João Filho
Caros amigos,
Poeta e ficcionista, o baiano João Fernandes Filho (1975-) nasceu em Bom Jesus
da Lapa, à margem do Rio São Francisco, onde viveu até poucos anos atrás.
Escritor prolífico, João Filho tem poemas estampados em vários sites e blogs
literários. Publicou em 2004 o livro de contos Encarniçado, pela editora
Baleia. Esse volume lhe valeu certo destaque na imprensa, graças à linguagem
inventiva, marcada pelas vivências do sertão, e obviamente construída sob o
signo de João Guimarães Rosa.
Em poesia, além do que já se tornou público na internet, João Filho tem uma
série de livros inéditos. Os poemas ao lado foram todos fornecidos pelo autor a
este boletim. Parte do trabalho de João Filho em verso tem traços idênticos aos
de sua prosa. É o caso de poemas como "[Na Curva do Vento]" e "Vivência da
Venda".
Extraídos de textos mais amplos, esses dois trechos mostram o
poeta preocupado em dar contas de experiências vistas e vividas em Bom Jesus da
Lapa. Em "Vivência da Venda", aparece a prática do poeta, que trabalhou durante
anos numa casa de comércio do pai. Nesse poema destacam-se os nomes dos objetos
comercializados na venda, como "peixeiras, vianas, cruvianas, serengas,
lambedeiras e naifas". Aqui, todos esses termos denominam um tipo de faca.
A propósito, uma curiosidade interessante. Ao ler esse texto de João Filho, tive
de perguntar ao autor o significado de tais palavras. Depois, fiquei
impressionado com a proximidade de "naifa" com a palavra inglesa knife —
faca, canivete. Não é só proximidade: naifa vem de knife. Mas como isso
foi parar no sertão? Segundo o Dicionário Houaiss, a palavra entrou para
o português durante o período das guerras napoleônicas, no início do século XIX,
quando as tropas inglesas estiveram em Portugal.
Nos demais textos, o poeta se lança à busca de outros temas e outras formas de
expressão. Ora é um verso lógico e reflexivo como em "Da Moral", ora uma
aproximação quase metafísica, como em "O Mistério". Se no primeiro, aparece "o
medo como didática", ou como ginástica, no outro a proposta é sonhar e apurar o
ouvido, "pois tudo canta".
Os dois outros poemas, "Na Aflitiva" e "O Dia de Deus", parecem caminhar para
outros ângulos de observação do mundo. No primeiro é o poeta que aponta suas
lentes para figuras da infância. No outro, uma reflexão sobre a existência, mais
uma vez marcada pelas durezas e a "cegante claridade" do sertão.
Um abraço,
Carlos Machado
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De onde vem a frase?
Vários leitores me têm escrito para perguntar de onde extraí uma ou outra frase
que aparece em epígrafe, no cabeçalho desta página. Para facilitar o acesso a
essa informação, desde o final de junho de 2006 (edição
n. 169), passei a incluir no rodapé da página não apenas os créditos do
poeta enfocado no boletim, como também a fonte da epígrafe. Além disso, desde
fevereiro deste ano (boletim
198), o leitor pode passar o ponteiro do mouse sobre o nome do autor da
frase para ver dados como o título do texto e o nome do livro onde se encontra.
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poesia.net em números
Em junho, pela primeira vez, o site
Alguma Poesia, que
abriga as páginas deste boletim, ultrapassou a média de 1000 visitantes por dia.
Foram 1023 visitas diárias, para um total de 30,7 mil visitas no mês. Em
comparação com o mesmo período do ano passado, a média de visitação no primeiro
semestre deste ano cresceu duas vezes e meia (veja o gráfico abaixo).
Enquanto isso, também em junho, o número de assinantes do boletim ultrapassou a
casa dos 2500.
Média mensal de leitores/dia em 2007 (azul) e em 2006 (vermelho)
Sobre o volume de assinantes, vale notar que, embora quase todos os dias cheguem
novos leitores, também a cada edição um pequeno número sai da lista porque seus
e-mails deixam de existir.
É interessante observar alguns aspectos da visitação ao site. A maioria (82%)
chega ao Alguma Poesia por meio de um mecanismo de busca: Google, Yahoo, MSN
etc. Em junho, as palavras-chave mais procuradas foram: "poesia" (1,7%); "carlos
drummond" (5,6%); "shakespeare" (1,1%), "baudelaire" (0,7%); "cassiano ricardo"
(0,7%); "murilo mendes" (0,6%); e "emily dickinson" (0,4%).
Quanto às páginas, a campeã foi o
índice do
poesia.net, com 11,7% das visitas. Em seguida, veio o
índice das
páginas sobre Carlos Drummond de Andrade (11,5%). Outros nomes entre os dez
mais lidos:
Baudelaire (1,3%),
Shakespeare (1,3%);
Gonçalves Dias (1,04%);
Oswald de Andrade (1,02%); e
Mario Quintana (0,95%).
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Serengas, lambedeiras e naifas
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João Filho |
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DA MORAL
O medo como didática
para que a ave tema o vôo,
mas vá tatear seu limite-
nuvem com o enjôo de
quem almeja alturas.
O medo como ginástica
e como toda, incômoda,
exigente em sua dor exata,
não como o bisturi da plástica
que faz da ruga seu remendo.
O medo de quem não mata,
e mesmo minúsculo vai sendo.
(2006)
O MISTÉRIO
O mistério não espreita.
O mistério é.
O sonho sofre e aceita
Nossa frágil fé.
Sonhar é ser?
Ser é sangrar.
Então o dever
De tudo é sonhar:
Pedra, água, vento,
Bicho, corpo, planta.
Ouvido atento:
Pois tudo canta!
(2006)
[NA CURVA DO VENTO]
Nascido na Curva do Vento
meu pai
guarda no olho até hoje
dardo de cacto
— a metáfora aqui se mata,
deveras fato.
Minhas Avós,
Ovários.
Boi
aqui não cabe,
avaro.
Minhas Avós,
ovários.
Boi
aqui não cabe,
cascalho.
(...)
Adobe manuseado
aduba
a casa. O barro é do lajedo
retirado,
na garra. O calcário
todos na cara trazem,
embreados.
A casa:
sua estampa é toda telúrica,
na quebra da serra cravada, estacas, grotas, lajes
a margeá-la.
NA AFLITIVA
Para irmão Brito e irmão Aurelino, in memoriam,
alfaiates da
infância.
O susto do poema se encerra,
fiel a fiação extraviada
de atormentado alfaiate
na aflitiva.
O corte à sua cepa.
Sua lógica de agulha e linha.
O giz do seu limite.
O vestuário de sua lavra
mais desnuda que esconde.
E confirmando a regra
para o próprio paletó,
falta manga.
Desacerta o seu tamanho,
o centímetro de sua medida,
a mão inábil, porém vital, que rege
o intrincado da sua costura.
Todo alfaiate é solitário e
cultiva antíteses.
Por engenho tão remoto
(por fado ou herança)
vão se rareando
os que ainda teimam
em vestir o invisível.
O DIA DE DEUS
O dia de Deus é branco
sumo de semana que nunca acaba
não é memória que luz
é cegante em sua claridade
que desconforta todo nascido
O dia de Deus é duro
de matéria só de minério
pode ser porrada ou pontiagudo
o seu ingastável é prejuízo
não de tempo-lucro
O dia de Deus é burro
Carga que quebra carroça
por não suportá-lo nem persuadi-lo
depois do peso o soldo —
capim, sal e algum líquido
(2003)
VIVÊNCIA DA VENDA
Da Venda —
(arames, peixeiras, lambedeiras, vianas, naifas, pregos, anzóis, quinas,
estreitezas, aniagens, variantes etc.)
Da lata aberta por faca e martelo na pancada
sobra beiço pendurado
que esfiapa
Da lata aberta
a língua-alumínio logrando
o que der retalho
(...)
Da Venda o variabilíssimo —
facas de uso onde ferrugem é inoxidável
Enganchadas em arame na prateleira — as facas
num escape
se enfincam
no que dá furo
As facas (enferrujadas ou não)
são firulências
Peixeiras, vianas, cruvianas, serengas, lambedeiras e naifas (famintas de
estripas)
penduradas no arame
(...)
Pregos pequenos — os que mais perigam
imprevistos na picada
Na ferrugem
tétanos tinem
Dos parafusos —
estes trazem limalhas mergulhadas em lama preta de óleo
besuntam a palma depois se adentram,
mas por angustura
borrife na face da freguesia
(...)
As foices num enfeixado
(pacote bruto
sob o balcão)
Também enxadas, estrovengas, roçadeiras, chibancas,
mata-pastos etc. Corte pra fora, duas caras,
desbeiçando topada,
madurando decepa
Em pé: alavancas, lebancas, por empaladeiras
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