Dante Milano, aos 50 anos
Caros,
O poesia.net retorna hoje, após o já
tradicional recesso no início do ano. Nesta retomada, vamos revisitar o poeta
carioca Dante Milano (1899-1991), destacado na
edição n. 34 do boletim. Não tenho muito a acrescentar ao que foi dito
daquela vez. Arredio à fama, publicou um único livro —
Poesias —, em 1948, quando já beirava os 50 anos. A bem da verdade, ele
mesmo não o publicou: o volume saiu por instância de amigos, à revelia do poeta.
Os poemas de Dante Milano receberam calorosa acolhida da crítica e a admiração
de escritores como Carlos Drummond de Andrade. Mesmo assim, o poeta é, até hoje,
desconhecido para a maioria dos leitores.
Dante Milano foi também respeitado tradutor de poesia. Verteu para o português
três cantos do Inferno, de Dante, 38 poemas d’As Flores do Mal, de
Baudelaire, e ainda poemas de Mallarmé e Shakespeare.
Toda a coleção de poemas escritos ou traduzidos por ele, mais ensaios e outros
textos em prosa, está em sua Obra Reunida, organizada por Sérgio Martagão
Gesteira e publicada (fora de comércio) pela Academia Brasileira de Letras em
2004. Trata-se de uma edição caprichada, com mais de 500 páginas.
Existe também uma antologia, Dante Milano – Melhores Poemas, com seleção
e apresentação de Ivan Junqueira. Esta saiu em 1998 pela Editora Global. É o
único volume com escritos do poeta disponível nas livrarias.
Na apresentação dos Melhores Poemas, Ivan Junqueira chama a atenção para
a atemporalidade da poesia de Dante Milano. De fato, embora o poeta seja
classificado como autor modernista, seus poemas não têm a marca da poesia
modernista, especialmente aquela dos anos 20. (Vale lembrar que, embora
publicado somente em 1948, o autor já escrevia desde muito antes).
De fato, é difícil identificar a "idade" dos versos de Dante Milano. Quando
teria sido escrita, por exemplo, essa pequena obra-prima que é "Paragem"?
"O boi da minha tristeza, / O boi do meu cansaço, / O boi da minha humilhação".
A poesia de Dante Milano é sempre marcada por uma apreciação melancólica do
espetáculo humano. Com versos de fatura simples — falsamente
simples —, ele constrói momentos de pura contemplação
e perplexidade. É o sentimento em que nos envolvem praticamente todos os poemas
reproduzidos ao lado.
"Chego à amurada do cais, / Tomo um trago de tristeza. / Vem uma aura de beleza
/ Entontecer-me ainda mais". Tente dizer em voz alta esses versos iniciais de "A
Partida". Eu cá, ao fazer isso, não somente ouço o barulho das ondas como sinto
o cheiro do ar impregnado de sal.
Em "Máscara", o poeta contrapõe os vãos disfarces que adotamos e nossa
verdadeira face — "máscara desbotada / de carnavais
passados". Em "Música Surda", entra em cena a passagem do tempo, esse fantasma
de nossa existência: "E da ampulheta milenar do sol / Escorre em poeira a luz de
mais um dia". Versos soberbos.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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Drummond e Milano
"A popularidade nada tem a ver com a poesia. (...) Dante Milano é um poeta de
extraordinária qualidade que não tem a mínina popularidade. Se você perguntar a
um estudante quem é Dante Milano, ele não sabe. Se perguntar quais são os
melhores poetas brasileiros, ele não inclui Dante Milano. A popularidade então
não tem a menor importância".
Carlos Drummond de Andrade, em sua última entrevista (1987).
In O Dossiê Drummond, de Geneton Moraes Neto, Ed. Globo, 1994.
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Dante Milano musical
Especializado em musicar textos de poetas (Drummond, Pessoa, Cecília, García
Lorca), o grupo carioca Música Surda adotou o nome do poema homônimo de Dante
Milano, transcrito ao lado.
Clique
aqui
para ouvir o poema, recriado pelo Música Surda. Visite também o site do
conjunto:
www.letras.ufrj.br/musicasurda/
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Poesia.net quinzenal
O boletim poesia.net, que nos últimos cinco anos circulou todas as
quartas-feiras, passa a ser quinzenal. Quarta sim, quarta não. Agora, após
consultar meus estoques de poetas "boletináveis", concluí que minha represa não
seria capaz de continuar a abastecer o boletim toda semana com textos de
qualidade no mínimo razoável. Então, para manter o padrão, vamos em passo mais
lento.
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Farol na névoa
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Dante Milano |
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MÚSICA SURDA
Como num louco mar, tudo naufraga.
A luz do mundo é como a de um farol
Na névoa. E a vida assim é coisa vaga.
O tempo se desfaz em cinza fria,
E da ampulheta milenar do sol
Escorre em poeira a luz de mais um dia.
Cego, surdo, mortal encantamento.
A luz do mundo é como a de um farol...
Oh, paisagem do imenso esquecimento.
MÁSCARA
Passa o tempo da face
E o prazer de mostrá-la.
Vem o tempo do só,
A rua do desgosto,
O trilho interminável
Numa estrada sem casas.
O final do espetáculo,
A sala abandonada,
O palco desmantelado.
Do que foi uma face
Resta apenas a máscara,
O retrato, a verônica,
O fantasma do espelho,
O espantalho barbeado,
A face deslavada,
Mais sulcada, mais suja,
De beijada, cuspida,
Amarrotada
Como um jornal velho.
Máscara desbotada
De carnavais passados.
Esta é a nossa cara
Escaveirada.
Até que a terra
Com sua garra
Nos rasgue a máscara.
AO TEMPO
Tempo, vais para trás ou para diante?
O passado carrega a minha vida
Para trás e eu de mim fiquei distante,
Ou existir é uma contínua ida
E eu me persigo nunca me alcançando?
A hora da despedida é a da partida
A um tempo aproximando e distanciando...
Sem saber de onde vens e aonde irás,
Andando andando andando andando andando
Tempo, vais para diante ou para trás?
A PARTIDA
Chego à amurada do cais,
Tomo um trago de tristeza.
Vem uma aura de beleza
Entontecer-me ainda mais.
Sinto um gosto de paixão
Dentro da boca amargosa.
Vem a morte deliciosa
Arrastar-me pela mão.
Vou seguindo sem olhar,
Vou andando sem rumor,
Ouvindo a vaga do mar
Bater na pedra da dor.
Vou andando sobre o mar,
Quem sabe onde irei parar?
Vou andando sem saber
Aonde me leva este amor.
ESCULTURA
A forma da fêmea integrou-se no corpo do macho,
Ambos uma só pedra
Onde ressaltam, invisíveis, separando-os
As duas almas supérfluas.
CENÁRIO
Tudo é só, a montanha é só, o mar é só,
A lua ainda é mais só.
Se encontrares alguém
Ele está só também.
Que fazes a estas horas nesta rua?
Que solidão é a tua
Que te faz procurar
O cenário maior,
O de uma solidão maior que a tua?
PARAGEM
Só
Com os meus bois.
Os meus bois que mugem e comem o chão,
Os meus bois parados,
De olhos parados,
Chorando,
Olhando...
O boi da minha solidão,
O boi da minha tristeza,
O boi do meu cansaço,
O boi da minha humilhação.
E esta calma, esta canga, esta obediência.
O Beijo, mármore de Auguste
Rodin (1840-1917)
EM FORMA DE AMOR
Por que me apertas com tanta força?
Por que não tiras os olhos dos meus?
Teu abraço me esmaga,
Teu beijo me sufoca,
Teus dedos se cravam nos meus cabelos,
Tua voz rouca parece exprimir num rugido o que as palavras
[ não podem significar...
Por que me agarras?
Assim dois inimigos se abraçam para lutar.
COMPOSIÇÃO
Duas mulheres juntas
Formam desenhos dúbios
Se numa só há tantas,
As duas serão quantas?
Uma na outra transformo
E, misturando as formas,
No mesmo luar as banho,
Metamorfoses sonho.
Todas parecem uma
A quem a todas ama.
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