W. J. Solha
Caros,
O romancista, poeta e pintor W. J. Solha — nome artístico de Waldemar José Solha
— nasceu em Sorocaba (SP) em 1941 e desde 1962 radicou-se na Paraíba, primeiro
em Pombal e depois em João Pessoa. Para todos os efeitos práticos, portanto, W.
J. Solha é um autor paraibano.
Multiartista, Solha também escreveu e montou peças de teatro e até trabalhou
como ator em filmes como O Salário da Morte (1969), dirigido por
Linduarte Nogueira; Soledade, (1975), de Paulo Thiago; e A Canga
(2001), de Marcus Villar. Esse último filme é a adaptação de uma novela do
próprio Solha, que na tela assume o papel do lavrador e velho patriarca Ascenço
Teixeira.
Entre as facetas artísticas de Solha, a mais conhecida é a de romancista. Solha
é autor de seis romances publicados, entre os quais Zé Américo foi Princeso
no Trono da Monarquia (Codecri, 1984) e Shake-up (UFPb, 1997). O
escritor é também autor da História Universal da Angústia (Bertrand,
2005), um conjunto de narrativas que misturam ficção, história e literatura,
tendo sempre como pano de fundo as grandes tragédias e paixões humanas.
Nesse sentido, o livro Trigal com Corvos, que é o objeto específico deste
boletim, mantém parentesco muito próximo com a História Universal da Angústia.
Nesse longo poema, o autor combina, com mestria, referências autobiográficas,
citações literárias e fatos históricos para com isso montar um ambicioso e vasto
painel.
O Trigal com Corvos é poesia? É prosa? É os dois, e mais.
Ao ler esse livro, tenho a impressão de que o autor
decidiu escrever um poema de poemas, sustentado sobre uma superfície esférica.
Pode-se chegar a ele tomando qualquer trecho como ponto de partida. O início não
é, obrigatoriamente, a estação por onde se deve começar a exploração do texto.
Essa impressão me vem da multiplicidade de assuntos, histórias e estórias
abordados no texto. Bíblia? Tem. Mitologia? Idem. Religião? Óbvio. E também:
política, filosofia, lembranças pessoais do autor e personagens do universo pop,
lado a lado com figuras históricas, homens, mulheres, cidades e estados, filmes,
romances, poemas, tecnologias, antigas e atuais...
Sim, mas não é o samba-do-branquinho-doido, em que tudo faz parte do jogo, mas
nada se conecta a coisa nenhuma. As partes, esfericamente organizadas, estão
todas ancoradas na grande angústia do homem.
Poema premiado, Trigal com Corvos ficou entre os onze finalistas da 5a.
Bienal Nestlé de Literatura, em 1991. Ao concorrer, o Trigal era
apresentado com o título “E/u S/o/u E/s/t/a/s P/a/l/a/v/r/a/s”. Depois, o
poema passou por extenso retrabalho. W. J. Solha é um velho combatente na luta
com as palavras. Até o momento, Trigal é a única publicação assinada por
ele na área da poesia. Posteriormente, em 2005, o livro ganhou o prêmio João
Cabral de Melo Neto, da UBE-Rio.
Quando li o Trigal com Corvos, fiquei tomado inicialmente por uma dúvida:
como vou selecionar alguma coisa deste caudaloso poema? Depois de reler e
pensar, cheguei a uma conclusão arbitrária. Se o texto é esférico, como o
entendi, posso pinçar quaisquer trechos e ele estará representado. Não sei se é
a melhor forma, mas era necessário encontrar um jeito.
Trigal com Corvos, na edição que o poeta me fez chegar às mãos (Palimage
Editores, Portugal; e Imprell Gráfica, João Pessoa), é um poema acrescido de
partes posteriores: "Mais Corvos" e "Sobre Trigal". Resolvi desconhecer as
partes e apresentar aqui apenas excertos, que numerei arbitrariamente. Para
manter a coerência com minha visão esférica, direi apenas que todos os trechos
ao lado foram colhidos de forma aleatória ao longo do poema.
Vale ressaltar que aqui não pude reproduzir fielmente a disposição gráfica do
poema. É que o poeta ocupa toda a a extensão horizontal da página, com textos
que ora estão em verso, ora em prosa. O espaço disponível neste boletim não
permite tal esparrrame.
Um detalhe curioso: na capa de Trigal com Corvos, o autor projeta sua
própria imagem sobre o quadro homônimo do holandês Vincent van Gogh (1853-1890).
No caso, a imagem do poeta é, na verdade, a do patriarca
Ascenço Teixeira, no filme A Canga.
Para os interessados em entrar em contato com o autor, o endereço eletrônico
dele é wjsolha@superig.com.br
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
LANÇAMENTOS
•
Mario Rui Feliciani
- Dobras
O
fotógrafo Mario Rui Feliciani traz a público seu livro de contos Dobras,
que sai pelo Selo Sebastião Grifo.
Data: 23/10, terça-feira
Hora: 19h00
Local: Feira Moderna
Rua Fradique Coutinho, 1246
Vila Madalena. Tel. 11-3812-7431
São Paulo, SP
• Paulo de Toledo
- 51mendicantos
Na próxima quinta-feira, 25/10, o poeta Paulo de Toledo lança
o livro 51mendicantos (Editora Éblis). Haverá debate e leitura de poesia
do autor e dos poetas Ronald Augusto e Ronaldo Machado.
Data: 25/10, quinta-feira
Hora: 19h00
Local: Biblioteca Alceu Amoroso Lima
Rua Henrique Schaumann, 777
São Paulo, SP
•o•
Alberto da Cunha Melo
(1942-2007)
Faleceu
em Recife, no último sábado, 13/10, o poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo
(foto), destacado no
boletim n. 195, de 7/2/2007. Ele não resistiu a uma infecção pulmonar, após
um transplante de fígado. O poesia.net expressa nosso respeito à obra do
poeta e profundo pesar pelo seu passamento.
•o•
OBSERVAÇÃO
Se você leu a primeira versão deste boletim, vai notar que a disposição dos
poemas aqui está diferente. Inicialmente, o texto tentava seguir o que está no
livro Trigal com Corvos. O autor, no entanto, solicitou a mudança. Ele
considera que, no formato ao lado, os versos se tornam mais fáceis de ler. |
Trigal com corvos
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W. J. Solha |
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[Excerto 1]
Mas
pense nessas fotos em que não se sabe se é o caso
de aurora ou de ocaso.
Pense em diamantes entre pedras de gelo.
Pense em Herodes perdendo a cabeça por Salomé e lhe concedendo a de Batista.
Pense em homens-rãs usando seus pés-de-pato.
Pense em pássaros assombrando-se com os espantalhos mais tolos
e cobrindo as estátuas mais ferozes de cocô.
Pense no fato de que o Este demais é Oeste
de que toda subida é descida
toda entrada
saída
e de que quanto mais você se orienta
mais pode se desnortear
ou de que quanto mais se norteia
mais pode se desorientar.
[Excerto 2]
Aqui
acolá temos a impressão de que — ao meter-se a chave certa e dura na vagina da
fechadura — a porta hermética vai finalmente abrir-se
mas há — ainda — tricas e truques
trincos e trancas
e o segredo.
Talvez este:
Como
no cinema
você só não consegue não ver o movimento que não existe na
tela
nele
vejo a melhor imagem do Tempo
centralizada no projetor.
Naquele aparelho vemos o passado se acumulando de um lado — no que o
presente é projetado — e o futuro (praticamente pronto) desenrolando-se do
outro.
Donde concluímos que
completo
o filme precisa de nós
para que seu presente
eterno
se sujeite ao móvel momento físsil
que torne — embora isso seja difícil — todo o mistério em vida revelando-nos
a que veio.
O Trigal com Corvos, de Vincent Van Gogh, quadro que inspirou o título
do poema de W. J. Solha
[Excerto 3]
Nada
se move na casa.
Nem no quarto minguante
nem no quarto crescente
no corredor da morte
nem no saloon.
Nada se move
além dos peixes vermelhos entre parênteses no aquário.
Mas a nota magrinha faz plim!
a nota oblonga faz blom!
abrem-se as janelas!
Com um tiro azul
dois amarelos
e um último — laranja — dados pelo canhão que defende a cidade
o jardim se torna lilás e os copos-de-leite mais alvos.
O povo se junta à beira do lago
lá fora
para me prestar homenagens pelos poemas que fiz. Primeiro
de barba verde e sem faca
o marchante me oferece um bezerro
visível dentro da vaca.
Cheias de pólens
corolas
pistilos (com escaravelhos verdes — ou azuis
conforme as curvas
que fazem
na luz)
mulheres me oferecem laranjas
sem destacá-las dos talos dos laranjais!
Marx
— deixando de lado a pose de bruto — desce do pedestal e me dedica um
charuto.
Como clímax de um jogo
estala os dedos de pedra e me oferece
o fogo.
O céu então fica lívido e a Terra
outro planeta!
|
Capa do livro
Trigal com Corvos:
o autor, também
pintor, projeta
seu auto-retrato
sobre o quadro
de Van Gogh |
[Excerto 4]
É
claro que não existe
nesse cobra-engolindo-cobra do ecossistema
nem na "fúria dos elementos"
que estropia tudo que tem pela frente à vontade
nada
que se possa chamar de "bondade".
Porra
Hiroshima & Nagasaki piores que Sodoma & Gomorra?
E que dizer da morte
esse romper-se moer-se rasgar-se roer-se solver-se
queimar-se
muitas vezes num brusco pavor
entre asfixias e
mutilações
torturas
numa infinidade de variações
como gangrenas
lepras
putrefações
deformações terríveis
tudo marcado por insuportável dor?
O que existe é um frio programa que usa sofrimentos como esporas que
estuguem nosso esforço pela Evolução
e onde o que importa é o superorganismo chamado Homem
não cada uma das milhões ou bilhões de células ambulantes que somos dele
salvaguardada entre nós a preservação de uma média permanentemente ativa
sempre renovada que garanta a marcha ao ponto para onde convergem ou de onde
partem todas as nossas perspectivas
daí que a esse Deus não importa que os alemães matem vinte e cinco milhões de
russos na Segunda Grande Guerra
ou que a peste negra devaste mais outro tanto de europeus no século XIV
porque
se isso não interrompe o serviço da Evolução
por que não?
Aos
pregadores sempre interessou a imagem de um Deus manipulável
evidentemente por eles
para se autoproclamarem detentores da Palavra
razão pela qual atribuíram à Sabedoria Divina mandamentos da própria lavra
recomendando-nos — por exemplo — que sigamos o exemplo das aves do céu
que não semeiam
nem segam
nem juntam em celeiros
sem atinar que os pássaros caçam
pescam
fazem ninhos
o que me leva ao fato de que foram atribuídos a Deus
também comandos que não podem ser obedecidos pelo ser humano
como o de amar a isto
àquilo
e àquilo outro
ou não haveria tragédias como as de Romeu e do mouro.
[Excerto 5]
Claro
que não creio em Deus
mas claro — também — que já me flagrei — como todo mundo — perguntando-me —
por exemplo — onde foi que dona ornitorrinco aprendeu a fazer aquela
geringonça
que é o filho dela
e com isso não brinco.
Caramba: minha simples ereção me remete — sempre — ao seio do mistério como
me remetem Quéops
Nazca
Stonehenge.
... ou qualquer cemitério.
Sei que — como Iago e ao contrário de Jeová — I am not what I am!
Tanto
que se houvesse realmente acontecido algum momento
na História
em que alguém tivesse encravado uma coroa de espinhos em Deus
e lhe tivesse metido umas porradas na cabeça
cuspido na cara dele
despejando-lhe uma carrada de desaforos
mereceria de mim o perdão
pois o que o homem sofre neste mundo
criado por tal personagem criado
por nós
... é de um sadismo que chega a ser... torpe.
W. J. Solha, A Mão Esquerda de
Mamãe
(2005)
[Excerto 6]
Porque eu quis leveza e beleza de balões
com peso de balas de canhões
usei cada palavra como o pintor usa o encanto quase pronto da cor.
Sem
qualquer tema prévio em que pudesse utilizá-las
garimpei-as no que me estimulava com fotos
confiando que o inconsciente
partindo do nada
e como se de propósito fosse
fizesse como que fios de açúcar... pro algodão-doce.
Assim
dava com a imagem de uma grande moto com a metálica musculatura à mostra
e espremia o cérebro até dele extrair algo como "a grande moto com a
metálica musculatura à mostra".
Da corrente ajoelhando-se nos elos no que se derramava numa chapa de aço
consegui alguma coisa tipo "a corrente ajoelhando-se nos elos no que se
derramava numa chapa de aço. "
Cada verso fértil geralmente me custava uma travessia no deserto
mas foi nesse afã que
ao fim de meses
depois de milhares de frases acumuladas
procurei vinculá-las entre si
e montei o texto
como Godfrey Reggio e Dziga Vertov
montaram "Koyaanisqatsi" e "O Homem
com a Câmera" até a overdose.
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