Machado de Assis
Caros,
Neste ano, precisamente em 29 de setembro, completa-se o centenário da morte do
romancista, contista, cronista, poeta e dramaturgo Machado de Assis (1839-1908).
Clássico e popular, o autor de Dom Casmurro
(1899) é considerado por muitos o maior ficcionista
brasileiro. Talvez por isso mesmo o poeta Machado de Assis, com justiça, fique à
sombra do genial esquadrinhador de almas que conhecemos em seus contos e
romances.
No artigo "O Poeta", publicado em junho de 1939 na Revista do Brasil e
reproduzido na seção Poesia da Obra Completa de Machado, Manuel Bandeira
adverte: "É um perigo para o poeta assinalar-se fortemente nos domínios da
prosa". O motivo, explica Bandeira, é que o autor entra em desigual competição
consigo mesmo. Conclui o poeta pernambucano: "Machado de Assis poeta tornou-se
uma vítima de Machado de Assis prosador. Certamente a obra do romancista e do
cronista distancia enormemente a do poeta".
Não resta a menor dúvida de que o poeta que publicou Crisálidas (1864);
Falenas (1870); Americanas (1875); e Poesias Completas
(1901) fica bem abaixo do estupendo prosador de obras-primas do romance como
Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas e de contos igualmente
geniais, a exemplo de "O Alienista", "Uns Braços", "Missa do Galo" e tantos
outros.
Mas creio que, quando Bandeira fala em competição, refere-se não somente ao
cotejo entre a qualidade dos escritos machadianos em prosa e em verso, mas à
própria dedicação do autor a uma arte e/ou à outra.
Para Bandeira, o poeta Machado de Assis "não se salvaria" com seus três
primeiros livros. Só com os poemas de Ocidentais, aos 40 anos, é que ele
revelaria "uma dúzia de poemas que têm a mesma excelente qualidade dos seus
melhores contos e romances".
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Concordei com essa análise de Manuel Bandeira antes mesmo de conhecê-la. E
endosso-a mais ainda depois de ler o livro Toda Poesia de Machado de Assis
(por que não Toda A Poesia...?), publicado este ano pela Editora Record.
O volume acrescenta ao que já estava nas Poesias Completas numerosas
páginas de material disperso. Por isso a edilção é apresentada como "o mais
completo conjunto de poemas de Machado de Assis".
Mas cabe uma pergunta:
será que vale a pena, para o leitor comum, o simples apreciador de poesia,
encarar esse conjunto completo? Creio que não. Entre o material coligido além da
obra oficial, há muitos poemas de principiante, versos de circunstância perdidos
em álbuns de senhoras, cumprimentos matrimoniais e outros cometimentos de
cortesia social. São textos que merecem consideração apenas dos estudiosos da
vida e obra do autor.
Quanto a nós outros, fiquemos com a dúzia de poemas sugeridos por Bandeira. A
seleção mostrada ao lado segue à risca as sugestões do poeta de "Vou-me Embora
pra Pasárgada". Todos os textos, exceto dois, são do livro Ocidentais.
A propósito, Ocidentais é apontado como um dos momentos em que Machado de
Assis teria experimentado o seu "estalo" criativo, determinante para sua
passagem ao período de obras mais maduras. Bandeira diz que esse "estalo" teria
acontecido por volta de 1879, ano em que "apareceram na Revista Brasileira
as primeiras Ocidentais". Depois ele continua: "Às Ocidentais
seguiram-se as Memórias Póstumas de Brás Cubas (81), Papéis Avulsos
(82)..."
Ou seja: Bandeira parece sugerir que o volume Ocidentais surgiu em 1880.
De fato, algumas fontes indicam esse ano como data do livro (há também
referências a 1882). A Academia Brasileira de Letras, porém, cita Ocidentais
como obra de 1901, aparecendo pela primeira vez em livro como parte das
Poesias Completas. Talvez a referência a 1880 esteja associada à publicação
avulsa dos primeiros poemas sob aquele título.
Mas voltemos à seleção. Na coluna ao lado estão transcritos seis poemas de
Ocidentais
e um disperso, "A Carolina", escrito em 1906, cerca de dois anos após a morte da
esposa de Machado, Carolina. Esse poema é, na minha opinião, o cristal mais
límpido e duradouro da poesia machadiana. Uma peça com sabor modernamente
camoniano.
A seleta se fecha com um trecho de "A Gonçalves Dias", poema de Americanas,
livro em que Machado de Assis sofre uma "recaída" indigenista. O poema é uma
nênia ao poeta maranhense
Antonio Gonçalves Dias, morto em 1864 num naufrágio. Destaca-se no texto o
excelente refrão: "Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros! / Virgens da
mata, suspirai comigo!"
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Numa homenagem ao grande Machado de Assis — um escritor moderno e cada vez mais
atual —, troquei por minúsculas as maiúsculas nos inícios de verso quando
representam pura formalidade. Se escrevesse hoje, o autor de Dom Casmurro,
com certeza, não respeitaria essa convenção inútil.
Um abraço,
Carlos Machado
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MACHADO DE ASSIS
Nascido no Rio de Janeiro, Joaquim Maria Machado de Assis era filho do pintor de
paredes Francisco José de Assis, descendente de escravos, e de Maria Leopoldina
Machado, portuguesa da ilha de São Miguel. Não freqüentou escola regular, mas
sempre demonstrou muita curiosidade, tanto que aprendeu francês, inglês e
alemão.
Estreou na literatura em 1855, ao publicar um poema na revista Marmota
Fluminense. Profissionalmente, começou como aprendiz de tipógrafo na
Imprensa Oficial, onde conquistou a amizade e a proteção do diretor, Manuel
Antônio de Almeida, autor do romance Memórias de um Sargento de Milícias.
Colaborou intensamente em jornais e revistas, como cronista, poeta e crítico. Em
livro, começou como poeta e depois firmou-se como contista e romancista.
Os críticos costumam dividir sua obra em duas fases: a primeira, romântica,
tanto em prosa como em poesia. Por volta de 1880, lhe ocorre o "estalo"
(expressão de Manuel Bandeira) e ele não só produz seu melhor livro de poesia,
Ocidentais, como escreve suas obras-primas em prosa e se consagra como um
romancista primoroso, hoje incluído entre os maiores da literatura ocidental.
"O gênio da ironia propiciou-nos poucos exemplos à altura do escritor
afro-brasileiro Machado de Assis, a meu ver, o maior literato negro surgido até
o presente". Assim escreve sobre o ex-aprendiz de tipógrafo o crítico americano
Harold Bloom em seu livro Gênio (Objetiva, 2003).
Machado casou-se em 1869 com a portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novais. O
casamento consumou-se, apesar da forte oposição da família dela, por causa da
origem africana do escritor. Os dois não tiveram filhos e conviveram 35 anos,
até a morte de Carolina, em 1904. Foi justamente à memória da esposa que ele
escreveu seu poema mais sonoro e mais pungente, o soneto "A Carolina".
De 1884 até a morte, Machado viveu na Rua do Cosme Velho, 18, no bairro do mesmo
nome. Esse local, onde escreveu a maior parte de suas obras da fase madura e
realista. Por causa disso, o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas,
ganhou o epíteto carinhoso de o Bruxo do Cosme Velho. A alcunha se firmou depois
que Carlos Drummond de Andrade, discípulo e admirador confesso do Mestre, lhe
dedicou um poema, "A um Bruxo, com Amor", no qual está este verso: "Outros leram
da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro".
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poesia.net em números
Em abril, o site
Alguma Poesia, que
abriga toda a coleção deste boletim, registrou novo recorde: a média de 1653
visitas diárias. Também foram recordes as visitações dos dias 22 e 23 de abril —
respectivamente, 2339 e 2253. Foi a primeira vez que esses números ultrapassaram
as 2 mil visitas diárias.
Também em abril, vale citar as páginas mais lidas do site. Em primeiro lugar,
vem o índice
do poesia.net, com 16,7% das visitas. Em segundo, está o índice das páginas
dedicadas a
Carlos
Drummond de Andrade, com 8,9%. A terceira (e mais surpreendente) posição
pertence ao boletim n. 174, centrado no poeta
Gonçalves Dias e em sua seminal “Canção do Exílio”.
Publicado em 2/8/2006, esse boletim tornou-se um dos campeões de audiência no
site. Se você fizer, hoje, uma busca no Google com o argumento “canção do
exílio”, o poesia.net 174 aparecerá na lista como terceira fonte de referência.
Creio que uma das principais razões para essa popularidade da página sejam as
pesquisas escolares.
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O gênio do Cosme Velho
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Machado de Assis |
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A CAROLINA
Querida! Ao pé do leito derradeiro,
em que descansas desta longa vida,
aqui venho e virei, pobre querida,
trazer-te o coração de companheiro.
Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
que, a despeito de toda a humana lida,
fez a nossa existência apetecida
e num recanto pôs um mundo inteiro...
Trago-te flores, — restos arrancados
da terra que nos viu passar unidos
e ora mortos nos deixa e separados.
Que eu, se tenho nos olhos mal feridos
pensamentos de vida formulados,
são pensamentos idos e vividos.
1906
Prometeu, o titã acorrentado
Prometeu, um dos titãs da mitologia grega, roubou o fogo dos deuses e o deu-o
aos homens. Pagou caro pela ousadia: foi acorrentado a um penhasco e as águias
lhe comeram as vísceras. Imagem da Encyclopedia Mythica.
O DESFECHO
Prometeu sacudiu os braços manietados
e súplice pediu a eterna compaixão,
ao ver o desfilar dos séculos que vão
pausadamente, como um dobre de finados.
Mais dez, mais cem, mais mil e mais um bilião,
uns cingidos de luz, outros ensangüentados...
Súbito, sacudindo as asas de tufão,
fita-lhe a águia em cima os olhos espantados.
Pela primeira vez a víscera do herói,
que a imensa ave do céu perpetuamente rói,
deixou de renascer às raivas que a consomem.
Uma invisível mão as cadeias dilui;
frio, inerte, ao abismo um corpo morto rui;
acabara o suplício e acabara o homem.
ESPINOSA
Gosto de ver-te, grave e solitário,
sob o fumo de esquálida candeia,
nas mãos a ferramenta de operário,
e na cabeça a coruscante idéia.
E enquanto o pensamento delineia
uma filosofia, o pão diário
a tua mão a labutar granjeia
e achas na independência o teu salário.
Soem cá fora agitações e lutas,
sibile o bafo aspérrimo do inverno,
tu trabalhas, tu pensas, e executas
sóbrio, tranqüilo, desvelado e terno,
a lei comum, e morres, e transmutas
o suado labor no prêmio eterno.
CÍRCULO VICIOSO
Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
— “Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
que arde no eterno azul, como uma eterna vela!”
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:
— “Pudesse eu copiar o transparente lume,
que, da grega coluna à gótica janela,
contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!”
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:
— “Mísera! tivesse eu aquela enorme, aquela
claridade imortal, que toda a luz resume!”
Mas o sol, inclinando a rútila capela:
— “Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Porque não nasci eu um simples vaga-lume?”
UMA CRIATURA
Sei de uma criatura antiga e
formidável,
que a si mesma devora os membros e as entranhas,
com a sofreguidão da fome insaciável.
Habita juntamente os vales e as montanhas;
e no mar, que se rasga à maneira de abismo,
espreguiça-se toda em convulsões estranhas.
Traz impresso na fronte o obscuro despotismo.
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
parece uma expansão de amor e de egoísmo.
Friamente contempla o desespero e o gozo,
gosta do colibri como gosta do verme,
e cinge ao coração o belo e o monstruoso.
Para ela, o chacal é como a rola inerme,
e caminha na terra imperturbável como,
pelo vasto areal, um vasto paquiderme.
Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo,
vem a folha que, lento e lento, se desdobra,
depois a flor, depois o suspirar do pomo.
Pois essa criatura está em toda a obra,
cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto.
E é nesse destruir que as suas forças dobra.
Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
começa e recomeça uma perpétua lida,
e sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.
Machado de Assis aos 25 anos.
"O gênio da ironia propiciou-nos poucos exemplos à altura do escritor
afro-brasileiro Machado de Assis, a meu ver, o maior literato negro surgido
até o presente" (Harold Bloom).
SONETO DE NATAL
Um homem, — era aquela noite amiga,
noite cristã, berço no Nazareno, —
ao relembrar os dias de pequeno,
e a viva dança, e a lépida cantiga,
quis transportar ao verso doce e ameno
as sensações da sua idade antiga,
naquela mesma velha noite amiga,
noite cristã, berço do Nazareno.
Escolheu o soneto... A folha branca
pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
a pena não acode ao gesto seu.
E, em vão lutando contra o metro adverso,
só lhe saiu este pequeno verso:
“Mudaria o Natal ou mudei eu?”
SUAVE MARI MAGNO
Lembra-me que, em certo dia,
na rua, ao sol de verão,
envenenado morria
um pobre cão.
Arfava, espumava e ria,
de um riso espúrio e bufão,
ventre e pernas sacudia
na convulsão.
Nenhum, nenhum curioso
passava, sem se deter,
silencioso,
junto ao cão que ia morrer,
como se lhe desse gozo
ver padecer.
De Ocidentais (1901)
A GONÇALVES DIAS
(excerto)
Morto, é morto o cantor dos
meus guerreiros!
Virgens da mata, suspirai comigo!
A grande água o levou como invejosa,
nenhum pé trilhará seu derradeiro
fúnebre leito; ele repousa eterno
em sítio onde nem olhos de valentes,
nem mãos de virgens poderão tocar-lhe
os frios restos. Sabiá-da-praia
de longe o chamará saudoso e meigo,
sem que ele venha repetir-lhe o canto.
Morto, é morto o cantor dos meus guerreiros!
Virgens da mata, suspirai comigo!
De Americanas (1875)
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