Eugenio Montale
Caros amigos,
O poeta que comparece hoje perante vocês é um dos
mais celebrados da Itália: Eugenio Montale. Nascido em Gênova em 1896, Montale
morreu em 1981. Interrompeu os estudos em 1915 para servir na Primeira Guerra
Mundial. Com o fim do conflito, retornou à cidade natal. Em 1927, transferiu-se
para Florença. No ano seguinte, passou a dirigir o Gabinete Viesseux, de
literatura e ciência. Tornou-se então conhecido como poeta, tradutor e crítico.
Sua primeira coletânea de poemas, Ossi di Seppia (Ossos de sépia, ou
Ossos de siba), saiu em 1925. Com a ascensão do fascismo, Montale foi afastado
do Gabinete em 1938. Motivo: recusou-se a aderir ao Partido Fascista. O escritor
então se afastou das atividades públicas e dedicou-se à tradução. Verteu para o
italiano obras de William Shakespeare, T.S. Eliot, Herman Melville, Eugene
O’Neill e outros.
Após a Segunda Guerra Mundial, Montale mudou-se para Milão (em 1948), onde
passou a colaborar na seção literária do Corriere della Sera. Nesse
jornal escreveu numerosas resenhas de livros e influenciou outros críticos com
suas opiniões. Em 1975, Montale recebeu o Prêmio Nobel de literatura.
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Eugenio Montale é considerado o mais expressivo representante
italiano da chamada poesia hermética, juntamente com Salvatore Quasimodo (outro
laureado com o Nobel, em 1959) e Giuseppe Ungaretti. É bom considerar que muito
do hermetismo desse rótulo já se desfez com o tempo.
Para a seleção de poemas ao lado, vali-me do trabalho de três tradutores: Ivo
Barroso, que incluiu poemas montalianos em seu volume O Torso e o Gato – o
Melhor da Poesia Universal (Record, 1991); Geraldo Holanda Cavalcanti, que
verteu a antologia Poesias (Record, 1997), com poemas de todas as fases
da vida de Montale; e Renato Xavier, autor da versão do primeiro livro do
genovês, Ossos de Sépia (Cia. das Letras, 2002).
A poesia de Montale tem marcas bem reconhecíveis. Talvez a que mais se destaque
seja um agudo pessimismo. Não é difícil identificá-lo ao ler poemas como “Não
Nos Peças a Palavra]” e “[Não Raro Tive o Mal da Vida ao lado]”. (Os poemas com
títulos entre colchetes são na verdade textos sem título, citados assim para
facilitar a referência.). Em “[Cobri de Alpiste a Sacada]”, ele diz,
explicitamente: “Nós fizemos / o melhor de nossos esforços para piorar o mundo”.
É compreensível, para um homem que viu de perto as duas grandes guerras.
Outra marca que se destaca na criação lírica de Montale é — apesar do
persistente pessimismo — a capacidade de captar momentos de pura beleza como na
conclusão do poema “[Não Raro Tive o Mal da Vida ao lado]”: “uma estátua assim
na sonolência / do meio-dia, e a nuvem, e o falcão no ar alçado”. Isso, para
mim, tem a mesma tonalidade poética de um poema de Drummond: “Não amei ninguém.
/ Salvo aquele pássaro — vinha azul e doido — / que se esfacelou na asa do
avião” (“Confissão”, de Claro Enigma, 1951).
Também vale a pena notar a refinada ironia montaliana. Ela aparece, por exemplo,
no poema “Divindades Incógnitas”. Há uma combinação de desalento e ironia quando
o poeta escreve “Não nos peças a fórmula que possa abrir mundos, / e sim alguma
sílaba torcida e seca como um ramo”.
(“[Não Nos Peças a Palavra]”).
A poesia de Montale é isso: um exercício quase silencioso de tentar flagrar,
entre apagados momentos da vida, a repentina centelha que se acende entre a
nuvem e o falcão em vôo.
Um abraço,
Carlos Machado
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A VOZ DO POETA
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ou na imagem ao lado e veja o próprio Eugenio Montale lendo o poema "[Mia
Vita]". O clipe está num site em formato RealVideo. Você só poderá vê-lo se
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O falcão e a nuvem
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Eugenio Montale |
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IN LIMINE
Folga se o vento sopra no
pomar e o
faz tremer na ondulação da vida;
aqui se afunda um morto
urdume de memórias,
que horto já não é, mas relicário.
Não é um vôo este adejar ao sol
e sim a comoção do eterno seio;
vê como se transforma um pobre veio
de terra solitário num crisol.
Ímpeto desta parte do árduo muro.
Se avanças, tens contatos
(tu talvez) com o fantasma que te salva;
aqui vão-se compondo histórias, atos
riscados pelo jogo do futuro.
Procura a malha rota nesta rede
que nos estreita, e pula fora, escapa!
Vai, por ti faço votos — minha sede
será leve, a ferrugem menos áspera.
(Tradução: Ivo Barroso)
IN LIMINE
Godi se il vento ch'entra nel pomario
vi rimena l'ondata della vita:
qui dove affonda un morto
viluppo di memorie,
orto non era, ma reliquiario.
Il frullo che tu senti non è un volo,
ma il commuoversi dell'eterno grembo;
vedi che si trasforma questo lembo
di terra solitario in un crogiuolo.
Un rovello è di qua dall'erto muro.
Se procedi t'imbatti
tu forse nel fantasma che ti salva:
si compongono qui le storie, gli atti
scancellati pel giuoco del futuro.
Cerca una maglia rotta nella rete
che ci stringe, tu balza fuori, fuggi!
Va, per te l'ho pregato,— ora la sete
mi sarà lieve, meno acre la ruggine…
[NÃO NOS PEÇAS A PALAVRA]
Não nos peças a palavra que acerte cada lado
de nosso ânimo informe, e com letras de fogo
o aclare e resplandeça como açaflor
perdido em meio de poeirento prado.
Ah o homem que lá se vai seguro,
dos outros e de si próprio amigo,
e sua sombra descura que a canícula
estampa num escalavrado muro!
Não nos peças a fórmula que possa abrir mundos,
e sim alguma sílaba torcida e seca como um ramo.
Hoje apenas podemos dizer-te
o que não somos, o que não queremos.
(Tradução: Renato Xavier)
[NON CHIEDERCI LA PAROLA]
Non chiederci la parola che squadri da ogni lato
l'animo nostro informe, e a lettere di fuoco
lo dichiari e risplenda come un croco
perduto in mezzo a un polveroso prato.
Ah l'uomo che se ne va sicuro,
agli altri ed a se stesso amico,
e l'ombra sua non cura che la canicola
stampa sopra uno scalcinato muro!
Non domandarci la formula che mondi possa aprirti,
sì qualche storta sillaba e secca come un ramo.
Codesto solo oggi possiamo dirti,
ciò che non siamo, ciò che non vogliamo.
[Ó VIDA]
Ó vida, não te peço
lineamentos
fixos, vultos plausíveis ou possessos.
Sinto que no teu giro inquieto o mesmo
sabor que tem o mel tem o absinto.
O coração propenso todo ao vil
raro se afeta com pressentimentos.
Tal como soa às vezes no silêncio
do descampado um tiro de fuzil.
(Tradução: Ivo Barroso)
[MIA VITA]
Mia vita, a te non chiedo lineamenti
fissi, volti plausibili o possessi.
Nel tuo giro inquieto ormai lo stesso
sapore han miele e assenzio.
Il cuore che ogni moto tiene a vile
raro è squassato da trasalimenti.
Così suona talvolta nel silenzio
della campagna un colpo di fucile.
[SESTEAR ENTRE PÁLIDO E ABSORTO]
Sestear entre pálido e
absorto
junto a um ardente muro de horto;
ouvir por entre sarças e estrepes
pios de melros, silvos de serpes.
Entre as fendas do solo ou pelo coentro
espiar filas de rubras formigas
que ora se espalham, ora se concentram
em cima de minúsculas vigas.
Observar entre a fronde a palpitar
ao longe as escamas do mar
enquanto se erguem os trêmulos rascos
das cigarras de altos penhascos.
E andando ao sol que nos baralha
a vista, ver — triste maravilha —
como é toda esta vida e sua estafa
ao longo deste muro que rebrilha
com seus cacos agudos de garrafa.
(Tradução: Ivo Barroso)
[MERIGGIARE PALLIDO E ASSORTO]
Meriggiare pallido e assorto
presso un rovente muro d' orto,
ascoltare tra i pruni e gli sterpi
schiocchi di merli, frusci di serpi.
Nelle crepe del suolo o su la veccia
spiar le file di rosse formiche
ch' ora si rompono ed ora s' intrecciano
a sommo di minuscole biche.
Osservare tra frondi il palpitare
lontano di scaglie di mare
mentre si levano tremuli scricchi
di cicale dai calvi picchi.
E andando nel sole che abbaglia
sentire con triste meraviglia
com' é tutta la vita e il suo travaglio
in questo seguitare una muraglia
che ha in cima cocci aguzzi di bottiglia.
[NÃO RARO TIVE O MAL DA VIDA AO LADO]
Não raro tive o mal da vida ao lado:
era o arroio arrochado que gorgolha,
ou era o esturricar-se de uma folha
ardida, ora o cavalo esquartejado.
Do bem não soube, exceto da magia
que emana da divina Indiferença:
como uma estátua assim na sonolência
do meio-dia, e a nuvem, e o falcão no ar alçado.
(Tradução: Ivo Barroso)
[SPESSO IL MALE DI VIVERE HO
INCONTRATO]
Spesso il male di vivere ho incontrato:
era il rivo strozzato che gorgoglia,
era l'incartocciarsi della foglia
riarsa, era il cavallo stramazzato.
Bene non seppi, fuori del prodigio
che schiude la divina Indifferenza:
era la statua nella sonnolenza
del meriggio, e la nuvola, e il falco alto levato.
De
Ossi di Seppia (Ossos de Sépia), 1920-1927
[COBRI DE ALPISTE A SACADA]
Cobri de alpiste a sacada
para o concerto da madrugada de amanhã.
Apaguei a luz e esperei pelo sono.
E já na passarela se inicia
o desfile dos mortos grandes e pequenos
que conheci em vida. É difícil distinguir
quem eu gostaria ou não que
regressasse entre nós. Lá onde estão
parecem inalteráveis por um algo mais
de decomposição sublimada. Nós fizemos
o melhor de nossos esforços para piorar o mundo.
(Tradução: Geraldo Holanda
Cavalcanti)
[HO SPARSO DI BECCHIME IL DAVANZALE]
Ho sparso di becchime il davanzale
per il concerto di domani all'alba.
Ho spento il lume e ho atteso il sonno.
E sulla passerella già comincia
la sfilata dei morti grandi e piccoli
che ho conosciuto in vita. Arduo distinguere
tra chi vorrei e non vorrei che fosse
tornato tra noi. Là dove stanno
sembrano inalterabili per un di più
di sublimata corruzione. Abbiamo
fatto del nostro meglio per peggiorare il mondo.
De Quaderni di Quattro Anni (1973-1977)
LA BELLE DAME SANS MERCI
Sem dúvida as gaivotas cantonais esperaram em vão
as migalhas de pão que eu lhes lançava
em teu balcão para que ouvisses
mesmo ferrada no sono os seus estrídulos.
Hoje faltamos os dois ao encontro
e o nosso café da manhã esfria entre as pilhas
para mim de livros inúteis e para ti de relíquias
que ignoro: agendas, estojos, vidros e cremes.
Maravilhoso o teu rosto se obstina ainda, recortado
sobre o pano de fundo de cal da manhã;
mas uma vida sem asas não o alcança e o seu fogo
sufocado é o lampejo de um isqueiro.
(Tradução: Geraldo Holanda
Cavalcanti)
LA BELLE DAME SANS MERCI
Certo i gabbiani cantonali hanno atteso invano
le briciole di pale che io gettavo
sul tuo balcone perché tu sentissi
anche chiusa nel sonno le loro strida.
Oggi manchiamo all'appuntamento tutti e due
e il nostro breakfast gela tra cataste
per me di libri inutili e per te di reliquie
che non so: calendari, astucci, fiale e creme.
Stupefacente il tuo volto s'ostina ancora, stagliato
sui fondali di calce del mattino;
ma una vita senz'ali non lo raggiunge e il suo fuoco
soffocato è il bagliore dell'accendino.
DIVINDADES INCÓGNITAS
Dizem
que de divindades terrestres entre nós
se encontram cada vez menos.
Muitas pessoas duvidam
de sua existência nesta terra.
Dizem
que neste mundo ou no de cima existe uma só ou nenhuma;
crêem
que os sábios antigos eram todos uns loucos,
escravos de sortilégios se diziam
que algum incógnito
os visitava.
Eu digo
que imortais invisíveis
aos outros ou talvez inconscientes
de seus privilégios,
divindades em jeans e com suas mochilas,
sacerdotisas em gabardine e sandálias,
pitonisas de ar absorto à fumação de um fogo de pinhões,
numinosas visões não irreais, tangíveis,
intocadas,
vi muitas vezes
mas sempre tarde demais se tentava
desmascará-las.
Dizem
que os deuses não descem neste mundo,
que o criador não cai de pára-quedas,
que o fundador não funda porque ninguém
jamais o fundou ou fundiu
e que nós não somos mais do que os desastres
de seu nulificante magistério;
contudo
se uma divindade, mesmo de ínfimo grau,
alguma vez me roçou
o arrepio que senti me disse tudo e no entanto
faltava-me reconhecê-la e o não existente
ser se esvanecia.
(Tradução: Geraldo Holanda
Cavalcanti)
DIVINITÀ IN INCOGNITO
Dicono
che di terrestri divinità tra noi
se ne incontrano sempre meno.
Molte persone dubitano
della loro esistenza su questa terra.
Dicono
che in questo mondo o sopra ce n'è una sola o nessuna;
credono
che i savi antichi fossero tutti pazzi,
schiavi di sortilegi se opinavano
che qualche nume in incognito
li visitasse.
Io dico
che immortali invisibili
agli altri e forse inconsci
del loro privilegio,
deità in fustagno e tascapane,
sacerdotesse in gabardine e sandali,
pizie assorte nel fumo di un gran falò di pigne,
numinose fantasime non irreali, tangibili,
toccate mai,
io ne ho vedute più volte
ma era troppo tardi se tentavo
di smascherarle.
Dicono
che gli dei non scendono quaggiù,
che il creatore non cala col paracadute,
che il fondatore non fonda perché nessuno
l'ha mai fondato o fonduto
e noi siamo solo disguidi
del suo nullificante magistero;
eppure
se una divinità, anche d'infimo grado,
mi ha sfiorato
quel brivido m'ha detto tutto e intanto
l'agnizione mancava e il non essente
essere dileguava.
De Satura (1962-1970)
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