Decio Bar
Caros,
No campo da criatividade, o paulistano Decio Bar
(1943-1991) jogava em múltiplas posições. Cursou várias faculdades (filosofia,
sociologia, jornalismo, arquitetura) e falava meia dúzia de idiomas.
Profissionalmente, dedicou-se em especial ao jornalismo, mas também trabalhou em
publicidade, além de ter feito filmes Super-8, fotografia, roteiros para TV. E
não é só: também, em suas próprias palavras, foi "desenhista, ator, compositor,
de samba, chargista e ghost-writer".
Em literatura, Decio Bar fez parte do grupo paulistano que publicou a
Antologia dos Novíssimos, em 1961. Ao lado dele, estavam nomes como Claudio
Willer, Roberto Piva e Antonio Fernando de Franceschi. Na mesma época, Decio
lançou o volume No Temporal, definido como uma "novel-poema". O
surrealismo era uma influência forte entre aqueles jovens poetas.
Depois de No Temporal, Decio dividiu-se entre seus múltiplos talentos.
Embora continuasse a escrever, não publicou mais nenhum livro.
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Decio Bar morreu em julho de 1991. Nos últimos cinco anos de sua
vida, ele — que já abusara do álcool —, manteve-se completamente sóbrio. Ao
mesmo tempo, sabe-se que ele tinha algum problema e andou de médico em médico,
em busca de tratamento, talvez para algum problema neurológico. Não se sabe ao
certo se ele caiu ou se lançou do apartamento.
A morte do jornalista inspirou a escritora Maria Adelaide Amaral, sua amiga
desde o início dos anos 60, a escrever o romance Aos Meus Amigos, de
1992. Esse romance foi agora adaptado e deu origem à minissérie Queridos
Amigos, que está sendo exibida na rede Globo. O personagem Leo, representado
pelo ator Dan Stulbach, é inspirado vagamente na figura de Decio Bar.
•o•
Conheci Decio Bar em 1982. Trabalhamos juntos,
durante mais de dois anos, na redação da revista Ciência Ilustrada, da
Editora Abril. Era impressionante conviver com ele, que era oito anos mais
velho, e perceber o quanto havia lido, quanto conhecia sobre os mais diversos
assuntos, notadamente música e literatura, que pareciam ser áreas de sua
especial predileção. Antes do convívio, eu já o conhecia de nome, de ter lido
reportagens de sua autoria em publicações como a revista Realidade.
Embora eu soubesse da atividade literária de Decio Bar, até o presente (2008)
nunca havia lido nenhum de seus textos. Agora em fevereiro,
sua filha, Joy Bar, e a viúva, Elaine Pedreira Rabinovich, resolveram dar a
público o seu trabalho. Assim, reuniram no livro Escritos (Scortecci, São
Paulo, 2008) o material deixado por Decio. O título foi dado pelo próprio autor,
que o escreveu numa pasta onde colecionava os textos.
Escritos contém dois blocos de poemas. O primeiro compõe-se de produções
dos anos 60. O outro é formado por textos da década de 80. Nota-se claramente
uma diferença de tom entre as duas fases. Na primeira, prevalece o discurso
marcado pela influência do surrealismo. As imagens são ousadas, como "abraços de
serpentina", "naufrágios em taças de magnésio". Um "banquete de rebeldia". Veja
os poemas "[Todas as Manhãs]" e "Olha, Criança".
Os poemas dos anos 80
— os três últimos na seleção ao lado — afinam-se por outro
diapasão. A ambição e certa solenidade épica das criações surrealistas dão lugar
a anotações secas, quase despretensiosas. É como se o poeta apenas registrasse
pequenos lampejos, sem o compromisso de elevá-los à condição de peças
publicáveis.
É o que se pode ler, por exemplo, em "[Apart]". (Atenção: os títulos entre
colchetes indicam na verdade poemas sem título, só para facilitar a referência.)
Em cinco versos irônicos, ele baseia-se na expressão apart-hotel e daí deriva
"apart-escolas", "apart-berçários" etc. É como se, por trás dessas palavras,
estivesse a palavra apartheid. Ou seja: estamos educando nossas crianças num
sistema de separações?
Em "Balanço" e "Idades", os outros dois textos dos anos 80, Decio Bar faz
confissões nitidamente autobiográficas. No primeiro, usa números, numa
disposição típica dos documentos contábeis: de um lado, a descrição; de outro, o
valor. Só que ali os números aparentemente se referem às idades em que os itens
se concretizaram. Depois, ele passa em revista as atividades que deixou para
trás, como as artes plásticas, a arquitetura e o cinema. "Fico com esses
farrapos / de literatura", conclui.
Em "Idades", o corinthiano Decio Bar, usa metáforas do futebol para falar,
metafisicamente, de seus 45 anos. "Aos 45 do primeiro tempo, / que molde / toma
/ a vaidade?"
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
Escritos reeditado
O livro Escritos, de Decio Bar, publicado postumamente em 2008, foi relançado agora em 2023, pela Scortecci Editora.
O volume está disponível no site da Amazon.
(Nota de atualização: 16/06/2023).
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Banquete de rebeldia
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Decio Bar |
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[TODAS AS MANHÃS]
Todas as manhãs —
mesmo as
cavalgadas por astros
esporeados,
as adormecidas em
noturnos
abraços de serpentina,
as que vêm de
naufrágios em
taças de
magnésio, as que surgem
repentinas
(aquelas em que
percebemos o
crescimento da sombra
das unhas) —
Todas as manhãs
uma
tempestade sai do mar e eu
sou o seu
oco:
... — e não,
ainda não se dá o tempo
da clarineta,
e nem a tesoura recortando
os
calendários de sangue entrevê
a água de
espelhos, e assim
Todas as manhãs
com o sol
dentro do copo, sondo os
cabos
submarinos em busca de avarias,
indago de
algum telegrafista desertor
roído de
nostalgia, e vasculhando os
céus I’m just
a man in a crowd — poor
cloud of
birds and angels; e assim vou
— na trilha,
nos trilhos — de uma parede
ao muro que
me limita, com os olhos
muito longe
de mim
E neste ritual
em que não
faltam túmulos de jornais,
flautas
enlanguescidas por carência de valsa
compulsando
corpos que o inverno
reduziu da
medida de meus delírios; aliando-me a
querubins
alucinados sedentos
de
ambigüidades; valendo-me de um
telefone de
aço para uso psicotrópico;
deitando
cartas no leito das formas
que se pode
adivinhar no bojo das
nuvens, ou na
epiderme da pólvora
Neste ritual espero
da outra manhã
que me sirva à mesa no meu banquete
de rebeldia
OLHA, CRIANÇA
Olha, criança, que mordes a lua
como se fosse uma certeza.
A noite é sobre ti, criança, moldura
de panteras que teu cabelo ariscam,
e tangem tules cercando teus traços.
Junto à ponte trouxeste a chama,
e o vento tropeçou o lume
com sussurros de amante.
A flor que eu tinha era recorte de soçobro,
meu canto — vaga vela, retas rotas
pássaro inconsútil, cansaços prudentes.
Dos vitrais ensaiamos a Estrela,
de flores inventamos Orientes,
nossos pés descalços ritmavam folhas
em nossos passos.
Nos muros, aranhas teciam tempo e medo,
fisgando teu olhar cósmico
promontório raso que a maré agasalha.
A leste da estrela a flor tornou-se hera
o tempo das águas gastou-se na espera
e do grito selvagem
da furna adiada
do vôo do vento
crestou-se a ramagem.
Ah criança que mordes a lua
como se fora uma certeza.
Olha, criança, que mordes a lua
como se fora uma certeza.
A noite é sobre ti, criança, moldura
de panteras que teu cabelo ariscam
e tangem tules cercando teus traços.
Junto à ponte trouxeste a chama,
o vento a tropeçar o lume
com sussurros de amante.
A flor que eu tinha era recortes de assombro,
Meu canto — vaga vela, rôtas rotas
pássaro inconsútil, cansaços prudentes.
Dos vitrais ensaiamos a Estrela
de flores morremos Poentes
nossos pés descalços ritmavam folhas
aos nossos passos.
Nas frinchas aranhas teceram tempo e medo
fisgando teu olhar precipitado,
promontório raso que a maré agasalha em renda.
Segredo
(A Leste da
Estrela a flor tornou-se hera
o tempo das
águas gastou-se de espera
e do grito
selvagem
na furna
adiada
em vôos de
vento
crestou-se a
ramagem)
Olha, criança, que mordes a lua
como se fora uma certeza.
[APART]
As crianças moravam em apart-hotéis.
Primeiro, apart-berçário, depois
apart-escolas, até chegar no
apart-singles, não sem antes passar pelos
apart-quartéis.
BALANÇO
Aos 44
Tenho um carro — 40 anos
uma filha — 31
uma casa — 42
já joguei fora
as ARTES PLÁSTICAS
a ARQUITETURA
a METAFÍSICA
a CIÊNCIA
o CINEMA
— no VT passei direto
Fico com esses farrapos
de literatura
que se resumem à articulação
da palavra.
IDADES
Aos 45 do primeiro tempo,
que molde
toma
a vaidade?
Mais 1 minuto
e o jogo
pára
Mais 15, ele recomeça
Só que
então
já serão
os semifinais da morte
1/jan/89
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