Fernando Pessoa (estátua em Lisboa, no Chiado)
Caros amigos,
Este é um boletim especial. É a edição n. 250 do poesia.net
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duas centenas e meia de boletins
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e coincide com os 120 anos do nascimento do poeta Fernando Pessoa, comemorado em
13 de junho, dia de Santo Antônio, que deu nome a Fernando António Nogueira
Pessoa, nascido em Lisboa no ano da graça de 1888.
Fernando Pessoa era um homem só, mas em pessoas múltiplas. Além dele mesmo,
carregava consigo uma pequena multidão: Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de
Campos, Bernardo Soares e vários outros menos importantes. Personalidades
diferentes. Todos escritores.
O próprio Pessoa fazia questão de destacar: não eram meros pseudônimos, mas
heterônimos. Ou seja, diferentes pessoas dentro do mesmo poeta. Escreveu ele:
“Construí dentro de mim várias personagens distintas entre si e de mim,
personagens essas a que atribuí poemas vários que não são como eu, nos meus
sentimentos e idéias, os escreveria”.
E, como pessoas independentes, os heterônimos tinham biografia, horóscopo e
descrição física. Aqui vão alguns traços dos principais deles.
Álvaro de Campos
–
Engenheiro de educação inglesa. Decadentista, futurista, niilista. É o mais
agressivo, revoltado, o que fala alto. Ao contrário dos outros da trupe —
especialmente Pessoa e Ricardo Reis, que têm postura pudica, quase assexuada —,
Campos é o único a falar de sexo, inclusive de homossexualidade. Consultem-se,
por exemplo, as caudalosas “Ode Marítima” e “Saudação a Walt Whitman”. Há poemas
de Campos com data de novembro de 1935, poucos dias antes da morte de Pessoa
que, como poeta, desaparece antes de Campos. Campos é também o mais dado a
revelar, asperamente, as crueldades do mundo: “Mandei, capitão, fuzilar os
camponeses trêmulos, / Deixei violar as filhas de todos os pais atados a
árvores” (em “Ode Marcial”).
Ricardo Reis –
Médico, latinista e monárquico. Mudou-se para o Brasil em protesto à instauração
da república em Portugal. O ano de sua morte é desconhecido. Com base nisso,
José Saramago criou o romance O Ano da Morte de Ricardo Reis. Para
Saramago, Ricardo Reis sobrevive a seu criador. Um dos personagens do romance é
Lídia, referência reiterada nas odes de Reis.
Alberto Caeiro –
Segundo Pessoa, Caeiro é o mestre de todos os heterônimos. Mestre inclusive do
próprio Pessoa. Teria passado quase toda a vida como camponês, com instrução
apenas primária.
Bernardo Soares –
Ajudante de guarda-livros em Lisboa. Soares, prosador, é autor do
Livro do Desassossego, fragmentos e anotações pessoais.
Coelho Pacheco –
Na Obra Poética de Pessoa, há uma ode, “Para Além Doutro Oceano”,
assinada por Coelho Pacheco.
No Posfácio aos “Poemas Completos de Alberto Caeiro”, Álvaro de Campos escreve:
“O meu mestre Caeiro não era um pagão: era o paganismo. O Ricardo Reis é um
pagão, o Antônio Mora é um pagão, eu sou um pagão; o próprio Fernando Pessoa é
um pagão, se não fosse um novelo embrulhado para o lado de dentro”.
Observem: aí é citado outro personagem, Antônio Mora, descrito por Pessoa como
um louco que vivia num manicômio de Cascais. Haveria ainda o Barão de Teive e
muitos outros, semi-heterônimos ou meros coadjuvantes. Somados, eles são bem
mais de uma dezena
— essa multidão que habitava a singular pessoa do Pessoa.
Um ponto comum a Pessoa e aos
três principais heterônimos é a idéia das múltiplas personalidades. Pessoa, ele
mesmo, afirma-se um fingidor, alguém que “sente com a imaginação”. E diz: “Eu
vejo-me e estou sem mim, / Conheço-me e não sou eu.” (“Gato que brincas na
rua”). Álvaro de Campos chega a proclamar a própria inexistência: “Começo a
conhecer-me. Não existo”. Reis é ainda mais explícito na multiplicidade: “Tenho
mais almas que uma. / Há mais eus do que eu mesmo” (“Ode 423”). Desnecessário é
dizer que essa pluralidade de personas faz de Pessoa um objeto privilegiado para
os estudos psicanalíticos.
Outro recurso muito ao gosto do Pessoa e de mais de um heterônimo são as
antíteses e os encadeamentos lógicos desconcertantes, nos quais ele parece
brincar, maliciosamente, com o que aprendeu na leitura dos filósofos:
• “Dêem-me de beber, que não tenho sede!” (Álvaro de Campos, em “Bicarbonato de
Soda”).
• “Porque o único sentido oculto das cousas / É elas não terem sentido oculto
nenhum.” (Caeiro)
• “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é
mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que
corre pela minha aldeia.” (Caeiro)
• “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é
dor / A dor que deveras sente.” (Pessoa, “Autopsicografia”)
Pessoa morreu (?) em 1935.
•o•
MAIS PESSOA
• Outros boletins:
Como são muitos os Pessoas, esta é a terceira vez que o poesia.net dedica
um boletim a esse que é um dos maiores poetas da língua portuguesa de todos os
tempos. Confira os outros boletins:
-
Os outros Pessoas (n. 22)
-
Pessoa, 70 anos depois (n. 145)
•o•
Atenção: os textos ao lado com títulos entre colchetes são na verdade poemas sem
título.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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LANÇAMENTO
• Música
Surda
- O Livro das Canções
Algum tempo atrás, falei aqui do Música Surda, conjunto musical carioca que
desenvolve um trabalho belíssimo de juntar poesia e canções. O grupo
—
que já musicou poemas de nomes como Camões, Drummond, Cecília Meireles e García
Lorca
— está lançando agora seu primeiro disco, o CD duplo O Livro das Canções.
Data: 19/6, quinta-feira
Hora: 18h30
Local: Teatro Noel Rosa – UERJ
Rua São Francisco Xavier, 524 Maracanã
Rio de Janeiro – RJ
Site do Música Surda:
www.letras.ufrj.br/musicasurda
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“Tenho mais almas que uma”
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Fernando Pessoa |
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• Fernando Pessoa
AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
[O
QUE ME DÓI NÃO É]
O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão...
São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.
São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.
5/9/1933
• Alberto Caeiro
O GUARDADOR DE REBANHOS
I
Eu nunca guardei rebanhos,
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
(...)
8/3/1914
• Ricardo Reis
[VEM SENTAR-TE COMIGO, LÍDIA]
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos
grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente,
pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e
vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da
decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que
crianças.
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
Pagã triste e com flores
no regaço.
12/06/1914
Retrato de Fernando Pessoa, por Almada
Negreiros
• Álvaro de Campos
LISBON REVISITED
(1923)
Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!
Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
[O BINÔMIO DE NEWTON]
O binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.
óóóó--- óóóóóó óóó--- óóóóóóó óóóó óóóó
(O vento lá fora.)
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