Raiça Bomfim
Caros,
O poesia.net traz esta semana uma autora que vem da chamada blogosfera
— o novo sistema de comunicação formado pelos blogs. Baiana de Vitória da
Conquista, Raiça Bomfim nasceu em 1986 e reside em Salvador desde bebê, exceto
quatro anos em que morou em Barcelona, na Espanha. Raiça estuda artes cênicas, e
não só estuda: é atriz profissional. No momento, ela integra o elenco da peça
O Mentiroso, do italiano Carlo Goldoni (1707-1793), que está em cartaz na
capital baiana.
É certo que — como também acontece com as mídias
tradicionais — a maior parte do material publicado nos
blogs tem qualidade bem abaixo do sofrível. Mas, ao mesmo tempo, a facilidade e
a liberdade de publicar sempre revela, aqui e ali, boas novidades.
Esse é o caso de Raiça Bomfim. Quem me chamou a atenção para os escritos dela
foi a poeta e professora baiana
Ana Cecília de Sousa Bastos. Fui ao blog da Raiça,
Mãinha me deu lápis,
e comecei a ler os poemas. De cara, o que me atraiu foi a espontaneidade
dos textos, o ar de quem está à vontade com o que escreve.
No poema "Vermelha", quem fala é uma personagem que tem a certeza de conter
várias pessoas em si. Por isso ela se refere a “uma de mim”. O mesmo tema é
retomado pela poeta em "Controverso". Despreocupação e ironia dão o tom do
espirituoso "No Telhado", um poema quase surrealista.
Textos como "Silêncio", "O Homem dos Sonhos", "Sinuosidades" e "Remedinho" são
peças de afinação e afirmação feminina no difícil jogo amoroso. Revelam tanto
momentos de carência e fragilidade como, ao contrário, situações em que a
tigresa ataca, negaceia e se sente no comando.
Talvez, dos textos mostrados aqui, "Bailes Submersos" seja o que apresenta maior
equilíbrio, em ritmo, lirismo e expressão. É a moça das areias, "que traga a
última réstia da lua / (...) e deita-se no mar / pra estudar a língua dos
peixes".
Por fim, em "Manhã", o que se destaca é a singeleza da descrição de uma cena
familiar numa convivência de gerações, avó e neta. Um belo exemplo de anotação
despretensiosa, sem os garrotes do texto com pompas literárias.
•o•
Para imitar o estilo dos blogs, na seleta de poemas ao lado cada texto vem
antecedido da data em que apareceu no blog da autora. Só não respeitei a ordem
cronológica.
•o•
A ILUSTRADORA
Além da própria Raiça Bomfim, em seu blog descobri outra blogueira, a jornalista
e artista plástica Vânia Medeiros. Fluminense de Campos, onde nasceu em 1984,
Vânia é também baiana, pois mora desde criança em Salvador. Desenhos dela
ilustram a maior parte dos textos no blog de Raiça Bonfim. Todas as imagens ao
lado foram copiadas do
fotolog de
Vânia Medeiros, com a devida autorização da
artista. A ela nosso agradecimento.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
HISTÓRIA DA ÓPERA
Dica para quem está em São Paulo.
Lauro Machado Coelho, jornalista, tradutor e especialista em música, está
lançando o livro As Óperas de Richard Strauss, que corresponde ao décimo
primeiro volume de sua elogiada coleção História da Ópera.
Data: Segunda-feira, 17/9
Hora: 19h00
Local: Auditório da Cultura Inglesa
Rua Ferreira de Araújo, 741 – Pinheiros
São Paulo – SP
•o•
SARAU DA PRIMAVERA
O Coletivo de Poetas e o Projeto Caliandra, de Brasília, estão organizando uma
maratona poética inédita. Trata-se do Sarau da Primavera – 100 Horas de Poesia
na Roda, evento que pretende entrar para o Guinness Book como o sarau de
maior duração no mundo. Haverá leituras, palestras, lançamentos de livros. Se
você está no Distrito Federal, dê uma passada lá.
Início: Das 20h00 do dia 19/9, quarta-feira
Término: 00h00 do dia 23/9, domingo
Local: Clube da Imprensa
SCEN Trecho 1 Lote 1
Brasília-DF |
A última réstia da lua
|
Raiça Bomfim |
|
QUINTA-FEIRA, 29 DE JUNHO DE 2006
---------------------------------------------------------------------------------------
VERMELHA
Tem uma de mim que é duríssima...
Sangra feito uma condenada,
mas não larga a mão da faca.
Tem uma de mim que toda noite se mata.
Essa é a pior. É a mais poderosa de todas.
Mas só sabe se mostrar pra um certo olhar que não tem mais...
Aí fica berrando, trancada, aqui dentro.
Berrando, berrando...
E sangrando...
SÁBADO, 18 DE AGOSTO DE 2007
---------------------------------------------------------------------------------------
BAILES SUBMERSOS 2. SOLO COM CHAMPAGNE
Hoje eu sou aquela que voltou
do continente
a que caminha na praia remota
em plena madrugada
o vento patinando seu cachecol
a fina moça das areias
Hoje sou aquela do sapato perdido
na onda arrematada
a que traga a última réstia da lua
desnuda-se com toda a classe
e deita-se no mar
pra estudar a língua dos peixes
DOMINGO, 2 DE JULHO DE 2006
---------------------------------------------------------------------------------------
NO TELHADO
Querendo ver novela
eu saio no sereno
e subo no telhado
pra ajeitar a antena
O velho do outro lado
olhando aquela cena
fala pra vizinhança
que sou gato
E eu ganho sete vidas e um baita resfriado...
SEGUNDA-FEIRA, 21 DE AGOSTO DE 2006
---------------------------------------------------------------------------------------
SILÊNCIO
Pssss...
Deixe-se calar, meu amor...
Só acredito no que não pode ser dito.
QUINTA-FEIRA, 16 DE NOVEMBRO DE 2006
---------------------------------------------------------------------------------------
O HOMEM DOS SONHOS
Pra encontrar o homem dos seus sonhos
Ela se enfeita, se maquia, se penteia
E vai dormir.
SÁBADO, 6 DE JANEIRO DE 2007
---------------------------------------------------------------------------------------
CONTROVERSO
Cada palavra que digo
Deixa-me a leve impressão
De que nunca concordo comigo
SEXTA-FEIRA, 26 DE JANEIRO DE 2007
---------------------------------------------------------------------------------------
SINUOSIDADES
quando vi sua hesitação, eu já sabia
é que tenho jeito de moça pura
e cara de mulher vadia
por via das dúvidas, você, cauto,
convidou:
que tal um sorvete e alguns livros de poesia?
adorei a idéia
linda tarde a nossa
quando veio a noite, sugeri qual uma
dama:
que tal uma cachaça nas curvas da cama?
pra nossa delícia, baby
meu prazer tem mais vias que suas dúvidas
SEXTA-FEIRA, 23 DE FEVEREIRO DE 2007
---------------------------------------------------------------------------------------
REDE NOTURNA
Chove.
Viro a taça degustando uma
saudade.
Não pergunte que eu lhe conto
até os silêncios que enterrei
na infância.
Deito na interrogação,
devaneio,
divãneio
e só calo reticente pra você
subentender.
Teço colcha em seu ouvido
ausente
com a linha que puxei
do carretel de meu
desejo.
Falarei de aprendizado,
de sorriso,
de esperança...
Não interessa.
Chove e é madrugada.
As palavras são somente
porque não há beijos.
SEGUNDA-FEIRA, 23 DE ABRIL DE
2007
---------------------------------------------------------------------------------------
REMEDINHO
Num dia gris
de cinema e chá mate
um rapaz elegante
olhos de chocolate
me entregou uma canção
uma rosa e um edredom...
Homens gentis
são bem mais eficazes
do que cebion.
TERÇA-FEIRA, 15 DE MAIO DE 2007
---------------------------------------------------------------------------------------
SUBTERFÚGIOS 2
Cumprimento o vizinho com um sorriso,
fecho a porta e me dispo.
À minha frente, há um quarto em total desordem
e a falta de cuidado com os laços desgastados.
Em cima da escrivaninha,
envelopes com a lembrança de problemas protelados
e os livros substituídos por fugas
em paralíticas distrações.
A balbúrdia do meu coração me desconcentra
e minhas vassouras preguiçosas
não alcançam suas quinas.
Eu apenas dou um suspiro,
escondo a poeira embaixo do tapete
e chamo um bom amigo prum conhaque.
TERÇA-FEIRA, 2 DE JANEIRO DE 2007
---------------------------------------------------------------------------------------
MANHÃ
Acordei com o barulho do pirex se estilhaçando no chão
e ela, bem humorada, disse:
“acordei você, meu Deus. Eu sou mesmo uma desastrada!”
e riu.
O sol, a se espreguiçar, lentamente invadia
a sala por dentre as vidraças coloridas das
janelas.
Pelo ruído vagaroso que vinha lá de fora, pude imaginar
que o mar estava bem daquele jeito que mais parece
cochilo em cadeira de balanço.
“Deus ajuda quem cedo madruga”
e eu, que nunca dei ouvido a certos ditados,
me senti feliz pelo pirex,
pela gargalhadinha engraçada dela
e por ainda estar em
tempo...
Tomou o último gole de café, colocou seus óculos escuros
de armação cor de carmim, cheirou um hibisco rosa
e arrumou a velha cadela na cestinha da bicicleta.
Acenou do portão com um “ah, minha neta, não é uma
maravilha morar em frente ao mar?!” e foi-se
pedalando devagar até fundir-se à paisagem
como num filme italiano.
Por toda a manhã, seus cabelos grisalhos
de pontas acobreadas pela tinta antiga,
persistiram em meu olhar a dançar uma
serenata, recordando-me o
afável aroma da
paciência.
|