Donizete Galvão
Caros,
Daqui a menos de um mês — ou três edições além desta —, este boletim completa
cinco anos. Talvez motivado pela duração já relativamente longa deste semanário,
entrei numa fase de revisitação de autores publicados nos primeiros números.
Desta vez volto ao poeta mineiro Donizete Galvão (Borda da Mata, 1955-),
publicado no
poesia.net n. 19, de 14/05/2003.
Nesta edição, vamos incluir poemas das duas coletâneas mais recentes de Donizete
Galvão: Mundo Mudo, de 2003 — lançado após aquele primeiro boletim —, e
Ruminações, de 1999. No total, o poeta já reúne uma obra de seis
livros-solo, mais um livro de parceria com o poeta Ronald Polito, além de vasta
participação em antologias e jornais especializados, aqui e no exterior.
Não pretendo acrescentar nada ao que já disse no primeiro boletim sobre a poesia
de Donizete Galvão. Creio que, em linhas gerais, o que está lá continua válido.
Aqueles mesmos traços podem ser rastreados nos poemas ao lado. Um deles é a
profunda conexão do poeta com sua Minas natal. Esse sentimento mineiro se
manifesta tanto em poemas em que o autor discorre sobre suas origens
interioranas (é o caso de "Ruminações", que dá nome ao livro — não transcrito
aqui) como nos textos em que assume como tema pessoas e coisas do ambiente
rural.
Outra vertente da poesia de Donizete Galvão (aliás, é como se fosse o anverso da
primeira) é a expressão de uma certa inconformidade com a vida nas metrópoles.
Mas o que se percebe aí não é a simples saudade de um lugar ou de um modo de
vida. É carência de algo mais complexo. Ao proclamar seu desajuste e
descontentamento com a cidade, o poeta obviamente não propõe uma volta a um
suposto lugar idílico no interior. O que entra em jogo é, na verdade, uma utopia
pessoal, que não busca nem a cidade nem o campo, mas a afirmação prática de
outra ética, diferente desse rasteiro toma-la-dá-cá que governa nosso dia-a-dia.
Na abertura de seu ensaio "A matéria impura da poesia", a professora da USP
Ivone Daré Rabello diz o seguinte: "A matriz lírica de Donizete Galvão situa-se
entre as escarpas do cenário da infância, na Borda da Mata, o flagelo daquele
que se sente exilado na metrópole e as farpas das palavras que insistem em
arranhar a superfície do papel para fixarem o desejo de polimento".
Referências à vida pessoal do poeta estão presentes em poemas como "Os Nomes",
de Mundo Mudo, e "Escoiceados", que abre o volume Ruminações. Não
por acaso, os dois textos são recordações que põem em primeiro plano o pai do
escritor. "Os Nomes" dá conta de um sentimento de perda irreparável com a morte
do pai. É como se o filho quisesse voltar no tempo e reinventar a vida para
talvez desfrutar melhor alguns momentos do passado. Mas, como diz o poema, essas
coisas só se descobrem quando já é tarde.
"Escoiceados" é um poema antológico. Com aguda consciência social, o poeta
ironiza a si mesmo, ao pai e a todos que, dispondo apenas de um burro barato,
sistemático e ronceiro (Ligeiro apenas no nome), sonham em galopar ao vento num
garboso alazão. Ora, quem não sonha? Mas diante da queda, vem a dura realidade:
"Meu pai e eu. / Os dois / nunca subimos / na vida". O texto soa como uma
ilustração cruel e bem-humorada do velho dito popular: "além de queda, coice".
Os poemas "O Grito" e "Mapa" são outras composições de Donizete Galvão
associadas ao interior mineiro. O primeiro rememora uma cena de quintal, que é a
matança do porco. Ivone Daré Rabello vê em "O Grito" uma revisitação ao poema
"Vermelho", que está no livro Lição de Coisas, de Carlos Drummond de
Andrade. No texto drummondiano, o animal sacrificado é um frango. Para qualquer
criança, é um espetáculo marcante, destinado a permanecer na memória. "Mapa"
representa uma peça lírica em que o poeta se serve de objetos que assinalam a
existência no interior para definir sua "trilha de erros" e os "mapas de dor e
descontentamento".
Vamos citar agora poemas que representam o outro lado da moeda — a cidade. O
primeiro deles é "Deformação". Em tom ao mesmo tempo terno e raivoso, o poeta
dirige palavras ásperas à pomba atropelada no trânsito da metrópole. É cruel
porque ele escreve como quem culpa a ave pelo seu trágico fim: "Viu o que a
cidade lhe fez?" Como se a pobre pomba tivesse "traído" sua origem silvestre
para viver na cidade. Mas o último verso desarma a leitura inicial: "Viu o que a
cidade nos fez?"
O poema "Fora de Linha" retoma o registro da pomba estraçalhada. Só que agora os
animais destruídos, também milhares de vezes, são "os homens obsoletos". Os
desempregados, aqueles cujo perfil não se encaixa nos ditames das empresas e
suas modas cruéis, batizadas com nomes neutros como reengenharia e downsizing,
mas que significam somente uma coisa: sucessivos cortes de pessoal. Os homens
obsoletos são o exército dos sem cartão de crédito, senha de acesso ou crachá.
Os de baixa auto-estima.
Fora do cara-e-coroa campo e cidade,
transcrevo ao lado dois poemas de Mundo Mudo: "O Sacrifício" e "Oração
Natural". Naquele, o poeta parece fazer referência à execução de Tiradentes ou
outro condenado ao patíbulo. Ao ler esse poema, ouço mentalmente um grave rufar
de tambores e outros ruídos tétricos sugeridos pelo texto: "Ouve o barulho das
chaves / Ouve o barulho das portas". No final, a dispersão dos versos para a
direita lembra o movimento pendular do enforcado.
Por fim, "Oração Natural" é
outro produto da sensibilidade do poeta, que
descobre na observação de pequenas ações ou acontecimentos uma singela forma de
oração.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
LANÇAMENTOS
Vem aí mais uma semana movimentada. Quatro poetas lançam livros em São Paulo.
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Maurício Duarte dos
Santos
- Rumor Nenhum
O poeta Maurício dos Santos lança Rumor Nenhum, seu livro de estréia, que
sai pela Editora 7Letras.
Data: 26/11, segunda-feira
Hora: A partir das 19h00
Local: Bar Balcão
Rua Dr. Melo Alves, 150
Cerqueira César
São Paulo – SP
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Fabiano Calixto
- Sangüínea
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Fabio Weintraub
- Baque
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Ruy Proença
- Visão do Térreo
Três poetas já conhecidos do leitor de poesia.net lançam seus novos
livros na próxima terça-feira:
Fabiano Calixto (Sanguínea),
Fabio Weintraub (Baque) e
Ruy Proença (Visão do Térreo). Todos os volumes são publicados pela
Editora 34.
Data: 27/11, terça-feira
Hora: Das 18h30 às 22h30
Local: Livraria Martins Fontes
Av. Paulista, 509 – loja 17
(próximo à Estação Brigadeiro do metrô)
São Paulo – SP
Veja também sobre Donizete Galvão os boletins:
- poesia.net
19
- poesia.net
302
- poesia.net
302-A |
Os homens obsoletos
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Donizete Galvão |
|
OS NOMES
Quisera, agora,
repartir com você
todos os trabalhos
e os dias.
Sei — e como dói
só o saber nesta hora —
os nomes que me confundiam
quando a cabeça
estava mergulhada em livros.
O alicate
A torquês
A chave de fenda
A lima
A máquina
para esticar
arame farpado
Quisera retirar do paiol
todas as ferramentas.
O alfanje
A enxada
A foice
A cavadeira
O enxadão
O serrote
O cepilho
Quisera ser de novo
o filho que engraxaria
os seus sapatos
e os deixaria
na escada do alpendre
sob o sol da manhã.
Escovados,
lustrosos
para a missa de domingo.
O SACRIFÍCIO
Ouve o barulho das chaves.
Ouve o barulho das portas.
Ouve o sapateado
dos emissários da escuridão.
Cento e sete passos
e um baque.
Cento e sete passos
e o silêncio.
Cento e sete passos
e seus pés
pensos
sobre o vazio.
ORAÇÃO NATURAL
Fique atento
ao ritmo,
aos movimentos
do peixe no anzol.
Fique atento
às falas
das pessoas
que só dizem
o necessário.
Fique atento
aos sulcos
de sal
de sua face.
Fique atento
aos frutos tardios
que pendem
da memória.
Fique atento
às raízes
que se trançam
em seu coração.
A atenção:
forma natural
de oração.
DEFORMAÇÃO
eh pomba suja
urubuzinha de metrópole
ratazana
ávida por dejetos
bebedora de água preta
aí está você:
uma chapa
uma pasta
de pena e sangue
milhares de vezes
vai-se repetir sua morte
sob os pneus
eh pomba lerda
viu o que a cidade lhe fez?
Bem feito para você.
Viu o que a cidade nos fez?
De Mundo Mudo (2003)
ESCOICEADOS
Meu pai e eu
nunca subimos
num alazão
que galopasse
ao vento.
Tínhamos
um burro
cinza malhado:
o Ligeiro.
Foi apanhado
de um conhecido
por ninharia.
Chegou com fama
de sistemático,
cheio de refugos.
De trote tão curto
que dava dor
nas costelas.
De certa vez,
caímos do burro.
Meu pai e eu.
Eu e meu pai.
Embolados.
Joelhos esfolados
no pedregulho.
Levamos
bons coices.
Meu pai e eu.
Os dois
nunca subimos
na vida.
O GRITO
O porco guincha
e sob a pata dianteira
sai a golfada de sangue
que enche a bacia.
Horas depois,
pronto o chouriço,
comemos o sangue preto,
as tripas, o grito.
MAPA
ama o inominado
o perecível
o particular
a coleção de cacos de louça
os arreios e os antolhos das mulas
a caixa de ferramentas do avô
o cavalo baio com o olho cego
a luz do sol sobre as encostas
a dureza das macaúbas
nomeia as coisas que pedem
o nascimento pela palavra
escrita que se transforma
em outra escrita
geografia de migalhas
dicionário pessoal de falas
ditas na labuta concreta
sem reconstituir um mundo
cuida de um retalho:
o fragmento pelo todo
senhor de restolhos e rebotalhos
inventário de perdas
rol de inutilidades
vasos vazios e quebrados
sem esperança sem consolo,
com a paciência de um boi
segue tua trilha de erros:
rastro de palavras
marcas da passagem
serpentear de frases
mapas de dor e descontentamento.
FORA DE LINHA
para Antônio Nóbrega
Os homens obsoletos foram dispensados
como candidatos a recrutas, por excesso de contingente.
Os homens obsoletos vagam qual zumbis
em praças, parques e estações de metrô.
Os homens obsoletos alimentam-se de jornais
e engordam nos sofás diante da televisão.
Os homens obsoletos cumpriram as exigências:
faculdade, inglês e cursos de pós-graduação.
Os homens obsoletos mantiveram-se jovens
com dietas, ginástica e oficinas de auto-estima.
Os homens obsoletos tiveram bloqueados
seus crachás, suas senhas e cartões de crédito.
Os pais não querem os homens obsoletos.
— Ah, quanto dinheiro investido em sua educação!
Os amantes não querem amar os homens obsoletos
porque estes têm a pele com gosto de ferrugem.
O mercado não absorve os homens obsoletos,
pois não existe demanda para a exportação.
Não há como reciclá-los para que se encaixem
nos mutáveis programas de reengenharia.
Terapeutas recomendam aos homens obsoletos
que ocupem o tempo ocioso nos museus e galerias,
nas paróquias ou mesmo em clubes de filatelia.
Os homens obsoletos caíram em desuso
como os chapéus, as galochas e o jogo de bilboquê.
De Ruminações (1999)
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