Ana Rüsche
Caros amigos,
Paulistana da safra de 1979, Ana Rüsche é advogada e cursa letras na USP. Ativa
participante de iniciativas literárias, co-organiza a FLAP! (evento alternativo
ao FLIP, festival literário de Paraty), realizada anualmente em São Paulo
e no Rio. Além disso, desenvolve trabalhos na área de literaturas africanas,
divulgados no blog Olokum,
escreve regularmente no blog
Peixe de Aquário
e ainda mantém o site AnaR [www.anar.com -- desativado - C.M. 09/09/2011].
Hiperpublicada na internet, Ana Rüsche estreou em livro em 2005, com o volume
Rasgada. Agora já tem pronta para o papel, mas ainda não impressa, uma
segunda coletânea que recebeu o nome de Sarabanda.
O primeiro traço que me chama a atenção na poesia de Ana Rüsche é o
distanciamento das influências tradicionais, seja dos modernistas (Bandeira,
Drummond, Cabral etc.), seja dos concretistas e afins. É possível que esta seja
uma característica dos poetas que estão começando agora, e encontram-se na faixa
dos 20 anos. Não sei afirmar: é apenas uma suposição.
Ao ler o livro Rasgada, tive a impressão de que as influências mais
marcantes sobre o trabalho de Ana Rüsche vêm de poetas da chamada geração
marginal. Penso na atitude malcriada, de provocação, ou em certa crueza
descritiva encontráveis em alguns poemas do livro. Nesse aspecto, destaca-se a
postura de auto-afirmação feminina, que também era comum nas poetas dos anos 70
e 80. Essa me parece uma das linhas de força do livro Rasgada.
Esse título é ambíguo. No embate das relações amorosas, ele dá a idéia de uma
mulher que se afirmou mas também se feriu. É uma das leituras que se podem fazer
em mais de um poema ao lado, mas certamente está em "Tigre": "Tigre, tigre
/ me persegue, me possui / me devasta, me rasga / e rasga, / corro, cambaleio e
caio / chorando pelo meio da rua deserta." A leitura do inédito Sarabanda
só me reforçou essas observações.
Ao mesmo tempo, é justo acrescentar que a poeta parece estar se abrindo para
outras leituras, novas experiências formais. Isso também fica patente em
Sarabanda, que, sintomaticamente, tem por subtítulo Um Caderno de Estudos.
Como bem observa o poeta Paulo Ferraz, nesse segundo livro Ana Rüsche vai na
trilha de um Oswald, com o Caderno de Poesia do Aluno Oswald de Andrade,
ou de um Cacaso, autor de Grupo Escolar. Não é coincidência o fato de
Cacaso ser um representante da poesia marginal e Oswald o principal inspirador
histórico dessa poesia.
Mas, como sugeri acima, a poeta também inclui em seu caderno de exercícios a
citação de outros escritores contemporâneos, como se pode ver nos poemas "A
Ceramista" e "Inacabado sobre Brennand", que transcrevo aqui como uma
antecipação de Sarabanda.
Uma última observação: notem, no texto "Tempo Nublado no Carnaval", como Ana
Rüsche traz para sua poesia a experiência dos jovens que "teclam" nos bate-papos
dos programas de mensagens instantâneas e nos fóruns de discussão da internet. A
abreviatura "vc", em lugar de "você", é um indicador dessa escrita sincopada.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
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No meio da rua deserta
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Ana Rüsche |
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LUGAR COMUM 10: SALOMÉ
E ela dança.
Seus guizos ainda molhados,
olhos de cocaína e peito
arfando. E ela brada:
— Tragam-me a cabeça de João Baptista!
Trouxeram-lhe na bandeja de prata, os cabelos de mendigo escorriam na palidez
arroxeada dos anjos decepados.
Anticlímax e luzes brancas no palco. Algum espectador tossiu, sacos de pipoca.
E por não haver palavras suficientes, inventou-se o beijo:
Cravo com ódio os lábios naquela boca de impropérios.
E ela suga — os lábios duros com o resto da última saliva,
a língua do morto solta como pedra forrada de veludo.
Ela acaba e olha ao redor.
Salomé em luz, com o vestido branco pela lua falsa, com a cabeça horrenda a
escorrer pela mão.
E por não haver palavras suficientes, os aplausos vieram:
No início a balir como rebanho lerdo, depois exultantes, o exército de mãos
brancas, ante a plasticidade romântica da cena.
E ela dança.
TEMPO NUBLADO NO CARNAVAL
Eles são dois por engano. A noite corrige.
Eduardo Galeano, trad. Eric Nepomuceno
um jardim japonês,
pernas banhadas em veludo,
almofadas de tigre.
o primeiro tato,
a palma liqüefazia-se em luz
e vc procurava com calma meu umbigo.
a chuva fina escorria nas minhas veias
vc descortinava meu sono em mordidas,
e deflorou de leve minha manhã.
DELICADEZA
meus desejos,
que me imobilizasse
com fitas brancas de cetim
para que elas me deixassem
talhos e cortes na carne.
mas ele me amarrava
com cordas grossas e ásperas
e me largava com nós frouxos.
meus desejos,
que me espancasse
com uma vareta de marfim
e quebrasse todas as minhas costelas,
não eram dele mesmo?
mas ele me macerava,
no chicote macio de couro
que me marcava com lanhos engraçados.
meus desejos,
que me esquartejasse
com quatro alvos corcéis
e me desfizesse em pedaços.
mas ele me penetrava,
me xingava,
fazíamos amor e
suspirando, dormíamos sem sonhos.
POSSESSÃO
Às vezes aquele corpo não era meu
— um outro me possuía todo.
A noite é lenta, escura e difícil
e aquele meu corpo rude já fora de muitos.
Ele tinha ódio desses passados,
esfaqueava fantasmas nos lençóis
num círculo em volta da cama.
Dizem que o amor era a entrega.
A ampulheta escorria,
ele iria me perder rápido como tantos outros.
A noite é lenta, escura e difícil.
TIGRE
A mesma velha partida,
o terror das coisas mortas.
Ali ele se fundiu novamente.
A noite escapou pelas duas pupilas reluzentes
e asfixiou com um brilho estranho meus ouvidos.
Então o asfalto flameja, o concreto brilha
e se acedem todas as estrelas.
Tigre, tigre
me persegue, me possui
me devasta, me rasga
e rasga,
corro, cambaleio e caio
chorando pelo meio da rua deserta.
De Rasgada (2005)
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A CERAMISTA
Trago comigo coisas abandonadas.
Coisas que os homens jogaram fora:
placentas, gânglios, guirlandas, guelras.
Marize Castro, "Muralha"
a partir de Concha e Aurora,
criações de Ângela Barros e Alberto Guzik
agora já são cinco privês
antes era um prédio respeitável
escavo escadas ante a mudez
do elevador, guilhotina pichada
no pó suspenso no ar
catedrais de coisas abandonadas
e lá dentro chafurdo com minhas duas
mãos nas peças de cerâmica
e como parteira tiro do barro
um caco, um vaso, um sonho, um sopro
INACABADO SOBRE BRENNAND
Não há mais novenas
porque os santos só saem
dos esconderijos
para as missas solenes.
Minas, prendei vossos santos.
Donizete Galvão, "Santos nas Grades"
ao beto
as meninas de francisco
já nascem de calcinhas velhas
e culotes à mostra
as meninas de francisco
desabrocham
bicos de seio de barro e se deixam bolinar
as meninas de francisco
despetalam
de flor vermelha e choram orando para o céu
as meninas de francisco
nunca foram donzelas
De Sarabanda, inédito.
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