Cruz e Sousa
Caros,
Esta é uma página complementar ao boletim 222. Decidi
transcrever o texto completo de "Emparedado". Difícil de encontrar, essa
angustiada prosa poética não é citada nas escolas — onde normalmente se tem
contato quase somente com os livros Broquéis e Faróis —, nem está
nos livros mais acessíveis de Cruz e Sousa.
"Emparedado" é muito importante e significa muito mais que literatura. É um
pedaço vivo de história, é vida.
O texto mostra o desespero do homem João da Cruz e Sousa, um ser humano de
inteligência e sensibilidade privilegiadas. Um negro enfrentando a insuportável
carga de preconceitos numa sociedade escravista.
Vale destacar a parte final, que justifica o título do trabalho. O poeta não
enxerga nenhuma saída para sua condição social. Nem mesmo na ciência ele podia
encontrar apoio. Exatamente no final do século XIX, os meios científicos estavam
eivados de teorias racistas que "provavam" a "superioridade" dos brancos — não
por acaso, os colonizadores europeus, os que se locupletaram com o tráfico e com
a exploração da mão-de-obra escravizada.
Boa leitura.
Carlos Machado
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Ah! Noite! Feiticeira Noite! Ó Noite
misericordiosa, coroada no trono das Constelações pela tiara de prata e
diamantes do Luar, Tu, que ressuscitas dos sepulcros solenes do Passado tantas
Esperanças, tantas Ilusões, tantas e tamanhas Saudades, ó Noite! Melancólica!
Soturna!
Voz triste, recordativamente triste, de tudo o que está morto, acabado, perdido
nas correntes eternas dos abismos bramantes do Nada, ó Noite meditativa!
Fecunda-me, penetra-me dos fluidos magnéticos do grande Sonho das tuas Solidões
panteístas e assinaladas, dá-me as tuas brumas paradisíacas, dá-me os teus
cismares de Monja, dá-me as tuas asas reveladoras, dá-me as tuas auréolas
tenebrosas, a eloqüência de ouro das tuas Estrelas, a profundidade misteriosa
dos teus sugestionadores fantasmas, todos os surdos soluços que rugem e rasgam o
majestoso Mediterrâneo dos teus evocativos e pacificadores Silêncios!
Uma tristeza fina e incoercível errava nos tons violáceos vivos daquele fim
suntuoso de tarde aceso ainda nos vermelhos sangüíneos, cuja cor cantava-me nos
olhos, quente, inflamada, na linha longe dos horizontes em largas faixas
rutilantes.
O fulvo e voluptuoso Rajá celeste derramara além os fugitivos esplendores da sua
magnificência astral e rendilhara d’alto e de leve as nuvens da delicadeza
arquitetural, decorativa, dos estilos manuelinos.
Mas as ardentes formas da luz pouco a pouco quebravam-se, velavam-se e os tons
violáceos vivos, destacados, mais agora flagrantemente crepusculavam a tarde,
que expirava anelante, num anseio indefinido, vago, dolorido, de inquieta
aspiração e de inquieto sonho...
E, descidas, afinal, as névoas, as sombras claustrais da noite, tímidas e
vagarosas Estrelas começavam a desabrochar florescentemente, numa tonalidade
peregrina e nebulosa de brancas e erradias fadas de Lendas...
Era aquela, assim religiosa e enevoada, a hora eterna, a hora infinita da
Esperança...
Eu ficara a contemplar, como que sonambulizado, como o espírito indeciso e
febricitante dos que esperam, a avalanche de impressões e de sentimentos que se
acumulavam em mim à proporção que a noite chegava com o séquito radiante e real
das fabulosas Estrelas.
Recordações, desejos, sensações, alegrias, saudades, triunfos, passavam-me na
Imaginação como relâmpagos sagrados e cintilantes do esplendor litúrgico de
pálios e viáticos, de casulas e dalmáticas fulgurantes, de tochas acesas e
fumosas, de turíbulos cinzelados, numa procissão lenta, pomposa, em aparatos
cerimoniais, de Corpus Christi, ao fundo longínquo de uma província sugestiva e
serena, pitorescamente aureolada por mares cantantes. Vinha-me à flor melindrosa
dos sentidos a melopéia, o ritmo fugidio de momentos, horas, instantes, tempos
deixados para trás na arrebatada confusão do mundo.
Certos lados curiosos, expressivos e tocantes do Sentimento, que a lembrança
venera e santifica; lados virgens, de majestade significativa, parecia-me
surgirem do suntuoso fundo estrelado daquela noite larga, da amplidão saudosa
daqueles céus...
Desdobrava-se o vasto silforama opulento de uma vida inteira, circulada de
acidentes, de longos lances tempestuosos, de desolamentos, de palpitações
ignoradas, como do rumor, das aclamações e dos fogos de cem cidades tenebrosas
de tumulto e de pasmo...
Era como que todo o branco idílio místico da adolescência, que de um tufo claro
de nuvens, em Imagens e Visões do Desconhecido, caminhava para mim, leve,
etéreo, através das imutáveis formas.
Ou, então, massas cerradas, compactas, de harmonias wagnerianas, que cresciam,
cresciam, subiam em gritos, em convulsões, em alaridos nervosos, em estrépitos
nervosos, em sonoridades nervosas, em dilaceramentos nervosos, em catadupas
vertiginosas de vibrações, ecoando longe e alastrando tudo, por entre a delicada
alma sutil dos ritmos religiosos, alados, procurando a serenidade dos Astros...
As Estrelas, d’alto, claras, pareciam cautelosamente escutar e sentir, com os
caprichos de relicários inviolados da sua luz, o desenvolvimento mudo, mas
intenso, a abstrata função mental que estava naquela hora se operando dentro em
mim, como um fenômeno de aurora boreal que se revelasse no cérebro, acordando
chamas mortas, fazendo viver ilusões e cadáveres.
Ah! aquela hora era bem a hora infinita da Esperança!
De que subterrâneos viera eu já, de que torvos caminhos, trôpego de cansaço, as
pernas bambaleantes, com a fadiga de um século, recalcando nos tremendos e
majestosos Infernos do Orgulho o coração lacerado, ouvindo sempre por toda a
parte exclamarem as vãs e vagas bocas: Esperar! Esperar! Esperar!
Por que estradas caminhei, monge hirto das desilusões, conhecendo os gelos e os
fundamentos da Dor, dessa Dor estranha, formidável, terrível, que canta e chora
Réquiens nas árvores, nos mares, nos ventos, nas tempestades, só e
taciturnamente ouvindo: Esperar! Esperar! Esperar!
Por isso é que essa hora sugestiva era para mim então a hora da Esperança, que
evocava tudo quanto eu sonhara e se desfizera e vagara e mergulhara no Vácuo...
Tudo quanto eu mais eloqüentemente amara com o delírio e a fé suprema de solenes
assinalamentos e vitórias.
Mas as grandes ironias trágicas germinadas do Absoluto, conclamadas, em anátemas
e deprecações inquisitoriais cruzadas no ar violentamente em línguas de fogo,
caíram martirizantes sobre a minha cabeça, implacáveis como a peste.
Então, à beira de caóticos, sinistros despenhadeiros, como outrora o doce e
arcangélico Deus Negro, o trismegisto, de cornos agrogalhardos, de fagulhantes,
estriadas asas enigmáticas, idealmente meditando a Culpa imeditável; então,
perdido, arrebatado dentre essas mágicas e poderosas correntes de elementos
antipáticos que a Natureza regulariza, e sob a influência de desconhecidos e
venenosos filtros, a minha vida ficou como a longa, muito longa véspera de um
dia desejado, anelado, ansiosamente, inquietamente desejado, procurado através
do deserto dos tempos, com angústia, com agonia, com esquisita e doentia
nevrose, mas que não chega nunca, nunca!!
Fiquei como a alma velada de um cego onde os tormentos e os flagelos amargamente
vegetam como cardos hirtos. De um cego onde parece que vaporosamente dormem
certos sentimentos que só com a palpitante vertigem, só com a febre matinal da
luz clara dos olhos acordariam; sentimentos que dormem ou que não chegaram
jamais a nascer porque a densa e amortalhante cegueira como que apagou para
sempre toda a claridade serena, toda a chama original que os poderia fecundar e
fazer florir na alma...
Elevando o Espírito a amplidões inacessíveis, quase que não vi esses lados
comuns da Vida humana, e, igual ao cego, fui sombra, fui sombra!
Como os martirizados de outros Gólgotas mais amargos, mais tristes, fui subindo
a escalvada montanha, através de urzes eriçadas, e de brenhas, como os
martirizados de outros Gólgotas mais amargos, mais tristes.
De outros Gólgotas mais amargos subindo a montanha imensa, — vulto sombrio,
tetro, extra-humano! — a face escorrendo sangue, a boca escorrendo sangue, o
peito escorrendo sangue, as mãos escorrendo sangue, o flanco escorrendo sangue,
os pés escorrendo sangue, sangue, sangue, sangue, caminhando para tão longe,
para muito longe, ao rumo infinito das regiões melancólicas da Desilusão e da
Saudade, transfiguradamente iluminado pelo sol augural dos Destinos!...
E, abrindo e erguendo em vão os braços desesperados em busca de outros braços
que me abrigassem; e, abrindo e erguendo em vão os braços desesperados que já
nem mesmo a milenária cruz do Sonhador da Judéia encontravam para repousarem
pregados e dilacerados, fui caminhando, caminhando, sempre com um nome estranho
convulsamente murmurado nos lábios, um nome augusto que eu encontrara não sei em
que Mistério, não sei em que prodígios de Investigação e de Pensamento profundo:
— o sagrado nome da Arte, virginal e circundada de loureirais e mirtos e palmas
verdes e hosanas, por entre constelações.
Mas, foi apenas bastante todo esse movimento interior que pouco a pouco me
abalava, foi apenas bastante que eu consagrasse a vida mais fecundada, mais
ensangüentada que tenho, que desse todos os meus mais íntimos, mais recônditos
carinhos, todo o meu amor ingênito, toda a legitimidade do meu sentir a essa
translúcida Monja de luar e sol, a essa incoercível Aparição, bastou tão pouco
para que logo se levantassem todas as paixões da terra, tumultuosas como
florestas cerradas, proclamando por brutas, titânicas trombetas de bronze, o meu
nefando Crime.
Foi bastante pairar mais alto, na obscuridade tranqüila, na consoladora e doce
paragem das Idéias, acima das graves letras maiúsculas da Convenção, para
alvoroçarem-se os Preceitos, irritarem-se as Regras, as Doutrinas, as Teorias,
os Esquemas, os Dogmas, armados e ferozes, de cataduras hostis e severas.
Eu trazia, como cadáveres que me andassem funambulescamente amarrados às costas,
num inquietante e interminável apodrecimento, todos os empirismos
preconceituosos e não sei quanta camada morta, quanta raça d’África curiosa e
desolada que a Fisiologia nulificara para sempre com o riso haeckeliano e papal!
Surgido de bárbaros, tinha de domar outros mais bárbaros ainda, cujas plumagens
de aborígene alacremente flutuavam através dos estilos.
Era mister romper o Espaço toldado de brumas, rasgar as espessuras, as densas
argumentações e saberes, desdenhar os juízos altos, por decreto e por lei, e,
enfim, surgir...
Era mister rir com serenidade e afinal com tédio dessa celulazinha bitolar que
irrompe por toda a parte, salta, fecunda, alastra, explode, transborda e se
propaga.
Era mister respirar a grandes haustos na Natureza, desafogar o peito das
opressões ambientes, agitar desassombradamente a cabeça diante da liberdade
absoluta e profunda do Infinito.
Era mister que me deixassem ao menos ser livre no Silêncio e na Solidão. Que não
me negassem a necessidade fatal, imperiosa, ingênita de sacudir com liberdade e
com volúpia os nervos e desprender com largueza e com audácia o meu verbo
soluçante, na força impetuosa e indomável da Vontade.
O temperamento que rugia, bramava dentro de mim, esse, que se operasse: —
precisava, pois, tratados, largos in-fólios, toda a biblioteca da famosa
Alexandria, uma Babel e Babilônia de aplicações científicas e de textos latinos,
para sarar...
Tornava-se forçoso impor-lhe um compêndio admirável, cheio de sensações
imprevistas, de curiosidades estéticas muito lindas e muito finas — um compêndio
de geometria!
O temperamento entortava muito para o lado da África: — era necessário fazê-lo
endireitar inteiramente para o lado Regra, até que o temperamento regulasse
certo como um termômetro!
Ah! incomparável espírito das estreitezas humanas, como és secularmente divino!
As civilizações, as raças, os povos digladiam-se e morrem minados pela fatal
degenerescência do sangue, despedaçados, aniquilados no pavoroso túnel da Vida,
sentindo o horror sufocante das supremas asfixias.
Um veneno corrosivo atravessa, circula vertiginosamente os poros dessa
deblaterante humanidade que se veste e triunfa com as púrpuras quentes e
funestas da guerra!
Povos e povos, no mesmo fatal e instintivo movimento da conservação e propagação
da espécie, frivolamente lutam e proliferam diante da Morte, no ardor dos
conúbios secretos e das batalhas obscuras, do frenesi genital, animal, de
perpetuarem as seivas, de eternizarem os germens.
Mas, por sobre toda essa vertigem humana, sobre tanta monstruosa miséria,
rodando, rodomoinhando, lá e além, na vastidão funda do Mundo, alguma cousa da
essência maravilhosa da Luz paira e se perpetua, fecundando e inflamando os
séculos com o amor indelével da Forma.
É do sabor prodigioso dessa essência, vinda de bem remotas origens, que raros
Assinalados experimentam, envoltos numa atmosfera de eterificações, de
visualidades inauditas, de surpreendentes abstrações e brilhos, radiando nas
correntes e forças da Natureza, vivendo nos fenômenos vagos de que a Natureza se
compõe, nos fantasmas dispersos que circulam e erram nos seus esplendores e nas
suas trevas, conciliados supremamente com a Natureza.
E, então, os temperamentos que surgissem, que viessem, limpos de mancha, de
mácula, puramente lavados para as extremas perfectibilidades, virgens, sãos e
impetuosos para as extremas fecundações, com a virtude eloqüente de trazerem,
ainda sangradas, frescas, úmidas das terras germinais do Idealismo, as raízes
vivas e profundas, os germens legítimos, ingênitos, do Sentimento.
Os temperamentos que surgissem: — podiam ser simples, mas que essa simplicidade
acusasse também complexidade, como as claras Ilíadas que os rios cantam. Mas
igualmente podiam ser complexos, trazendo as inéditas manifestações do
Indefinido, e intensos, intensos sempre, sintéticos e abstratos, tendo esses
inexprimíveis segredos que vagam na luz, no ar, no som, no aroma, na cor e que
só a visão delicada de um espírito artístico assinala.
Poderiam também parecer obscuros por serem complexos, mas ao mesmo tempo serem
claros nessa obscuridade por serem lógicos, naturais, fáceis, de uma
espontaneidade sincera, verdadeira e livre na enunciação de sentimentos e
pensamentos, da concepção e da forma, obedecendo tudo a uma grande harmonia
essencial de linhas sempre determinativas da índole, da feição geral de cada
organização.
Os lados mais carregados, mais fundamente cavados dos temperamentos sangrentos,
fecundados em origens novas e de excepcionalidades não seriam para complicar e
enturvecer mais as respectivas psicologias; mas apenas para torná-las claras,
claras, para dar, simplesmente, com a máxima eloqüência, dessas próprias
psicologias, toda a evidência, toda a intensidade, todo o absurdo e nebuloso
Sonho...
Dominariam assim, venceriam assim, esses Sonhadores, os reservados, eleitos e
melancólicos Reinados do Ideal, apenas, unicamente por fatalidades impalpáveis,
imprescritíveis, secretas, e não por justaposições mecânicas de teorias e
didatismos obsoletos.
Os caracteres nervosos mais sutis, mais finos, mais vaporosos, de cada
temperamento, perder-se-iam, embora, na vaga truculenta, pesada, da multidão
inexpressiva, confusa, que burburinha com o seu lento ar parado e vazio,
conduzindo em seu bojo a concupiscência bestial enroscada como um sátiro, com a
alma gasta, olhando molemente para tudo com os seus dous pequeninos olhos
gulosos de símio.
Mas, a paixão inflamada do Ignoto subiria e devoraria reconditamente todos esses
Imaginativos dolentes, como se eles fossem abençoada zona ideal, preciosa,
guardando em sua profundidade o orientalismo de um tesouro curioso, o relicário
mágico do Imprevisto — abençoada zona saudosa, plaga d’ouro sagrada, para sempre
sepulcralmente fechada ao sentimento herético, à bárbara profanação dos
sacrílegos.
Assim é que eu sonhara surgirem todas essas aptidões, todas essas feições
singulares, dolorosas, irrompendo de um alto princípio fundamental distinto em
certos traços breves, mas igual, uno, perfeito e harmonioso nas grandes linhas
gerais.
Essa é que fora a lei secreta, que escapara à percepção de filósofos e doutos,
do verdadeiro temperamento, alheio às orquestrações e aos incensos aclamatórios
da turba profana, porém alheio por causa, por sinceridade de penetração, por
subjetivismo mental sentido à parte, vivido à parte, — simples, obscuro,
natural, — como se a humanidade não existisse em torno e os nervos, a sensação,
o pensamento tivessem latente necessidade de gritar alto, de expandir e
transfundir no espaço, vivamente, a sua psicose atormentada.
Assim é que eu via a Arte, abrangendo todas as faculdades, absorvendo todos os
sentidos, vencendo-os, subjugando-os amplamente.
Era uma força oculta, impulsiva, que ganhara já a agudeza picante, acre, de um
apetite estonteante e a fascinação infernal, tóxica, de um fugitivo e
deslumbrador pecado...
Assim é que eu a compreendia em toda a intimidade do meu ser, que eu a sentia em
toda a minha emoção, em toda a genuína expressão do meu Entendimento — e não uma
espécie de iguaria agradável, saborosa, que se devesse dar ao público em doses e
no grau e qualidade que ele exigisse, fosse esse público simplesmente um
símbolo, um bonzo antigo, taciturno e cor de oca, uma expressão serôdia, o
público A+B, cujo consenso a Convenção em letras maiúsculas decretara.
Afinal, em tese, todas as idéias em Arte poderiam ser antipáticas, sem
preconcebimentos a agradar, o que não quereriam dizer que fossem más.
No entanto, para que a Arte se revelasse própria, era essencial que o
temperamento se desprendesse de tudo, abrisse vôos, não ficasse nem continuativo
nem restrito, dentro de vários moldes consagrados que tomaram já a significação
representativa de clichês oficiais e antiquados.
Quanto a mim, originalmente foi crescendo, alastrando o meu organismo, numa
veemência e num ímpeto de vontade que se manifesta, num dilúvio de emoção, esse
fenômeno de temperamento que com sutilezas e delicadezas de névoas alvorais vem
surgindo e formando em nós os maravilhosos encantamentos da Concepção.
O Desconhecido me arrebatara e surpreendera e eu fui para ele instintiva e
intuitivamente arrastado, insensível então aos atritos da frivolidade,
indiferente, entediado por índole diante da filáucia letrada, que não trazia a
expressão viva, palpitante, da chama de uma fisionomia, de um tipo
afirmativamente eleito.
Muitos diziam-se rebelados, intransigentes — mas eu via claro as ficelles dessa
rebeldia e dessa intransigência. Rebelados, porque tiveram fome uma hora apenas,
as botas rotas um dia. Intransigentes, por despeito, porque não conseguiam
galgar as fúteis, para eles gloriosas, posições que os outros galgavam.
Era uma politicazinha engenhosa de medíocres, de estreitos, de tacanhos, de
perfeitos imbecilizados ou cínicos, que faziam da Arte um jogo capcioso,
maneiroso, para arranjar relações e prestígio no meio, de jeito a não ofender, a
não fazer corar o diletantismo das suas idéias. Rebeldias e intransigências em
casa, sob o teto protetor, assim uma espécie de ateísmo acadêmico, muito
demolidor e feroz, com ladainhas e amuletos em certa hora para livrar da
trovoada e dos celestes castigos imponderáveis!
Mas, uma vez cá fora à luz crua da Vida e do Mundo, perante o ferro em brasa da
livre análise, mostrando logo as curvaturas mais respeitosas, mais gramaticais,
mais clássicas, à decrépita Convenção com letras maiúsculas.
Um ou outro, pairando, no entanto, mais alto no meio, tinha manhas de raposa
fina, argúcia, vivacidades satânicas, no fundo frívolas, e que a maior parte,
inteiramente oca, sem penetração, não sentia. Fechava sistematicamente os olhos
para fingir não ver, para não sair dos seus cômodos pacatos de aclamado banal,
fazendo esforço supremo de conservar a confusão e a complicação do meio,
transtornar e estontear aquelas raras e adolescentes cabeças que por acaso
aparecessem já com algum nebuloso segredo.
Um ou outro tinha a habilidade quase mecânica de apanhar, de recolher do tempo e
do espaço as idéias e os sentimentos que, estando dispersos, formavam a
temperatura burguesa do meio, portanto corrente já, e trabalhar algumas páginas,
alguns livros, que por trazerem idéias e sentimentos homogêneos dos sentimentos
e idéias burguesas, aqueciam, alvoroçavam, atordoavam o ar de aplausos...
Outros, ainda, adaptados às épocas, aclimados ao modo de sentir exterior; ou,
ainda por mal compreendido ajeitamento, fazendo absoluta apostasia do seu sentir
íntimo, próprio, iludidos em parte; ou, talvez, evidenciando com flagrância,
traindo assim o fundo fútil, sem vivas, entranhadas raízes de sensibilidade
estética, sem a ideal radicalização de sonhos ingenitamente fecundados e
quinta-essenciados na alma, das suas naturezas passageiras, desapercebidas de
certos movimentos inevitáveis da estesia, que imprimem, por fórmulas fatais, que
arrancam das origens profundas, com toda a sanguinolenta verdade e por causas
fugidias a toda e qualquer análise, tudo o quanto se sente e pensa de mais ou
menos elevado e completo.
Mistificadores afetados de canaillerie por tom, por modernismos falhos apanhados
entre os absolutamente fracos, os pusilânimes de têmpera no fundo, e que, no
entanto, tanto aparentam correção e serena força própria.
Naturezas vacilantes e mórbidas, sem a integração final, sem mesmo o equilíbrio
fundamental do próprio desequilíbrio e, ainda mais do que tudo, sem esse poder
quase sobrenatural, sem esses atributos excepcionais que gravam, que assinalam
de modo estranho, às chamejantes e intrínsecas obras d’Arte, o caráter
imprevisto, extra-humano, do Sonho.
Hábeis viveurs, jeitosos, sagazes, acomodatícios, afetando pessimismos mais por
desequilíbrio que por fundamento, sentindo, alguns, até à saciedade, a
atropelação do meio, fingindo desprezá-lo, aborrecê-lo, odiá-lo, mas mergulhando
nele com frenesi, quase com delírio, mesmo com certa volúpia maligna de frouxos
e de nulos que trazem num grau muito apurado a faculdade animal do instinto de
conservação, a habilidade de nadadores destros e intrépidos nas ondas turvas dos
cálculos e efeitos convencionais.
Tal, desse modo, um prestidigitador ágil e atilado, colhe e prende, com as
miragens e truques da nigromancia, a frívola atenção passiva de um público dócil
e embasbacado.
Insipientes, uns, obscenamente cretinos, outros, devorados pela desoladora
impotência que os torna lívidos e lhes dilacera os fígados, eu bem lhes percebo
as psicologias subterrâneas, bem os vejo passar, todos, todos, todos, d’olhos
oblíquos, numa expressão fisionômica azeda e vesga de despeito, como errantes
duendes da Meia-Noite, verdes, escarlates, amarelos e azuis, em vão grazinando e
chocalhando na treva os guizos das sarcásticas risadas...
Almas tristes, afinal, que se diluem, que se acabam, num silêncio amargo, numa
dolorosa desolação, murchas e doentias, na febre fatal das desorganizações,
melancolicamente, melancolicamente, como a decomposição de tecidos que
gangrenaram, de corpos que apodreceram de um modo irremediável e não podem mais
viçar e florir sob as refulgências e sonoridades dos finíssimos ouros e cristais
e safiras e rubis incendiados do Sol...
Almas lassas, debochadamente relaxadas, verdadeiras casernas onde a mais rasgada
libertinagem não encontra fundo; almas que vão cultivando com cuidado delicadas
infamiazinhas como áspides galantes e curiosas e que de tão baixas, de tão rasas
que são nem merecem a magnificência, a majestade do Inferno!
Almas, afinal, sem as chamas misteriosas, sem as névoas, sem as sombras, sem os
largos e irisados resplendores do Sonho — supremo Redentor eterno!
Tudo um ambiente dilacerante, uma atmosfera que sufoca, um ar que aflige e dói
nos olhos e asfixia a garganta como uma poeira triste, muito densa, muito turva,
sob um meio-dia ardente, no atalho ermo de vila pobre por onde vai
taciturnamente seguindo algum obscuro enterro de desgraçado...
Eles riem, eles riem e eu caminho e sonho tranqüilo! Pedindo a algum belo Deus
d’Estrelas e d’Azul, que vive em tédios aristocráticos na Nuvem, que me deixe
serenamente e humildemente acabar esta Obra extrema de Fé e de Vida!
Se alguma nova ventura conheço é a ventura intensa de sentir um temperamento,
tão raro me é dado sentir essa ventura. Se alguma cousa me torna justo é a chama
fecundadora, o eflúvio fascinador e penetrante que se exala de um verso
admirável, de uma página de evocações, legítima e sugestiva.
O que eu quero, o que eu aspiro, tudo por quanto anseio, obedecendo ao sistema
arterial das minhas Intuições, é a Amplidão livre e luminosa, todo o Infinito,
para cantar o meu Sonho, para sonhar, para sentir, para sofrer, para vagar, para
dormir, para morrer, agitando ao alto a cabeça anatematizada, como Otelo nos
delírios sangrentos do Ciúme...
Agitando ainda a cabeça num derradeiro movimento de desdém augusto, como nos
cismativos ocasos os desdéns soberanos do sol que ufanamente abandona a terra,
para ir talvez fecundar outros mais nobres e ignorados hemisférios...
Pensam, sentem, estes, aqueles. Mas a característica que denota a seleção de uma
curiosa natureza, de um ser d’arte absoluto, essa, não a sinto, não a vejo, com
os delicados escrúpulos e susceptibilidades de uma flagrante e real
originalidade sem escolas, sem regulamentações e métodos, sem cotterie e anais
de crítica, mas com a força germinal poderosa de virginal afirmação viva.
D’alto a baixo, rasgam-se os organismos, os instrumentos da autópsia psicológica
penetram por tudo, sondam, perscrutam todas as células, analisam as funções
mentais de todas as civilizações e raças; mas só escapa à penetração, à
investigação desses positivos exames, a tendência, a índole, o temperamento
artístico, fugidios sempre e sempre imprevistos, porque são casos particulares
de seleção na massa imensa dos casos gerais que regem e equilibram secularmente
o mundo.
Desde que o Artista é um isolado, um esporádico, não adaptado ao meio, mas em
completa, lógica e inevitável revolta contra ele, num conflito perpétuo entre a
sua natureza complexa e a natureza oposta do meio, a sensação, a emoção que
experimenta é de ordem tal que foge a todas as classificações e casuísticas, a
todas as argumentações que, parecendo as mais puras e as mais exaustivas do
assunto, são, no entanto, sempre deficientes e falsas.
Ele é o supercivilizado dos sentidos, mas como que um supercivilizado ingênito,
transbordado do meio, mesmo em virtude da sua percuciente agudeza de visão, da
sua absoluta clarividência, da sua inata perfectibilidade celular, que é o
germen fundamental de um temperamento profundo.
Certos espíritos d’Arte assinalaram-se no tempo veiculado pela hegemonia das
raças, pela preponderância das civilizações, tendo, porém, em toda a parte, um
valor que era universalmente conhecido e celebrizado, porque, para chegar a esse
grau de notoriedade, penetrou primeiro nos domínios do oficialismo e da
cotterie.
Os de Estética emovente e exótica, os gueux, os requintados, os sublimes
iluminados por um clarão fantástico, como Baudelaire, como Poe, os
surpreendentes da Alma, os imprevistos missionários supremos, os inflamados,
devorados pelo Sonho, os clarividentes e evocativos, que emocionalmente
sugestionam e acordam luas adormecidas de Recordações e de Saudades, esses,
ficam imortalmente cá fora, dentre as augustas vozes apocalípticas da Natureza,
chorados e cantados pelas Estrelas e pelos Ventos!
Ah! benditos os Reveladores da Dor infinita! Ah! soberanos e invulneráveis
aqueles que, na Arte, nesse extremo requinte de volúpia, sabem
transcendentalizar a Dor, tirar da Dor a grande Significação eloqüente e não
amesquinhá-la e desvirginá-la!
A verdadeira, a suprema força d’Arte está em caminhar firme, resoluto,
inabalável, sereno através de toda a perturbação e confusão ambiente, isolado no
mundo mental criado, assinalando com intensidade e eloqüência o mistério, a
predestinação do temperamento.
É preciso fechar com indiferença os ouvidos aos rumores confusos e atropelantes
e engolfar a alma, com ardente paixão e fé concentrada, em tudo o que se sente e
pensa com sinceridade, por mais violenta, obscura ou escandalosa que essa
sinceridade à primeira vista pareça, por mais longe das normas preestabelecidas
que a julguem, — para então assim mais elevadamente estrelar os Infinitos da
grande Arte, da grande Arte que é só, solitária, desacompanhada das turbas que
chasqueiam, da matéria humana doente que convulsiona dentro das estreitezas
asfixiantes do seu torvo caracol.
Até mesmo certos livros, por mais exóticos, atraentes, abstrusos, que sejam, por
mais aclamados pela trompa do momento, nada podem influir, nenhuma alteração
podem trazer ao sentimento geral de idéias que se constituíram sistema e que
afirmam, de modo radical, mas simples, natural, por mais exagerado que se
suponha, a calma justa das convicções integrais, absolutas, dos que seguem
impavidamente a sua linha, dos que, trazendo consigo imaginativo espírito de
Concepção, caminham sempre com tenacidade, serenamente, imperturbáveis aos
apupos inofensivos, sem tonturas de fascinação efêmera, sentindo e conhecendo
tudo, com os olhos claros levantados e sonhadores cheios de uma radiante ironia
mais feita de clemência, de bondade, do que de ódio.
O Artista é que fica muitas vezes sob o signo fatal ou sob a auréola funesta do
ódio, quando no entanto o seu coração vem transbordando de Piedade, vem
soluçando de ternura, de compaixão, de misericórdia, quando ele só parece mau
porque tem cóleras soberbas, tremendas indignações, ironias divinas que causam
escândalos ferozes, que passam por blasfêmias negras, contra a Infâmia oficial
do Mundo, contra o vício hipócrita, perverso, contra o postiço sentimento
universal mascarado de Liberdade e de Justiça.
Nos países novos, nas terras ainda sem tipo étnico absolutamente definido, onde
o sentimento d’Arte é silvícola, local, banalizado, deve ser espantoso,
estupendo o esforço, a batalha formidável de um temperamento fatalizado pelo
sangue e que traz consigo, além da condição inviável do meio, a qualidade
fisiológica de pertencer, de proceder de uma raça que a ditadora ciência
d’hipóteses negou em absoluto para as funções do Entendimento e, principalmente,
do entendimento artístico da palavra escrita.
Deus meu! Por uma questão banal da química biológica do pigmento ficam alguns
mais rebeldes e curiosos fósseis preocupados, a ruminar primitivas erudições,
perdidos e atropelados pelas longas galerias submarinas de uma sabedoria
infinita, esmagadora, irrevogável!
Mas, que importa tudo isso?! Qual é a cor da minha forma, do meu sentir? Qual é
a cor da tempestade de dilacerações que me abala? Qual a dos meus sonhos e
gritos? Qual a dos meus desejos e febre?
Ah! esta minúscula humanidade, torcida, enroscada, assaltando as almas com a
ferocidade de animais bravios, de garras aguçadas e dentes rijos de carnívoro, é
que não pode compreender-me.
Sim! Tu é que não podes entender-me, não podes irradiar, convulsionar-te nestes
efeitos com os arcaísmos duros da tua compreensão, com a carcaça paleontológica
do Bom Senso.
Tu é que não podes ver-me, atentar-me, sentir-me, dos limites da tua toca de
primitivo, armada do bordão simbólico das convicções pré-históricas, patinhando
a lama das teorias, a lama das conveniências equilibrantes, a lama sinistra,
estagnada, das tuas insaciáveis luxúrias.
Tu não podes sensibilizar-te diante destes extasiantes estados d’alma, diante
destes deslumbramentos estesíacos, sagrados, diante das eucarísticas
espiritualizações que me arrebatam.
O que tu podes, só, é agarrar com frenesi ou com ódio a minha Obra dolorosa e
solitária e lê-la e detestá-la e revirar-lhe as folhas, truncar-lhe as páginas,
enodoar-lhe a castidade branca dos períodos, profanar-lhe o tabernáculo da
linguagem, riscar, traçar, assinalar, cortar com dísticos estigmatizantes, com
labéus obscenos, com golpes fundos de blasfêmia as violências da intensidade,
dilacerar, enfim, toda a Obra, num ímpeto covarde de impotência ou de angústia.
Mas, para chegares a esse movimento apaixonado, dolorido, já eu antes terei, por
certo — eu o sinto, eu o vejo! — te arremessado profundamente, abismantemente
pelos cabelos a minha Obra e obrigado a tua atenção comatosa a acordar, a
acender, a olfatar, a cheirar com febre, com delírio, com cio, cada adjetivo,
cada verbo que eu faça chiar como um ferro em brasa sobre o organismo da Idéia,
cada vocábulo que eu tenha pensado e sentido com todas as fibras, que tenha
vivido com os meus carinhos, dormido com os meus desejos, sonhado com os meus
sonhos, representativos integrais, únicos, completos, perfeitos, de um convulsão
e aspiração supremas.
Não conseguindo impressionar-te, afetar-te a bossa inteletiva, quero ao menos
sensacionar-te a pele, ciliciar-te, crucificar-te ao meu estilo, desnudando ao
sol, pondo abertas e francas, todas as expressões, nuances e expansibilidades
deste amargurado ser, tal como sou e sinto.
Os que vivem num completo assédio no mundo, pela condenação do Pensamento,
dentro de um báratro monstruoso de leis e preceitos obsoletos, de convenções
radicadas, de casuísticas, trazem a necessidade inquieta e profunda de como que
traduzir, por traços fundamentais, as suas faces, os seus aspectos, as suas
impressionabilidades e, sobretudo, as suas causas originais, vindas fatalmente
da liberdade fenomenal da Natureza.
Ah! Destino grave, de certo modo funesto, dos que vieram ao mundo para, com as
correntes secretas dos seus pensamentos e sentimentos, provocar convulsões
subterrâneas, levantar ventos opostos de opiniões, mistificar a insipiência dos
adolescentes intelectuais, a ingenuidade de certas cabeças, o bom senso dos
cretinos, deixar a oscilação da fé, sobre a missão que trazem, no espírito
fraco, sem consistência de crítica própria, sem impulsão original para afirmar
os Obscuros que não contemporizam, os Negados que não reconhecem a Sanção
oficial, que repelem toda a sorte de conchavos, de compadrismos interesseiros,
de aplausos forjicados, por limpidez e decência e não por frivolidades de
orgulhos humanos ou de despeitos tristes.
Ah! Destino grave dos que vieram ao mundo para ousadamente deflorar as púberes e
cobardes inteligências com o órgão másculo, poderoso da Síntese, para inocular
nas estreitezas mentais o sentimento vigoroso das Generalizações, para revelar
uma obra bem fecundada de sangue, bem constelada de lágrimas, para, afinal,
estabelecer o choque violento das almas, arremessar umas contra as outras, na
sagrada, na bendita impiedade de quem traz consigo os vulcanizadores Anátemas
que redimem.
O que em nós outros Errantes do Sentimento flameja, arde e palpita, é esta ânsia
infinita, esta sede santa e inquieta, que não cessa, de encontrarmos um dia uma
alma que nos veja com simplicidade e clareza, que nos compreenda, que nos ame,
que nos sinta.
É de encontrar essa alma assinalada pela qual viemos vindo de tão longe sonhando
e andamos esperando há tanto tempo, procurando-a no Silêncio do mundo, cheios de
febre e de cismas, para no seio dela cairmos frementes, alvoroçados,
entusiastas, como no eterno seio da Luz imensa e boa que nos acolhe.
É esta bendita loucura de encontrar essa alma para desabafar ao largo da Vida
com ela, para respirar livre e fortemente, de pulmões satisfeitos e límpidos,
toda a onda viva de vibrações e de chamas do Sentimento que contivemos por tanto
e tão longo tempo guardada na nossa alma, sem acharmos uma outra alma irmã à
qual pudéssemos comunicar absolutamente tudo.
E quando a flor dessa alma se abre encantadora para nós, quando ela se nos
revela com todos os seus sedutores e recônditos aromas, quando afinal a
descobrimos um dia, não sentimos mais o peito opresso, esmagado: — uma nova
torrente espiritual deriva do nosso ser e ficamos então desafogados, coração e
cérebro inundados da graça de um divino amor, bem pagos de tudo, suficientemente
recompensados de todo o transcendente Sacrifício que a Natureza heroicamente
impôs aos nossos ombros mortais, para ver se conseguimos aqui embaixo na Terra
encher, cobrir este abismo do Tédio com abismos de Luz!
O mundo, chato e medíocre nos seus fundamentos, na sua essência, é uma dura
fórmula geométrica. Todo aquele que lhe procura quebrar as hirtas e caturras
linhas retas com o poder de um simples Sentimento, desloca de tal modo elementos
de ordem tão particular, de natureza tão profunda e tão séria que tudo se turba
e convulsiona; e o temerário que ousou tocar na velha fórmula experimenta toda a
Dor imponderável que esse simples Sentimento responsabiliza e provoca.
Eu não pertenço à velha árvore genealógica das intelectualidades medidas, dos
produtos anêmicos dos meios lutulentos, espécies exóticas de altas e curiosas
girafas verdes e spleenéticas de algum maravilhoso e babilônico jardim de
lendas...
Num impulso sonâmbulo para fora do círculo sistemático das Fórmulas
preestabelecidas, deixei-me pairar, em espiritual essência, em brilhos
intangíveis, através dos nevados, gelados e peregrinos caminhos da Via-Láctea...
E é por isso que eu ouço, no adormecimento de certas horas, nas moles quebreiras
de vagos torpores enervantes, na bruma crepuscular de certas melancolias, na
contemplatividade mental de certos poentes agonizantes, uma voz ignota, que
parece vir do fundo da Imaginação ou do fundo mucilaginoso do Mar ou dos
mistérios da Noite — talvez acordes da grande Lira noturna do Inferno e das
harpas remotas de velhos céus esquecidos, murmurar-me:
— "Tu és dos de Cam, maldito, réprobo, anatematizado! Falas em abstrações, em
Formas, em Espiritualidades, em Requintes, em Sonhos! Como se tu fosses das
raças de ouro e da aurora, se viesses dos arianos, depurado por todas as
civilizações, célula por célula, tecido por tecido, cristalizado o teu ser num
verdadeiro cadinho de idéias, de sentimentos — direito, perfeito, das perfeições
oficiais dos meios convencionalmente ilustres! Como se viesses do Oriente, rei!,
em galeras, dentre opulências, ou tivesses a aventura magna de ficar perdido em
Tebas, desoladamente cismando através de ruínas; ou a iriada, peregrina e
fidalga fantasia dos Medievos, ou a lenda colorida e bizarra por haveres
adormecido e sonhado, sob o ritmo claro dos astros, junto às priscas margens
venerandas do Mar Vermelho!
Artista! Pode lá isso ser se tu és d’África, tórrida e bárbara, devorada
insaciavelmente pelo deserto, tumultuando de matas bravias, arrastada sangrando
no lodo das Civilizações despóticas, torvamente amamentada com o leite amargo e
venenoso da Angústia! A África arrebatada nos ciclones torvelinhantes das
Impiedades supremas, das Blasfêmias absolutas, gemendo, rugindo, bramando no
caos feroz, hórrido, das profundas selvas brutas, a sua formidável Dilaceração
humana! A África laocoôntica, alma de trevas e de chamas, fecundada no Sol e na
Noite, errantemente tempestuosa como a alma espiritualizada e tantálica da
Rússia, gerada no Degredo e na Neve — pólo branco e pólo negro da Dor!
Artista?! Loucura! Loucura! Pode lá isso ser se tu vens dessa longínqua região
desolada, lá do fundo exótico dessa África sugestiva, gemente, Criação dolorosa
e sanguinolenta de Satãs rebelados, dessa flagelada África, grotesca e triste,
melancólica, gênese assombrosa de gemidos, tetricamente fulminada pelo banzo
mortal; dessa África dos Suplícios, sobre cuja cabeça nirvanizada pelo desprezo
do mundo Deus arrojou toda a peste letal e tenebrosa das maldições eternas!
A África virgem, inviolada no Sentimento, avalanche humana amassada com argilas
funestas e secretas para fundir a Epopéia suprema da Dor do Futuro, para
fecundar talvez os grandes tercetos tremendos de algum novo e majestoso Dante
negro!
Dessa África que parece gerada para os divinos cinzéis das colossais e
prodigiosas esculturas, para as largas e fantásticas Inspirações convulsas de
Doré — inspirações inflamadas, soberbas, choradas, soluçadas, bebidas nos
Infernos e nos Céus profundos do Sentimento humano.
Dessa África cheia de solidões maravilhosas, de virgindades animais instintivas,
de curiosos fenômenos de esquisita Originalidade, de espasmos de Desespero,
gigantescamente medonha, absurdamente ululante — pesadelo de sombras macabras —
visão valpurgiana de terríveis e convulsos soluços noturnos circulando na Terra
e formando, com as seculares, despedaçadas agonias da sua alma renegada, uma
auréola sinistra, de lágrimas e sangue, toda em torno da Terra...
Não! Não! Não! Não transporás os pórticos milenários da vasta edificação do
Mundo, porque atrás de ti e adiante de ti não sei quantas gerações foram
acumulando, acumulando pedra sobre pedra, pedra sobre pedra, que para aí estás
agora o verdadeiro emparedado de uma raça.
Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa parede
horrendamente incomensurável de Egoísmos e Preconceitos! Se caminhares para a
esquerda, outra parede, de Ciências e Críticas, mais alta do que a primeira, te
mergulhará profundamente no espanto! Se caminhares para a frente, ainda nova
parede, feita de Despeitos e Impotências, tremenda, de granito, broncamente se
elevará ao alto! Se caminhares, enfim, para trás, ah! ainda, uma derradeira
parede, fechando tudo, fechando tudo — horrível! — parede de Imbecilidade e
Ignorância, te deixará num frio espasmo de terror absoluto...
E, mais pedras, mais pedras se sobreporão às pedras já acumuladas, mais pedras,
mais pedras... Pedras destas odiosas, caricatas e fatigantes Civilizações e
Sociedades... Mais pedras, mais pedras! E as estranhas paredes hão de subir, —
longas, negras, terríficas! Hão de subir, subir, subir mudas, silenciosas, até
às Estrelas, deixando-te para sempre perdidamente alucinado e emparedado dentro
do teu Sonho...
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