Sylvia Plath
Caros,
Neste boletim, vamos dar continuidade à temporada de revisitações a poetas já
destacados antes. Desta vez retornamos ao trabalho da poeta americana Sylvia
Plath (1932-1963), que apareceu na
edição 81 do poesia.net, de 11/8/2004.
O bis a essa autora se deve
— além da óbvia importância de sua poesia —
à publicação, em 2004, do livro Ariel: The Restored Edition, prefaciado
por Frieda Hughes, filha de Sylvia Plath. Ariel é um volume póstumo, dado
a público originalmente em 1965 pelo poeta inglês Ted Hughes (1930-1998), viúvo
de Sylvia e pai de Frieda.
Nessa edição, Hughes alterou o conteúdo do livro, concluído por Sylvia poucos
meses antes de cometer suicídio, com apenas 30 anos. Sob o argumento de que
pretendia defender a memória da mãe de seus filhos (Frieda tem um irmão mais
novo, Nick), respeitar pessoas vivas e preservar sua própria reputação, Hughes
subtraiu e adicionou poemas ao volume. Além disso, ele também eliminou poemas
por considerá-los fracos.
Somente 41 anos após a morte trágica de Sylvia
—
e também com Hughes já desaparecido
—
é que veio à luz a "edição restaurada", trazida por Frieda Hughes. Trata-se,
portanto, do Ariel tal como a autora o concebeu. Há cerca de um mês, a
Verus Editora, de Campinas (SP), publicou uma versão brasileira da obra,
traduzida por Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo.
Bilíngüe, essa edição traz a reprodução fac-similar das páginas datilografadas e
muitas vezes corrigidas à mão pela autora. Garcia Lopes dedica-se à tradução de
Sylvia Plath há bastante tempo. Também é dele (em parceria com Maurício Arruda
Mendonça) o livro Poemas (Ed. Iluminuras, 1994), que serviu de base para
o primeiro boletim com a poeta americana.
Como se sabe, Hughes e Sylvia haviam se separado e ele mantinha um caso com
outra mulher. Feministas e admiradores de Sylvia consideravam o marido
responsável pela sua morte. Acusavam-no de tê-la abandonado num momento em que
ela se encontrava emocionalmente instável. Esse mesmo viés é abraçado pelo filme
Sylvia, de 2003, dirigido por Christine Jeffs, com Gwyneth Paltrow e
Daniel Craig nos papéis da personagem-título e do marido.
No prefácio do Ariel restaurado, Frieda Hughes, também poeta, explica em
detalhes os motivos do pai. Defende-o, falando sobre a profunda angústia da mãe,
seu "temperamento feroz e caráter ciumento" e sobre as calúnias que se abateram
sobre o pai. "A crítica a meu pai foi feita até mesmo em relação à posse dos
direitos autorais de minha mãe, que couberam a ele na morte dela e que ele usou
para beneficiar diretamente a mim e a meu irmão", relata ela.
O que parece não deixar espaço para dúvida é a "grande confusão emocional"
(palavras de Frieda) vivida por Sylvia Plath nos meses que antecederam seu
suicídio. Poesia e tragédia deram a ela, post mortem, uma popularidade
inusitada. Aparentemente, em "Lady Lazarus", a poeta diz que, aos 30 anos, tem
nove vidas, como um gato. "Esta é Número Três". Naquele momento, 1962, ela já
havia feito três tentativas de suicídio. "Um ano em cada dez / Eu dou um jeito",
escreve, com um toque de humor angustiado.
Para este boletim, selecionei dois poemas. "Ariel" e "Lady Lazarus". Esses dois
textos são exemplos do talento de Sylvia Plath, que combina um ritmo forte com
imagens inusitadas. "Orvalho que voa / Suicida, e de uma vez avança / Contra o
olho / Vermelho, caldeirão da manhã", escreve ela, no final de "Ariel".
Melhor do que ler os poemas é ouvi-los na própria voz da autora. Sylvia Plath
deixou gravados vários de seus textos, entre os quais os dois transcritos ao
lado. Clique no quadro abaixo para escutá-los. Um detalhe: é possível notar
algumas diferenças entre o poema que afinal saiu em livro e a versão que a poeta
tinha em mãos no momento da gravação. "Lady Lazarus", por exemplo, tem uma
estrofe a mais na gravação.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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Lady Lazarus
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Sylvia Plath |
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ARIEL
Estase no escuro.
E um fluir azul sem substância
De rochedos e distâncias.
Leoa de Deus,
Como nos unimos,
Eixo de calcanhares e joelhos! — O sulco
Divide e passa, irmão do
Arco castanho
Do pescoço que não posso pegar,
Olhinegras
Bagas lançam escuros
Ganchos —
Goles de sangue negro e doce,
Sombras.
Algo mais
Me arrasta pelos ares —
Coxas, pêlos;
Escamas de meus calcanhares.
Godiva
Branca, me descasco —
Mãos mortas, asperezas mortas.
E agora
Espumo com o trigo, um brilho de mares.
O choro da criança
Dissolve-se no muro.
E eu
Sou a flecha,
Orvalho que voa
Suicida, e de uma vez avança
Contra o olho
Vermelho, caldeirão da manhã.
Cena de Sylvia (2003), o filme,
com Gwyneth Paltrow no papel-título
ARIEL
Stasis in darkness.
Then the substanceless blue
Pour of tor and distances.
God's lioness,
How one we grow,
Pivot of heels and knees! — The furrow
Splits and passes, sister to
The brown arc
Of the neck I cannot catch,
Nigger-eye
Berries cast dark
Hooks —
Black sweet blood mouthfuls,
Shadows.
Something else
Hauls me through air —
Thighs, hair;
Flakes from my heels.
White
Godiva, I unpeel —
Dead hands, dead stringencies.
And now I
Foam to wheat, a glitter of seas.
The child's cry
Melts in the wall.
And I
Am the arrow,
The dew that flies
Suicidal, at one with the drive
Into the red
Eye, the cauldron of morning.
LADY LAZARUS
Tentei outra vez.
Um ano em cada dez
Eu dou um jeito —
Um tipo de milagre ambulante, minha pele
Brilha feito abajur nazista,
Meu pé direito
Peso de papel,
Meu rosto inexpressivo, fino
Linho judeu.
Dispa o pano
Oh, meu inimigo.
Eu te aterrorizo? —
O nariz, as covas dos olhos, a dentadura toda?
O hálito amargo
Desaparece num dia.
Em muito breve a carne
Que a caverna carcomeu vai estar
Em casa, em mim.
E eu uma mulher sempre sorrindo.
Tenho apenas trinta anos.
E como o gato, nove vidas para morrer.
Esta é a Número Três.
Que besteira
Aniquilar-se a cada década.
Um milhão de filamentos.
A multidão, comendo amendoim,
Se aglomera para ver
Desenfaixarem minhas mãos e pés —
O grande striptease.
Senhoras e senhores,
Eis minhas mãos
Meus joelhos.
Posso ser só pele e osso,
No entanto sou a mesma, idêntica mulher.
Tinha dez anos na primeira vez.
Foi acidente.
Na segunda quis
Ir até o fim e nunca mais voltar.
Oscilei, fechada
Como uma concha do mar.
Tiveram que chamar e chamar
E tirar os vermes de mim como pérolas grudentas.
Morrer
É uma arte, como tudo o mais.
Nisso sou excepcional.
Desse jeito faço parecer infernal.
Desse jeito faço parecer real.
Vão dizer que tenho vocação.
E muito fácil fazer isso numa cela.
É muito fácil fazer isso e ficar nela.
É o teatral
Regresso em plena luz do sol
Ao mesmo local, ao mesmo rosto, ao mesmo grito
Aflito e brutal:
"Milagre!"
Que me deixa mal.
Há um preço
Para olhar minhas cicatrizes, há um preço
Para ouvir meu coração —
Ele bate, afinal.
E há um preço, um preço muito alto
Para cada palavra ou cada toque
Ou mancha de sangue
Ou um pedaço de meu cabelo ou de minhas roupas.
E aí, Herr Doktor.
E aí, Herr Inimigo.
Sou sua obra-prima,
Sou seu tesouro,
O bebê de ouro puro
Que se funde num grito.
Me viro e carbonizo.
Não pense que subestimo sua grande preocupação.
Cinza, cinza —
Você fuça e atiça.
Carne, osso, não há mais nada ali —
Barra de sabão,
Anel de casamento,
Obturação de ouro.
Herr Deus, Herr Lúcifer
Cuidado.
Cuidado.
Saída das cinzas
Me levanto com meu cabelo ruivo
E devoro homens como ar.
Outra cena de Sylvia: Daniel Craig representa Ted Hughes
LADY LAZARUS
I have done it again.
One year in every ten
I manage it —
A sort of walking miracle, my skin
Bright as a Nazi lampshade,
My right foot
A paperweight,
My featureless, fine
Jew linen.
Peel off the napkin
O my enemy.
Do I terrify? —
The nose, the eye pits, the full set of teeth?
The sour breath
Will vanish in a day.
Soon, soon the flesh
The grave cave ate will be
At home on me
And I a smiling woman.
I am only thirty.
And like the cat I have nine times to die.
This is Number Three.
What a trash
To annihilate each decade.
What a million filaments.
The Peanut-crunching crowd
Shoves in to see
Them unwrap me hand and foot —
The big strip tease.
Gentleman , ladies
These are my hands
My knees.
I may be skin and bone,
Nevertheless, I am the same, identical woman.
The first time it happened I was ten.
It was an accident.
The second time I meant
To last it out and not come back at all.
I rocked shut
As a seashell.
They had to call and call
And pick the worms off me like sticky pearls.
Dying
Is an art, like everything else.
I do it exceptionally well.
I do it so it feels like hell.
I do it so it feels real.
I guess you could say I've a call.
It's easy enough to do it in a cell.
It's easy enough to do it and stay put.
It's the theatrical
Comeback in broad day
To the same place, the same face, the same brute
Amused shout:
"A miracle!"
That knocks me out.
There is a charge
For the eyeing my scars, there is a charge
For the hearing of my heart —
It really goes.
And there is a charge, a very large charge
For a word or a touch
Or a bit of blood
Or a piece of my hair on my clothes.
So, so, Herr Doktor.
So, Herr Enemy.
I am your opus,
I am your valuable,
The pure gold baby
That melts to a shriek.
I turn and burn.
Do not think I underestimate your great concern.
Ash, ash —
You poke and stir.
Flesh, bone, there is nothing there —
A cake of soap,
A wedding ring,
A gold filling.
Herr God, Herr Lucifer
Beware
Beware.
Out of the ash
I rise with my red hair
And I eat men like air.
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