ilumine os ares...
se me olhas simplesmente desinteressada e num gesto muito teu
tiras da sacola Peg Pag uma maçã dourada que mordes de estalo
e que deixa entre os lábios e os dentes um espaço de desejo preenchido vorazmente
pela fruta não pelo meu beijo?
De As Marinhas (1984)
*
Atrás da curva dos teus ombros uma chuva caía incessante um pouco água um pouco bruma.
Mais acima estavam teus olhos duas tâmaras maduras. Então pensei: que alegria é esta
que a vida não me deu antes?
As tardes passarão esta hora passará outras esperas outros acontecimentos
hão de turvar meu sangue. Não hoje.
*
Quando acordei a manhã já ia alta. Reencontrei meu corpo meus pensamentos de ontem e as ameixas sobre o prato azul da sala. A carne dos meus pensamentos tem a polpa destas ameixas mas falta volúpia e perfume.
O que sonho a cada dia é morder a vida. Assim.
De Tudo é Sempre Agora (1994)
*
Penso partes de um corpo: os pés tocando seixos as costas carregando ventos. Entra na água e sua respiração é a de um nadador atravessando uma gruta claríssima repetida de anzóis. Vai a braçadas abrindo um cerne encarnado. Não é por acaso que falo de um corpo preenchendo este espaço Ele está aqui vivo e distante irredutível pensamento que ao ser escrito torna-se esplendidamente concreto.
De As Marinhas (1984)
SÍTIO III
(trecho)
Era um sonho negro comprimindo a testa arrancando novamente o coração do seu compasso inerte. Era um tremor primário desabrochado em meu ventre descendo embrenhado chegando acuado estremecido espraiado. Era uma égua negra (em contornos eqüestres) erguendo à luz da meia-noite e sobre o metal dos cascos o corpo úmido de relincho e espuma os olhos certeiros de furor e graça. (Crescia a égua e do enorme cio e do enorme salto emigravam crinas lumes maravilhas.)
Era negra. Que me ensinava essa nova paisagem África América sangue e raiz alforriados senão que deveria colher ali (sob a terra escura do seu corpo escuro) a híbrida claridade?
Tinha um modo vadio de andar cheio de panos as mãos coalhadas de anéis o pescoço ajaezado dois olhos de veludo dois seios
como duas ilhas conjugadas duras concentradas num cerne preto intumescido rutilante. Sublevadas. Mais o fogo cruzado vindo vivo ateado do fundo de um vulcão enfurnado entre dois montes coxas lava ebulição. Quando dormia o santo vigiava a noite do seu corpo uma noite tão antiga etíope ou persa? (pele que a cobria) uma noite tão sensível larga alta (manto que a encobria). Não era noite era dia.
E quantas andaduras numa só: passo galope trote salto balanço ancas molecas num vaivém safado de mucama de égua solta no pasto só passível de caça e resgate debaixo do laço forte do amor.
E veio égua estendendo os braços onde sorriam braceletes de marfim pulseiras de prata
(ai de mim!) enigmas segredos hieróglifos de ouro tatuagens de mil anos.
Veio negra lindíssima como um lírio de Ofir e habitou a tenda que armei entre silêncios do ócio mais ardente alegria luminosa de carícias coisas perfumadas trazidas de viagens feitas por terra e por mar.
Deitou seu corpo ao lado do meu. Abrigou-se. À nossa volta tudo foi farto doce e santo o verde o roxo o branco mais uma ternura que sabia ser volúpia e quis ser encanto.
(Sentada nua).
De Escavações (1980)
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