Número 226 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 12 de setembro de 2007 

«Mesmo quando o pássaro caminha, sente-se que ele tem asas.» (Antoine-Marin Lemierre) *
 


Raiça Bomfim


Caros,

O poesia.net traz esta semana uma autora que vem da chamada blogosfera — o novo sistema de comunicação formado pelos blogs. Baiana de Vitória da Conquista, Raiça Bomfim nasceu em 1986 e reside em Salvador desde bebê, exceto quatro anos em que morou em Barcelona, na Espanha. Raiça estuda artes cênicas, e não só estuda: é atriz profissional. No momento, ela integra o elenco da peça O Mentiroso, do italiano Carlo Goldoni (1707-1793), que está em cartaz na capital baiana.

É certo que — como também acontece com as mídias tradicionais a maior parte do material publicado nos blogs tem qualidade bem abaixo do sofrível. Mas, ao mesmo tempo, a facilidade e a liberdade de publicar sempre revela, aqui e ali, boas novidades.

Esse é o caso de Raiça Bomfim. Quem me chamou a atenção para os escritos dela foi a poeta e professora baiana Ana Cecília de Sousa Bastos. Fui ao blog da Raiça, Mãinha me deu lápis, e comecei a ler os poemas. De cara, o que me atraiu foi a  espontaneidade dos textos, o ar de quem está à vontade com o que escreve.

No poema "Vermelha", quem fala é uma personagem que tem a certeza de conter várias pessoas em si. Por isso ela se refere a “uma de mim”. O mesmo tema é retomado pela poeta em "Controverso". Despreocupação e ironia dão o tom do espirituoso "No Telhado", um poema quase surrealista.

Textos como "Silêncio", "O Homem dos Sonhos", "Sinuosidades" e "Remedinho" são peças de afinação e afirmação feminina no difícil jogo amoroso. Revelam tanto momentos de carência e fragilidade como, ao contrário, situações em que a tigresa ataca, negaceia e se sente no comando.

Talvez, dos textos mostrados aqui, "Bailes Submersos" seja o que apresenta maior equilíbrio, em ritmo, lirismo e expressão. É a moça das areias, "que traga a última réstia da lua / (...) e deita-se no mar / pra estudar a língua dos peixes".

Por fim, em "Manhã", o que se destaca é a singeleza da descrição de uma cena familiar numa convivência de gerações, avó e neta. Um belo exemplo de anotação despretensiosa, sem os garrotes do texto com pompas literárias.

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Para imitar o estilo dos blogs, na seleta de poemas ao lado cada texto vem antecedido da data em que apareceu no blog da autora. Só não respeitei a ordem cronológica.

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A ILUSTRADORA

Além da própria Raiça Bomfim, em seu blog descobri outra blogueira, a jornalista e artista plástica Vânia Medeiros. Fluminense de Campos, onde nasceu em 1984, Vânia é também baiana, pois mora desde criança em Salvador. Desenhos dela ilustram a maior parte dos textos no blog de Raiça Bonfim. Todas as imagens ao lado foram copiadas do fotolog de Vânia Medeiros, com a devida autorização da artista. A ela nosso agradecimento. 




Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



 

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HISTÓRIA DA ÓPERA

Dica para quem está em São Paulo.
Lauro Machado Coelho, jornalista, tradutor e especialista em música, está lançando o livro As Óperas de Richard Strauss, que corresponde ao décimo primeiro volume de sua elogiada coleção História da Ópera.

Data: Segunda-feira, 17/9
Hora: 19h00
Local: Auditório da Cultura Inglesa
Rua Ferreira de Araújo, 741 – Pinheiros
São Paulo – SP
 


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SARAU DA PRIMAVERA

O Coletivo de Poetas e o Projeto Caliandra, de Brasília, estão organizando uma maratona poética inédita. Trata-se do Sarau da Primavera – 100 Horas de Poesia na Roda, evento que pretende entrar para o Guinness Book como o sarau de maior duração no mundo. Haverá leituras, palestras, lançamentos de livros. Se você está no Distrito Federal, dê uma passada lá.

Início: Das 20h00 do dia 19/9, quarta-feira
Término: 00h00 do dia 23/9, domingo
Local: Clube da Imprensa
SCEN Trecho 1 Lote 1
Brasília-DF

A última réstia da lua

Raiça Bomfim

 



QUINTA-FEIRA, 29 DE JUNHO DE 2006
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VERMELHA

Tem uma de mim que é duríssima...
Sangra feito uma condenada,
mas não larga a mão da faca.
Tem uma de mim que toda noite se mata.
Essa é a pior. É a mais poderosa de todas.
Mas só sabe se mostrar pra um certo olhar que não tem mais...
Aí fica berrando, trancada, aqui dentro.
Berrando, berrando...
E sangrando...


 

SÁBADO, 18 DE AGOSTO DE 2007
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Vânia Medeiros - Bailes Submersos

BAILES SUBMERSOS 2. SOLO COM CHAMPAGNE

Hoje eu sou aquela que voltou
do continente
a que caminha na praia remota
em plena madrugada
o vento patinando seu cachecol
a fina moça das areias

Hoje sou aquela do sapato perdido
na onda arrematada
a que traga a última réstia da lua
desnuda-se com toda a classe
e deita-se no mar
pra estudar a língua dos peixes




DOMINGO, 2 DE JULHO DE 2006
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Vânia Medeiros - Cores

NO TELHADO

Querendo ver novela
eu saio no sereno
e subo no telhado
pra ajeitar a antena
O velho do outro lado
olhando aquela cena
fala pra vizinhança
que sou gato
E eu ganho sete vidas e um baita resfriado...




SEGUNDA-FEIRA, 21 DE AGOSTO DE 2006
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SILÊNCIO

Pssss...
Deixe-se calar, meu amor...

Só acredito no que não pode ser dito.




QUINTA-FEIRA, 16 DE NOVEMBRO DE 2006
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Vânia Medeiros - Adeus

O HOMEM DOS SONHOS

Pra encontrar o homem dos seus sonhos
Ela se enfeita, se maquia, se penteia
E vai dormir.




SÁBADO, 6 DE JANEIRO DE 2007
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CONTROVERSO

Cada palavra que digo
Deixa-me a leve impressão
De que nunca concordo comigo

 


SEXTA-FEIRA, 26 DE JANEIRO DE 2007
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Vânia Medeiros - Mulher

SINUOSIDADES

quando vi sua hesitação, eu já sabia
é que tenho jeito de moça pura
e cara de mulher vadia

por via das dúvidas, você, cauto,
convidou:
que tal um sorvete e alguns livros de poesia?

adorei a idéia
linda tarde a nossa

quando veio a noite, sugeri qual uma
dama:
que tal uma cachaça nas curvas da cama?

pra nossa delícia, baby
meu prazer tem mais vias que suas dúvidas




SEXTA-FEIRA, 23 DE FEVEREIRO DE 2007
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Vânia Medeiros - Noite

REDE NOTURNA

Chove.

Viro a taça degustando uma
saudade.

Não pergunte que eu lhe conto
até os silêncios que enterrei
na infância.

Deito na interrogação,
devaneio,
divãneio
e só calo reticente pra você
subentender.

Teço colcha em seu ouvido
ausente
com a linha que puxei
do carretel de meu
desejo.

Falarei de aprendizado,
de sorriso,
de esperança...
Não interessa.

Chove e é madrugada.

As palavras são somente
porque não há beijos.


 

SEGUNDA-FEIRA, 23 DE ABRIL DE 2007
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Vânia Medeiros - Chica de pelos negros

REMEDINHO

Num dia gris
de cinema e chá mate
um rapaz elegante
olhos de chocolate
me entregou uma canção
uma rosa e um edredom...

Homens gentis
são bem mais eficazes
do que cebion.




TERÇA-FEIRA, 15 DE MAIO DE 2007
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Vânia Medeiros - Caçada


SUBTERFÚGIOS 2

Cumprimento o vizinho com um sorriso,
fecho a porta e me dispo.

À minha frente, há um quarto em total desordem
e a falta de cuidado com os laços desgastados.

Em cima da escrivaninha,
envelopes com a lembrança de problemas protelados
e os livros substituídos por fugas
em paralíticas distrações.

A balbúrdia do meu coração me desconcentra
e minhas vassouras preguiçosas
não alcançam suas quinas.

Eu apenas dou um suspiro,
escondo a poeira embaixo do tapete
e chamo um bom amigo prum conhaque.




TERÇA-FEIRA, 2 DE JANEIRO DE 2007
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Vânia Medeiros - Laços


MANHÃ

Acordei com o barulho do pirex se estilhaçando no chão
e ela, bem humorada, disse:
“acordei você, meu Deus. Eu sou mesmo uma desastrada!”
e riu.

O sol, a se espreguiçar, lentamente invadia
a sala por dentre as vidraças coloridas das
janelas.

Pelo ruído vagaroso que vinha lá de fora, pude imaginar
que o mar estava bem daquele jeito que mais parece
cochilo em cadeira de balanço.

“Deus ajuda quem cedo madruga”
e eu, que nunca dei ouvido a certos ditados,
me senti feliz pelo pirex,
pela gargalhadinha engraçada dela
e por ainda estar em
tempo...

Tomou o último gole de café, colocou seus óculos escuros
de armação cor de carmim, cheirou um hibisco rosa
e arrumou a velha cadela na cestinha da bicicleta.
Acenou do portão com um “ah, minha neta, não é uma
maravilha morar em frente ao mar?!” e foi-se
pedalando devagar até fundir-se à paisagem
como num filme italiano.

Por toda a manhã, seus cabelos grisalhos
de pontas acobreadas pela tinta antiga,
persistiram em meu olhar a dançar uma
serenata, recordando-me o
afável aroma da
paciência.

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

•  Raiça Bomfim
    Todos os poemas foram pescados no blog da autora:
    Mãinha me deu lápis
•  Vânia Medeiros
    Ilustrações extraídas do fotolog:
    www.flickr.com/photos/vania_medeiros
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* Antoine-Marin Lemierre (1733-1793), citado por
   Marcel Proust em Contra Sainte-Beuve