Número 217 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 11 de julho de 2007 

«Os anjos e os poetas são os únicos que não riem dos loucos.» (Mario Quintana) *
 


Ana Rüsche


Caros amigos,

Paulistana da safra de 1979, Ana Rüsche é advogada e cursa letras na USP. Ativa participante de iniciativas literárias, co-organiza a FLAP! (evento alternativo ao FLIP, festival literário de Paraty),  realizada anualmente em São Paulo e no Rio. Além disso, desenvolve trabalhos na área de literaturas africanas, divulgados no blog Olokum, escreve regularmente no blog Peixe de Aquário e ainda mantém o site AnaR [www.anar.com -- desativado - C.M. 09/09/2011].


Hiperpublicada na internet, Ana Rüsche estreou em livro em 2005, com o volume Rasgada. Agora já tem pronta para o papel, mas ainda não impressa, uma segunda coletânea que recebeu o nome de Sarabanda.

O primeiro traço que me chama a atenção na poesia de Ana Rüsche é o distanciamento das influências tradicionais, seja dos modernistas (Bandeira, Drummond, Cabral etc.), seja dos concretistas e afins. É possível que esta seja uma característica dos poetas que estão começando agora, e encontram-se na faixa dos 20 anos. Não sei afirmar: é apenas uma suposição.

Ao ler o livro Rasgada, tive a impressão de que as influências mais marcantes sobre o trabalho de Ana Rüsche vêm de poetas da chamada geração marginal. Penso na atitude malcriada, de provocação, ou em certa crueza descritiva encontráveis em alguns poemas do livro. Nesse aspecto, destaca-se a postura de auto-afirmação feminina, que também era comum nas poetas dos anos 70 e 80. Essa me parece uma das linhas de força do livro Rasgada.

Esse título é ambíguo. No embate das relações amorosas, ele dá a idéia de uma mulher que se afirmou mas também se feriu. É uma das leituras que se podem fazer em mais de um poema ao lado, mas certamente está em "Tigre":  "Tigre, tigre / me persegue, me possui / me devasta, me rasga / e rasga, / corro, cambaleio e caio / chorando pelo meio da rua deserta." A leitura do inédito Sarabanda só me reforçou essas observações.

Ao mesmo tempo, é justo acrescentar que a poeta parece estar se abrindo para outras leituras, novas experiências formais. Isso também fica patente em Sarabanda, que, sintomaticamente, tem por subtítulo Um Caderno de Estudos. Como bem observa o poeta Paulo Ferraz, nesse segundo livro Ana Rüsche vai na trilha de um Oswald, com o Caderno de Poesia do Aluno Oswald de Andrade, ou de um Cacaso, autor de Grupo Escolar. Não é coincidência o fato de Cacaso ser um representante da poesia marginal e Oswald o principal inspirador histórico dessa poesia.

Mas, como sugeri acima, a poeta também inclui em seu caderno de exercícios a citação de outros escritores contemporâneos, como se pode ver nos poemas "A Ceramista" e "Inacabado sobre Brennand", que transcrevo aqui como uma antecipação de Sarabanda.

Uma última observação: notem, no texto "Tempo Nublado no Carnaval", como Ana Rüsche traz para sua poesia a experiência dos jovens que "teclam" nos bate-papos dos programas de mensagens instantâneas e nos fóruns de discussão da internet. A abreviatura "vc", em lugar de "você", é um indicador dessa escrita sincopada.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



                      •o•



 

No meio da rua deserta

Ana Rüsche

 

 

LUGAR COMUM 10: SALOMÉ

E ela dança.

Seus guizos ainda molhados,
olhos de cocaína e peito
arfando. E ela brada:
— Tragam-me a cabeça de João Baptista!

Trouxeram-lhe na bandeja de prata, os cabelos de mendigo escorriam na palidez arroxeada dos anjos decepados.

Anticlímax e luzes brancas no palco. Algum espectador tossiu, sacos de pipoca.
E por não haver palavras suficientes, inventou-se o beijo:

Cravo com ódio os lábios naquela boca de impropérios.

E ela suga — os lábios duros com o resto da última saliva,
a língua do morto solta como pedra forrada de veludo.
Ela acaba e olha ao redor.

Salomé em luz, com o vestido branco pela lua falsa, com a cabeça horrenda a escorrer pela mão.
E por não haver palavras suficientes, os aplausos vieram:

No início a balir como rebanho lerdo, depois exultantes, o exército de mãos brancas, ante a plasticidade romântica da cena.

E ela dança.

 

TEMPO NUBLADO NO CARNAVAL

                 Eles são dois por engano. A noite corrige.
                    
Eduardo Galeano, trad. Eric Nepomuceno


um jardim japonês,
pernas banhadas em veludo,
almofadas de tigre.

o primeiro tato,
a palma liqüefazia-se em luz
e vc procurava com calma meu umbigo.

a chuva fina escorria nas minhas veias
vc descortinava meu sono em mordidas,
e deflorou de leve minha manhã.



DELICADEZA

meus desejos,
que me imobilizasse
com fitas brancas de cetim
para que elas me deixassem
talhos e cortes na carne.
mas ele me amarrava
com cordas grossas e ásperas
e me largava com nós frouxos.

meus desejos,
que me espancasse
com uma vareta de marfim
e quebrasse todas as minhas costelas,
não eram dele mesmo?
mas ele me macerava,
no chicote macio de couro
que me marcava com lanhos engraçados.

meus desejos,
que me esquartejasse
com quatro alvos corcéis
e me desfizesse em pedaços.
mas ele me penetrava,
me xingava,
fazíamos amor e
suspirando, dormíamos sem sonhos.



POSSESSÃO

Às vezes aquele corpo não era meu
— um outro me possuía todo.
A noite é lenta, escura e difícil
e aquele meu corpo rude já fora de muitos.

Ele tinha ódio desses passados,
esfaqueava fantasmas nos lençóis
num círculo em volta da cama.

Dizem que o amor era a entrega.
A ampulheta escorria,
ele iria me perder rápido como tantos outros.
A noite é lenta, escura e difícil.



TIGRE

A mesma velha partida,
o terror das coisas mortas.
Ali ele se fundiu novamente.

A noite escapou pelas duas pupilas reluzentes
e asfixiou com um brilho estranho meus ouvidos.

Então o asfalto flameja, o concreto brilha
e se acedem todas as estrelas.
Tigre, tigre
me persegue, me possui
me devasta, me rasga
e rasga,
corro, cambaleio e caio
chorando pelo meio da rua deserta.

                                 De Rasgada (2005)


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A CERAMISTA

                                        Trago comigo coisas abandonadas.
                                        Coisas que os homens jogaram fora:
                                        placentas, gânglios, guirlandas, guelras.
                                                   Marize Castro, "Muralha"

              a partir de Concha e Aurora,
              criações de Ângela Barros e Alberto Guzik



agora já são cinco privês
antes era um prédio respeitável

escavo escadas ante a mudez
do elevador, guilhotina pichada

no pó suspenso no ar
catedrais de coisas abandonadas

e lá dentro chafurdo com minhas duas
mãos nas peças de cerâmica

e como parteira tiro do barro
um caco, um vaso, um sonho, um sopro



INACABADO SOBRE BRENNAND

                                        Não há mais novenas
                                        porque os santos só saem
                                        dos esconderijos
                                        para as missas solenes.
                                        Minas, prendei vossos santos.
                                                
Donizete Galvão, "Santos nas Grades"


              ao beto


as meninas de francisco
já nascem de calcinhas velhas
e culotes à mostra

as meninas de francisco
desabrocham
bicos de seio de barro e se deixam bolinar

as meninas de francisco
despetalam
de flor vermelha e choram orando para o céu

as meninas de francisco
nunca foram donzelas
 

                                 De Sarabanda, inédito.
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

Ana Rüsche
•  "Lugar Comum 10: Salomé", "Tempo Nublado no Carnaval",
   "Delicadeza", "Possessão", "Tigre"
    In Rasgada
   
Quinze & Trinta Edições, São Paulo, 2005
•  "A Ceramista", "Inacabado sobre Brennand"
    In Sarabanda 
    Inédito
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* Mario Quintana, "E Quando Se Aproximou a Hora",
  in Caderno H (1973)