Número 237 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 29 de novembro de 2007 

«Não sei por onde vou, / Não sei para onde vou / — Sei que não vou por aí!» (José Régio) *
 


Sylvia Plath


Caros,

Neste boletim, vamos dar continuidade à temporada de revisitações a poetas já  destacados antes. Desta vez retornamos ao trabalho da poeta americana Sylvia Plath (1932-1963), que apareceu na edição 81 do poesia.net, de 11/8/2004.

O bis a essa autora se deve
— além da óbvia importância de sua poesia — à publicação, em 2004, do livro Ariel: The Restored Edition, prefaciado por Frieda Hughes, filha de Sylvia Plath. Ariel é um volume póstumo, dado a público originalmente em 1965 pelo poeta inglês Ted Hughes (1930-1998), viúvo de Sylvia e pai de Frieda.

Nessa edição, Hughes alterou o conteúdo do livro, concluído por Sylvia poucos meses antes de cometer suicídio, com apenas 30 anos. Sob o argumento de que pretendia defender a memória da mãe de seus filhos (Frieda tem um irmão mais novo, Nick), respeitar pessoas vivas e preservar sua própria reputação, Hughes subtraiu e adicionou poemas ao volume. Além disso, ele também eliminou poemas por considerá-los fracos.

Somente 41 anos após a morte trágica de Sylvia
e também com Hughes já desaparecido é que veio à luz a "edição restaurada", trazida por Frieda Hughes. Trata-se, portanto, do Ariel tal como a autora o concebeu. Há cerca de um mês, a Verus Editora, de Campinas (SP), publicou uma versão brasileira da obra, traduzida por Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo.

Bilíngüe, essa edição traz a reprodução fac-similar das páginas datilografadas e muitas vezes corrigidas à mão pela autora. Garcia Lopes dedica-se à tradução de Sylvia Plath há bastante tempo. Também é dele (em parceria com Maurício Arruda Mendonça) o livro Poemas (Ed. Iluminuras, 1994), que serviu de base para o primeiro boletim com a poeta americana.

Como se sabe, Hughes e Sylvia haviam se separado e ele mantinha um caso com outra mulher. Feministas e admiradores de Sylvia consideravam o marido responsável pela sua morte. Acusavam-no de tê-la abandonado num momento em que ela se encontrava emocionalmente instável. Esse mesmo viés é abraçado pelo filme Sylvia, de 2003, dirigido por Christine Jeffs, com Gwyneth Paltrow e Daniel Craig nos papéis da personagem-título e do marido.

No prefácio do Ariel restaurado, Frieda Hughes, também poeta, explica em detalhes os motivos do pai. Defende-o, falando sobre a profunda angústia da mãe, seu "temperamento feroz e caráter ciumento" e sobre as calúnias que se abateram sobre o pai. "A crítica a meu pai foi feita até mesmo em relação à posse dos direitos autorais de minha mãe, que couberam a ele na morte dela e que ele usou para beneficiar diretamente a mim e a meu irmão", relata ela.

O que parece não deixar espaço para dúvida é a "grande confusão emocional" (palavras de Frieda) vivida por Sylvia Plath nos meses que antecederam seu suicídio. Poesia e tragédia deram a ela, post mortem, uma popularidade inusitada. Aparentemente, em "Lady Lazarus", a poeta diz que, aos 30 anos, tem nove vidas, como um gato. "Esta é Número Três". Naquele momento, 1962, ela já havia feito três tentativas de suicídio. "Um ano em cada dez / Eu dou um jeito", escreve, com um toque de humor angustiado.

Para este boletim, selecionei dois poemas. "Ariel" e "Lady Lazarus". Esses dois textos são exemplos do talento de Sylvia Plath, que combina um ritmo forte com imagens inusitadas. "Orvalho que voa / Suicida, e de uma vez avança / Contra o olho / Vermelho, caldeirão da manhã", escreve ela, no final de "Ariel".

Melhor do que ler os poemas é ouvi-los na própria voz da autora. Sylvia Plath deixou gravados vários de seus textos, entre os quais os dois transcritos ao lado. Clique no quadro abaixo para escutá-los. Um detalhe: é possível notar algumas diferenças entre o poema que afinal saiu em livro e a versão que a poeta tinha em mãos no momento da gravação. "Lady Lazarus", por exemplo, tem uma estrofe a mais na gravação.

 


 OUÇA A VOZ DA POETA

Ariel

Lady Lazarus
               (RealPlayer)

 



Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



                      •o•



 

Lady Lazarus

Sylvia Plath

 



ARIEL

Estase no escuro.
E um fluir azul sem substância
De rochedos e distâncias.

Leoa de Deus,
Como nos unimos,
Eixo de calcanhares e joelhos! — O sulco

Divide e passa, irmão do
Arco castanho
Do pescoço que não posso pegar,

Olhinegras
Bagas lançam escuros
Ganchos —

Goles de sangue negro e doce,
Sombras.
Algo mais

Me arrasta pelos ares —
Coxas, pêlos;
Escamas de meus calcanhares.

Godiva
Branca, me descasco —
Mãos mortas, asperezas mortas.

E agora
Espumo com o trigo, um brilho de mares.
O choro da criança

Dissolve-se no muro.
E eu
Sou a flecha,

Orvalho que voa
Suicida, e de uma vez avança
Contra o olho

Vermelho, caldeirão da manhã.



Cena de Sylvia (2003), o filme, com Gwyneth Paltrow no papel-título


ARIEL

Stasis in darkness.
Then the substanceless blue
Pour of tor and distances.

God's lioness,
How one we grow,
Pivot of heels and knees! — The furrow

Splits and passes, sister to
The brown arc
Of the neck I cannot catch,

Nigger-eye
Berries cast dark
Hooks —

Black sweet blood mouthfuls,
Shadows.
Something else

Hauls me through air —
Thighs, hair;
Flakes from my heels.

White
Godiva, I unpeel —
Dead hands, dead stringencies.

And now I
Foam to wheat, a glitter of seas.
The child's cry

Melts in the wall.
And I
Am the arrow,

The dew that flies
Suicidal, at one with the drive
Into the red

Eye, the cauldron of morning.



LADY LAZARUS

Tentei outra vez.
Um ano em cada dez
Eu dou um jeito —

Um tipo de milagre ambulante, minha pele
Brilha feito abajur nazista,
Meu pé direito

Peso de papel,
Meu rosto inexpressivo, fino
Linho judeu.

Dispa o pano
Oh, meu inimigo.
Eu te aterrorizo? —

O nariz, as covas dos olhos, a dentadura toda?
O hálito amargo
Desaparece num dia.

Em muito breve a carne
Que a caverna carcomeu vai estar
Em casa, em mim.

E eu uma mulher sempre sorrindo.
Tenho apenas trinta anos.
E como o gato, nove vidas para morrer.

Esta é a Número Três.
Que besteira
Aniquilar-se a cada década.

Um milhão de filamentos.
A multidão, comendo amendoim,
Se aglomera para ver

Desenfaixarem minhas mãos e pés —
O grande striptease.
Senhoras e senhores,

Eis minhas mãos
Meus joelhos.
Posso ser só pele e osso,

No entanto sou a mesma, idêntica mulher.
Tinha dez anos na primeira vez.
Foi acidente.

Na segunda quis
Ir até o fim e nunca mais voltar.
Oscilei, fechada

Como uma concha do mar.
Tiveram que chamar e chamar
E tirar os vermes de mim como pérolas grudentas.

Morrer
É uma arte, como tudo o mais.
Nisso sou excepcional.

Desse jeito faço parecer infernal.
Desse jeito faço parecer real.
Vão dizer que tenho vocação.

E muito fácil fazer isso numa cela.
É muito fácil fazer isso e ficar nela.
É o teatral

Regresso em plena luz do sol
Ao mesmo local, ao mesmo rosto, ao mesmo grito
Aflito e brutal:

"Milagre!"
Que me deixa mal.
Há um preço

Para olhar minhas cicatrizes, há um preço
Para ouvir meu coração —
Ele bate, afinal.

E há um preço, um preço muito alto
Para cada palavra ou cada toque
Ou mancha de sangue

Ou um pedaço de meu cabelo ou de minhas roupas.
E aí, Herr Doktor.
E aí, Herr Inimigo.

Sou sua obra-prima,
Sou seu tesouro,
O bebê de ouro puro

Que se funde num grito.
Me viro e carbonizo.
Não pense que subestimo sua grande preocupação.

Cinza, cinza —
Você fuça e atiça.
Carne, osso, não há mais nada ali —

Barra de sabão,
Anel de casamento,
Obturação de ouro.

Herr Deus, Herr Lúcifer
Cuidado.
Cuidado.

Saída das cinzas
Me levanto com meu cabelo ruivo
E devoro homens como ar.




Outra cena de Sylvia: Daniel Craig representa Ted Hughes



LADY LAZARUS

I have done it again.
One year in every ten
I manage it —

A sort of walking miracle, my skin
Bright as a Nazi lampshade,
My right foot

A paperweight,
My featureless, fine
Jew linen.

Peel off the napkin
O my enemy.
Do I terrify? —

The nose, the eye pits, the full set of teeth?
The sour breath
Will vanish in a day.

Soon, soon the flesh
The grave cave ate will be
At home on me

And I a smiling woman.
I am only thirty.
And like the cat I have nine times to die.

This is Number Three.
What a trash
To annihilate each decade.

What a million filaments.
The Peanut-crunching crowd
Shoves in to see

Them unwrap me hand and foot —
The big strip tease.
Gentleman , ladies

These are my hands
My knees.
I may be skin and bone,

Nevertheless, I am the same, identical woman.
The first time it happened I was ten.
It was an accident.

The second time I meant
To last it out and not come back at all.
I rocked shut

As a seashell.
They had to call and call
And pick the worms off me like sticky pearls.

Dying
Is an art, like everything else.
I do it exceptionally well.

I do it so it feels like hell.
I do it so it feels real.
I guess you could say I've a call.

It's easy enough to do it in a cell.
It's easy enough to do it and stay put.
It's the theatrical

Comeback in broad day
To the same place, the same face, the same brute
Amused shout:

"A miracle!"
That knocks me out.
There is a charge

For the eyeing my scars, there is a charge
For the hearing of my heart —
It really goes.

And there is a charge, a very large charge
For a word or a touch
Or a bit of blood

Or a piece of my hair on my clothes.
So, so, Herr Doktor.
So, Herr Enemy.

I am your opus,
I am your valuable,
The pure gold baby

That melts to a shriek.
I turn and burn.
Do not think I underestimate your great concern.

Ash, ash —
You poke and stir.
Flesh, bone, there is nothing there —

A cake of soap,
A wedding ring,
A gold filling.

Herr God, Herr Lucifer
Beware
Beware.

Out of the ash
I rise with my red hair
And I eat men like air.

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

Sylvia Plath
•  Ariel
    Edição restaurada e bilíngüe, com os manuscritos originais
    Tradução de Rodrigo Garcia Lopes e
    Maria Cristina Lenz de Macedo
    Verus Editora, Campinas-SP, 2007
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* José Régio (1901-1969), "Cântico Negro"