Paulo Ferraz
Caros,
Pela segunda vez, o poesia.net retorna a um autor já apresentado no
boletim. O poeta Paulo Ferraz esteve em foco na
edição n. 41, há cerca de quatro anos. Na época, ele havia publicado apenas
seu livro de estréia, Constatação do Óbvio, de 1999. Agora ele volta ao
boletim, depois de lançar, juntos, dois novos livros este ano: Evidências
Pedestres e
De Novo Nada. Nascido em Rondonópolis, MT, em 1974, Ferraz viveu em
Cuiabá até os 20 anos, quando se mudou para São Paulo. Aí concluiu o curso de
direito e fez o mestrado em teoria literária, ambos pela USP.
Para esta segunda rodada de Paulo Ferraz, fiz uma seleção de poemas de seus
novos livros. Evidências Pedestres (título tomado por empréstimo do
poema-crônica “Falta
um Disco”, de Drummond) é um volume que reúne textos eminentemente urbanos,
que o poeta parece ter escrito ao circular pelas ruas de São Paulo. Nesse
aspecto, Evidências dá continuidade ao projeto que o autor já havia
delineado em
Constatação do Óbvio. No entanto, seus instrumentos de expressão estão
muito mais afiados.
Leia-se, por exemplo, esse excelente “Da Utilidade da Poesia (e do Poeta)”. Com
delicado equilíbrio, Ferraz consegue juntar, no mesmo enredo, a questão
árabe-israelense, as limitações da poesia e a contemplação casual de uma moça
chupando sorvete na rua.
Em “Tragédia Urbana” o autor explora a distância entre certo discurso cheio de
boas intenções estetizantes aplicado ao urbanismo e o uso cruel e excludente que
se faz dos espaços públicos. Nesse poema, Paulo Ferraz lança mão de uma técnica
de interseção de planos. Num plano está o texto principal, que fala do monumento
arquitetônico. No outro, embutido no primeiro, aparece a fala de um arquiteto,
recheada de referências aistóricas, como se sua obra pudesse pairar acima dos
interesses que, em última instância, definem os rumos da cidade. A técnica do
texto imbricado, com múltiplas vozes em ação, será levada a patamares ainda mais
altos no livro De Novo Nada.
“Violão (Bossa Nova) de Rua” é um poema ambientado num ônibus urbano. Nele, o
narrador é um homem que, assim como em "Da Utilidade da Poesia", observa uma
mulher. Os detalhes que descrevem e caracterizam a moça – sejam os visíveis,
sejam os supostos pela imaginação do observador – imprimem ao texto um ritmo
cinematográfico. O leitor é levado a ver a jovem e a se comover com os
sentimentos que vão sendo construídos no texto.
Da rua passamos para um ambiente mais fechado — o da memória. É aí que se
desenvolvem os poemas “Mulher na Memória” e “Silêncio”. No primeiro, o amante
constata, com ironia, sua forma esquisita de se lembrar da ex. No outro, a
situação é idêntica, porém o tom é de aflição diante do silêncio causado pela
ausência daquela que não mora mais no mesmo apartamento. “Um silêncio material,
que / pesa feito coisa”.
Mesmo aqui, no espaço íntimo, chegam fortes os ecos da cidade. Porque o homem
lembra a mulher pela lista de supermercado, pelos barulhos do apartamento
vizinho.
Um ponto que não se pode deixar de ressaltar nos poemas de Evidências
Pedestres
é que em nenhum momento Paulo Ferraz usa o recurso da metáfora. Na prática, são
textos em prosa urdidos com fina perícia de poeta. Um caso raro. Em geral, quem
segue por esse caminho quase sempre quebra a cara: obtém poemas insípidos,
quando não inóspitos.
DE NOVO NADA?
Os dois últimos textos desta pequena antologia são excertos do livro De Novo
Nada. Nesse trabalho, Paulo Ferraz se lança num empreendimento ousado no
qual radicaliza muitos dos procedimentos poéticos mostrados em Evidências
Pedestres. Um deles é a indeterminação entre prosa e poesia. Outro: a
completa isenção de metáforas. Mas o que mais se destaca aí é a interseção de
planos textuais, com múltiplas vozes no mesmo texto. Uma polifonia.
De Novo Nada é um poema único, sem divisões em partes ou estrofes, com
quase 600 linhas. O poeta escreveu-o entre 2000 e 2006. Para dar conta da
imbricação de vozes, Paulo Ferraz lançou mão de alterações tipográficas. Há
trechos em itálico, em maiúsculas e negrito. Além disso, aparecem textos na
primeira pessoa do singular, citações, falas externas. Um livro difícil de
enquadrar numa classificação.
De Novo Nada (uma referência ao Eclesiastes — “nada de novo sob o sol”?),
assim como Evidências Pedestres, é um texto que vem da experiência nas
cidades. O indivíduo que fala em todo o texto parece perambular pela cidade,
onde encontra personagens como a cigana quiromante, uma mendiga, o sábio Haroldo
(certamente uma referência ao poeta
Haroldo de Campos) e a mulher do outdoor. Esta aparece várias vezes no texto
e representa, na minha visão, uma espécie de símbolo da propaganda e das
ideologias de consumo disseminadas na cidade. "Pobre da cidade e / dessa mulher
que, calada, / se comunica comigo, / mesmo que eu, por entre prédios, / não a
veja multiplicada".
Paulo Ferraz, sem a menor dúvida, vem desenvolvendo hoje um dos trabalhos mais
expressivos dos poetas de sua geração. Como uma negação ao título de seu De
Novo Nada, sua poesia é, sim, uma coisa nova.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
PRÊMIO
De Novo Nada, de Paulo Ferraz, foi indicado (ao lado de Macho Não
Ganha Flor, de Dalton Trevisan, e A Máquina de Ser, de João Gilberto
Noll) como finalista ao título de melhor livro do ano, no 3º
Prêmio Bravo! Prime de Cultura, promovido pela revista Bravo! A
premiação será no dia 1º de outubro, em São Paulo. |
Evidências pedestres
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Paulo Ferraz |
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DA UTILIDADE DA POESIA (E DO POETA)
eu pensava no próximo homem-bomba — e em
como (aos pedaços!) gozaria de suas setenta virgens, e nos
homens-alvo tomando café, esperando o ônibus, sem saber que,
[ e nos
tratores demolindo casas com moradores sabendo que, e nos
agentes do Mossad teleguiando mísseis, e no
choro materno e vidual das filhas de Is
r/m
ael
— e nessas outras coisas que
nem minha poesia nem homens como nós
podem resolver,
quando uma moça em minha frente,
chupando sorvete me puxou de volta
com sua língua a cuidadosamente moldar
a massa em espirais. Pensei em avisá-la
que uma gota marrom espessa escorria
pelos lábios até o queixo, mas,
antes de abrir a boca,
um namorado chega e a limpa com um beijo.
Mais um problema que
nem minha poesia nem homens como nós podem resolver.
TRAGÉDIA URBANA
A maquete fora elogiadíssima na Bienal de Veneza,
— Meu objetivo é retratar a suspensão do tempo, o
fim da história, como se usa dizer. Por isso, serão
utilizados materiais reciclados, comprados em
demolições, ou fabricados por artesãos
especializados em imitações: na fachada haverá
frisos compostos de entulhos de velhos Ramos
de Azevedo; os balanços serão de casas neocoloniais
no lobby serão erguidas paredes de adobe; haverá
ferrarias da Sorocabana Railway; as portas, janelas
e maçanetas virão de cidades históricas de Minas.
Haverá, mas escondido, um pedaço de Niemeyer,
um pequeno enigma para meus pares. Não, nada
aqui será anacrônico, pois o presente e o passado
estão os dois no futuro, não é assim que disse
aquele poeta inglês? Pound, não é? seja quem for, é
o futuro sendo extraído das ruínas do tempo.
tanto que resolveram construí-la — marco
aistórico —, após um grande estudo
sociológico,
na zona cerealista da cidade.
Ninguém notou que era um marco,
até que um pivete
resolveu pichar o nome da namorada
numa das torres.
Quem hoje passa por lá
ainda lê o nome pela
metade e ainda
vê o corpo caindo.
VIOLÃO (BOSSA NOVA) DE RUA
Vinha do trabalho,
talvez secretária, ou
qualquer outra coisa
que num escritório
se obriga a ter certo
padrão de aparência,
vê-se pela roupa,
que embora não seja u-
niforme tem jeito
de (um conjunto cáqui, o
tecido já gasto, as
linhas começando a
se soltar.) Nos pés, sa-
patos ordinários,
bastante rodados,
o couro sintéti-
co está desgastado,
tendo adquirido a
forma dos ossinhos,
pelas solas nota-
se que não reside
perto da parada,
caminha, caminha,
provável que por u-
ma rua sem asfalto, ou
não seriam de lama as
manchas? Nós devíamos
levá-la nos braços.
Quanto tempo gasto
dobrando papéis e
sorrindo? ainda pouco
menina, e agora esses
cabelos que faltam
só serem grisalhos,
e esse lápis (lápis?)
contornando os olhos.
O cansaço é tanto
que ela simplesmente
se esquece do corpo,
da postura certa,
deixa-se, menina-
mente, pelo menos
aqui, cair, são as coxas
a escora dos braços.
Um pingente, Nossa
Senhora de Alguma
Coisa, faz um pêndulo
(padroeira? advogada?), a
blusa por debaixo
do casaco solta-se e
se projeta, dando a
ver seus dois peitinhos,
únicos resquícios
de felicidade,
que nos solavancos
fazem uma algazarra,
como se quisessem es-
capulir. Que graça,
mais do seu ladinho e
poderia ouvir risos.
Vou fazer um poema.
MULHER NA MEMÓRIA
Poderia guardar o
cheiro, o gosto, as formas
na memória, tê-la
quando bem quisesse
sem contato, mas o
diabo da cabeça
resolveu (que tosca)
guardar justamente o
vermelho do esmalte
na sua unha encravada.
SILÊNCIO
Resta do ouro que evapora
das mãos um silêncio, como
também dos porta-retratos
que não mais encontram a imagem
ideal, dos cabides que pen-
duram o vazio, dum par de
meias dispensadas, duma
lista de supermercados
que talvez esteja pela
metade e de bilhetinhos
extemporâneos, fantasmas
mudos, que surgem entre livros.
Um silêncio material, que
pesa feito coisa, que vem de
todos os lados e invade a
cabeça, emborcando os ombros.
Expulsá-lo implica vascu-
lhar o mundo dos barulhos:
um latido de não se sabe a
distância, o arrastar de móveis
do apartamento de cima, a
geladeira trabalhando
como o coração, enfim a-
té o mais imbecil dos sons se
transforma num alívio, como o
da tv ligada, toda
noite, na esperança de que
no sono se ouça: boa noite.
De Evidências Pedestres (2007)
DE NOVO NADA
(três excertos)
SÓ O IMPENSÁVEL É IMPOSSÍVEL
Deixa ler sua sorte. Mal me
dei conta e já tinha a mão da
velha agarrada à minha. Bela
mão, Velha, menos cigana
que mendiga. pele fina,
mas essas linhas O que me
disse em seguida perdeu-se
na poluição; minha mente
revolveu, para salvar a
sua quiromancia, o monturo,
depois, faxina completa,
decifrei: La buena dicha
de sua existên sobreposta
soa estridente uma sirene
cia, sua singularidade
talvez, está em seu destino
(creio que a tradução correta
seria: sua fatalidade).
Coma esta resma, coma esta
resma, esta resma alimenta
seu ventre e enche os intestinos,
talvez lhe seja indigesta.
Será. Logo, escolha como
sairão de seu corpo as letras
em cada página escritas.
Até há pouco, eu era mudo,
feliz e mudo, ignorante e
mudo, por que mudo minha
forma de viver no mundo?
Seria melhor ficar quieto
num canto, ser mais um desses
tímidos, tão comuns na vida,
vencidos, sem nem saber que o
são, cuja mediocridade
total acaba fazendo-os
felizes. Mandam-me ao lodo
da consciência, onde a felici-
dade — a esperança de, a nossa
procura por — está sempre
(buscá-la e perdê-la é o mesmo)
mais adiante ou um pouco atrás. O a-
gora nunca nos dá trégua, as
rédeas do cavalo interno
desata e a seu ventre ferra
com imagens do que não pode
ter: o real é prescindível,
o real é o menor de nós, o
real é só êxtase-tormento.
Mas essas linhas, há um rosto
de mulher o real é perda, o
real é a ilusão mais perversa e
terna com a qual nos logramos.
Só que a
mulher do outdoor, prisioneira
do papel, nenhum vermelho
traz em si. Devo esquecê-la?
Sem ela, viver não posso,
não posso viver contente,
pois uma sombra me cobre
seja aonde eu for, uma espessa
nuvem prenhe de tormentas
e saudade que minha vida en-
venena.
Sei que
meu canto não conta um conto
só canta como cantar, se
lhes disser que ele começa,
vocês dirão que ele cessa,
se lhes disser que ele avança,
vocês dirão que ele cansa,
se lhes disser que ele fala,
vocês dirão que ele cala e
velhoenovo será, pois que
quando tudo é permitido
nada é permitido, e temos
que nos equilibrar entre o
dolo e a culpa de fazer o
que queremos sem ferir o
código amorfo que impera.
Tudo permitido, tudo
proibido, tudo foi feito,
nada foi feito por nós que,
frente a frente, cara a cara
nos falamos. Entretanto
nossa mudez é absoluta,
mesmo a daqueles que pensam
ter o dom da fala, nossa
mudez virótica é o eco
do primeiro dia, sem forma e
vazia. Pobre da cidade e
dessa mulher que, calada,
se comunica comigo,
mesmo que eu, por entre prédios,
não a veja multiplicada.
De De Novo Nada (2007)
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