Número 249 - Ano 6

São Paulo, quarta-feira, 4 de junho de 2008 

«A verdade é feia: temos a arte a fim de que a verdade não nos mate.» (Friedrich Nietzsche) *
 


H. Dobal



Caros amigos,

Esta é a segunda vez que o poeta piauiense H. Dobal é destacado neste boletim. A primeira vez foi em agosto de 2004, na edição n. 82. Agora, infelizmente, como uma homenagem de despedida. O poeta calou sua voz no dia 22 de maio, em Teresina, sua terra natal.

Nascido em 1927, Hindemburgo Dobal Teixeira foi advogado e funcionário público. Residiu em Brasília, Londres, Berlim. Estreou em 1966, com o livro O Tempo Conseqüente, prefaciado por Manuel Bandeira, que já havia incluído poemas de Dobal em sua
Antologia de Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos, de 1964.

Se até aquele momento H. Dobal podia ser classificado como bissexto, logo abandonou a categoria, pois produziu sete outras coletâneas de poemas: O Dia sem Presságios (1970); A Província Deserta (1974); A Serra das Confusões (1978); A Cidade Substituída (1978); Os Signos e as Siglas (1987); Cantiga de Folhas (1989); Ephemera (1995). O autor também publicou um livro de viagens, um de contos e dois de crônicas. Em 2005, saiu uma poesia reunida do autor, em edição da Oficina da Palavra, de Teresina, que
lamentavelmente — não se encontra nas livrarias.

                      •o•

Ambientada na paisagem árida do sertão ou na cidade igualmente áspera ("com sua couraça de vidro, sua indiferença de mármore"), a poesia de H. Dobal trata, antes de tudo, da solidão essencial do ser humano. Não por acaso, o poeta diz que a cidade se movimenta no "suado compasso das solidões justapostas".

Tendo como pano de fundo essa solidão essencial, Dobal considera a passagem do tempo e, partindo dela, procede em seus poemas a um reiterado balanço de perdas e danos existenciais. Os amores que se vão, os artifícios para prolongar a vida e
apesar de tudo a inevitabilidade do fim. E a solidão. Os campos calcinados. O sol. As cores do crepúsculo.

Outro aspecto que merece atenção na obra de H. Dobal é o elevado nível de concretude das palavras. Poeta substantivo, ele usa os seres e objetos ao alcance dos sentidos para expressar idéias e sentimentos. São sensações reais, angulosas, quase palpáveis. Veja-se, por exemplo, o fecho do poema "Crepúsculo": "Um sol poente / celebra o suicídio da tarde". Todas as sensações provocadas pelo pôr-do-sol nos são projetadas por essas palavras. Nenhuma prestidigitação, nenhum efeito pirotécnico. E tudo está dito. Ou melhor, sentido.

O poema "Lamentação de Pieter van der Ley no Outeiro da Cruz", que fecha a pequena seleta ao lado, merece registro especial. Integrante do volume A Cidade Substituída, esse texto faz referência ao período da invasão holandesa no Maranhão (1641-1644). O Outeiro da Cruz é o lugar, em São Luís, onde se travaram as batalhas nas quais os portugueses expulsaram os holandeses do Maranhão. A cidade substituída é a própria São Luís, onde Dobal trabalhou durante algum tempo.

                      •o•

Para este boletim, selecionei poemas de H. Dobal contidos em Gleba de Ausentes – Uma Antologia Provisória, volume publicado em 2002 pela Corisco, uma editora de Teresina, também de alcance apenas local. Tenho um exemplar desse livro porque o garimpei num sebo. Mas, desafortunadamente (exceto no Piauí), a obra de Dobal não se encontra nas livrarias, nem nas escolas.

Com o passamento de H. Dobal, os piauienses perdem seu mais querido poeta. E o Brasil amplia sua dívida para com os bons poetas que habitam fora do eixo de interesse das editoras, da mídia e dos negócios de entretenimento.

Repito aqui o que já escrevi no primeiro boletim sobre a poesia dobalina. É estranho e injusto  termos um poeta dessa magnitude relegado ao conhecimento quase exclusivo de seu Estado natal.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



                      •o•




LANÇAMENTOS

Dois lançamentos programados para os próximos dias, um em Salvador e outro em São Paulo.

Ruy Espinheira Filho
- De Paixões e Vampiros - Uma História do Tempo da Era

O poeta baiano Ruy Espinheira Filho dá a público nova obra em prosa. Desta vez é o romance De Paixões e Vampiros – Uma História do Tempo da Era. O livro sai pela editora Bertrand Brasil.

Data: 5/6, quinta-feira
Hora: A partir das 18h00
Local: Livr. Civilização Brasileira
Av. Centenário. 2992, 2° piso - Setor Sul, tel. (71) 9267-8990
Salvador – BA
 

Tatiana Fraga
- Espelho


A poeta Tatiana Fraga lança sua segunda coletânea de poemas. Anote:

Data: 10/6, quinta-feira
Hora: A partir das 19h00
Local: Casa das Rosas - Espaço Haroldo de Campos
Av. Paulista, 37 tel. (11) 3265-6986
São Paulo –
SP


 

                      •o•



poesia.net em números

O poesia.net tem dois bons motivos para comemorar.

1. Durante o mês de maio, 163 novos leitores (em média, mais de 5 por dia) se inscreveram para receber o boletim.

Esse número recorde, creio, reflete
a disseminação da internet no país. Há novos leitores de cidades do interior das quais eu nunca ouvira falar. É bom deixar claro que não são somente municípios do Norte, do Nordeste ou do Centro-Oeste, regiões consideradas distantes (do ponto de vista do Sudeste, claro). Nada disso: são lugares inesperados, inclusive dos próprios Estados do Sul-Sudeste. A todos esses novos leitores, as nossas boas-vindas a este território virtual de poesia.

2. Também em maio, a visitação ao site Algumapoesia.com.br bateu novo recorde.

O número total alcançou 73.237 visitantes, correspondentes à média de 2.362 leitores por dia. O dia 28/5  marcou um pico, com 3.489 visitas.

Gleba de ausentes

H. Dobal

 



AMOR I

No áspero cálculo da paisagem:
a tarde
o domingo.
O verão:
a cidade ereta
no planalto seco.

A cidade masculina.

A cidade armada de ângulos
de concreto. Sua couraça
de vidro, sua indiferença
de mármore.
Seu amor:
o apressado atrito dos sexos.

               De Os Signos e as Siglas (1987)




H. Dobal com seu livro O Tempo Conseqüente, em janeiro de 2001.
H. Dobal com seu livro O Tempo Conseqüente, em janeiro de 2001



OS RIOS

Ai rios do Piauí, água rica de peixe
de couro e de escama.

De todos os rios sobra uma cantiga
de bem viver. Um rio preguiçoso
se compraz no seu curso. Outro rio
subterrâneo se afunda no peito.

Campo de areia, água viva nos pés,
água pesada na memória.
Senhor das dimensões um rio segue
suas margens renovadas, ribanceiras
movediças. Um rio move
seus habitantes, seus destinos.

                      Dodó das Cabeceiras
                      conhecedor dos rios
                      com eles aprendeu
                      a plenitude da vida.

Seu ritmo irregular um rio instala
faz a sua própria força. Cava os seus canais
seus tributários arrecada.

Água de beber, água de lavar,
água de nuvem, água do chão.
Móvel. Migrante. Um rio.
Jamais o mesmo.

               De O Dia sem Presságios (1970)



RÉQUIEM

Nestes verões jaz o homem
sobre a terra. E a dura terra
sob os pés lhe pesa. E na pele
curtida in vivo arde-lhe o sol
destes outubros. Arde o ar
deste campo maior desta lonjura
onde entanguidos bois pastam a poeira.

E se tem alma não lhe arde o desespero
de ser dono de nada. Tão seco é o homem
nestes verões. E tão curtida é a vida,
tão revertida ao pó nesta paisagem
neste campo de cinza onde se plantam
em meio às obras-de-arte do DNOCS
o homem e os outros bichos esquecidos.

               De O Tempo Conseqüente (1966)



CREPÚSCULO

Silencioso
Solitário
Sinistro
Um sol-poente
Celebra o suicídio da tarde.

               De Os Signos e as Siglas (1987)



GLEBA DE AUSENTES

Onde serão as roças planta-se primeiro
o fogo. E em cinza as chamas
vão turvando o céu
de uma cidade ardente.
Ardemos no peso da tarde
com a cinza do sol nos campos do verão.
Desde muitos avós o fumo das queimadas
vamos repetindo. Ficamos enfim
na cidade sem ventanas transplantados
e saltando os aceiros só em nós lavramos
a chama vagarosa que nos consome.

               De O Tempo Conseqüente (1966)



MULHER

A brisa e a luz cantarão nos teus cabelos.
A luz que acende a cor:
a saudade no sol nas dunas do teu corpo.
A brisa sobre as águas: o fogo no sangue,
os árdegos cavalos que a manhã dispara.
A tarde do fauno:
a doçura da pele sob o tremor dos dedos.
À noite a luz crescente
sonha o amor nas tuas areias.

               De Ephemera (1995)


"Vão as velas côncavas/ sobre o mar aberto/ vão levando o amor/ ao destino certo". (H. Dobal)
"Vão as velas côncavas/ sobre o mar aberto/ vão levando o amor/ ao destino certo".
 

AMOR II

Na calma da tarde
vem um pensamento.
Partir para sempre.
Só. No adeus do vento.

Vão as velas côncavas
sobre o mar aberto
vão levando o amor
ao destino certo.

Turva calmaria
afunda o verão.
Naufragado amor.
O amor é somente
uma dessas cousas
que vêm e que vão.

               De Ephemera (1995)



LAMENTAÇÃO DE PIETER VAN DER LEY
NO OUTEIRO DA CRUZ


Eu, Pieter van der Ley,
soldado da Holanda,
trazido até aqui
na luta santa contra os papistas,
mas também movido
pelo sonho da aventura e da riqueza,
fui morto aqui numa emboscada
dos guerrilheiros do Brasil.
Fui morto aqui neste lugar
depois chamado Outeiro da Cruz
em memória desta emboscada.
E aqui me tenho para sempre.

Os meus derrotados camaradas regressaram.
Eu sou o filho pródigo que os pais nunca reviram.
A violência do sol, o peso das chuvas,
o tempo tropical não me desgasta.
Mas perdi para sempre o claro-escuro da Holanda,
os canais onde a água refletia as tabernas,
perdi as planícies onde o gado frísio
pastava na bruma,
onde o gado malhado
transformava em leite a pastagem gorda.
Aqui neste Outeiro da Cruz,
hoje envolvido,
hoje engolido pela cidade,
passam os que procuram o aeroporto e me deixam
as suas lições de bem partir, de mal partir.
Aqui por perto manobram os caminhões de refrigerantes.
Eu não parto. O meu refrigério é apenas
esta brisa triste trazendo os adeuses do mar.

Eu, outrora chamado Pieter van der Ley,
espírito preso neste Outeiro da Cruz,
cumpro uma pena interminável,
expio um pecado de que não me lembro.
O meu corpo de vinte anos,
depositado neste chão,
composição que se decompôs rapidamente,
o meu corpo me abandonou.
A minha pele clara, os meus olhos claros,
os meus músculos, os meus cabelos ruivos
me abandonaram.
E aqui me tenho: menos do que sombra.
Corpo etéreo, fantasma, alma penada,
que ninguém vê,
que ninguém ouve,
que ninguém conhece,
neste exílio post-mortem.

               De A Cidade Substituída (1978)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2008

H. Dobal
•  in Gleba de Ausentes – Uma Antologia Provisória
    Livraria e Editora Corisco, Teresina, 2002
______________
* Friedrich Nietzsche, in Fragmentos Póstumos,
  primavera-verão de 1888