Alphonsus de Guimaraens Filho
Caros,
O poeta mineiro Alphonsus de Guimaraens Filho já apareceu neste boletim, na
edição n. 8, há mais de cinco anos. Agora, lamentavelmente, ele retorna de
forma póstuma. Guimaraens Filho nos deixou em 28 de agosto último, aos 90 anos.
Este novo boletim é, portanto, uma homenagem a um escritor
que, desde a já longínqua década de 30, produziu alta e silenciosa poesia. Seus
livros, do inaugural Lume de Estrelas (1935-1939) até Luz de Agora
(1987-1990), estão reunidos no volume Só a Noite é que Amanhece — Poemas
Escolhidos e Versos Esparsos, de 2003.
Afonso Henriques da Costa Guimarães Filho nasceu em 1918 em Mariana, MG.
Jornalista, advogado, nasceu numa família de escritores: filho do poeta
simbolista
Alphonsus de Guimaraens (1870-1921); sobrinho-neto do romancista Bernardo
Guimarães (1825-1884), o autor de A Escrava Isaura; irmão do contista
João Alphonsus (1901-1944); e pai do poeta
Afonso Henriques Neto (1944-).
A obra poética de Alphonsus de Guimaraens Filho desenvolve-se,
em todos os momentos, dentro de um diapasão lírico, muitas vezes marcado pela
influência religiosa de origem católica e por um misticismo sempre presente. Os
dois traços poderiam ser atribuídos à influência do pai, mas esse tipo de
associação pode levar a falsas conclusões. A poesia de Guimaraens Filho, à parte
a coincidência genérica de alguns temas, não é caudatária das criações de
Alphonsus de Guimaraens.
Sonetista dos maiores, o poeta não somente escreveu livros inteiros com textos
nessa forma — Sonetos da Ausência (1940-1943), Uma Rosa Sobre o
Mármore (1953), Sonetos com Dedicatória (1953) —, mas também
incluiu sonetos em quase todos as suas coletâneas. Quando escrevia em versos
livres, tendia ao metro caudaloso, daqueles que muitas vezes não cabem numa só
linha de composição gráfica.
Todos os poemas transcritos ao lado foram extraídos do volume Só a Noite é
que Amanhece, de 2003, já citado.
•o•
A morte do poeta Alphonsus de Guimaraens Filho passou
praticamente em branco pela imprensa. Discreto, o poeta não era desses que fazem
tudo para ser o alvo das câmeras e holofotes. E a mídia pune os que não fazem
com ela o pacto da frivolidade.
Sobre esse assunto, sugiro a leitura do excelente artigo "A
Morte de Alphonsus de Guimaraens Filho e o Nosso Analfabetismo Literário",
do poeta e editor João José de Melo Franco.
É difícil encontrar uma foto de Alphonsus de Guimaraens Filho. Lembro-me de que,
em 2003, ao fazer o primeiro boletim, inseri uma ilustração no lugar da foto. A
imagem no alto desta coluna foi extraída de um fotograma do documentário O
Poeta de Sete Faces, de Paulo Thiago, sobre a vida de Carlos Drummond de
Andrade. Guimaraens Filho aparece lá falando sobre o amigo, autor de A Rosa
do Povo.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
OÙ SONT LES FEMMES POÈTES?
Em 1º de junho de 2005, no boletim n. 119, dedicado à inglesa
Elizabeth Barrett Browning (1806-1861), tornei pública uma pergunta que
sempre fiz a mim mesmo. Reencontrei a pergunta no site e notei que, até agora,
continua sem resposta.
Por isso repito aqui a indagação:
E AS FRANCESAS?
Ao escrever sobre uma escritora inglesa, veio-me à cabeça uma pergunta que
sempre me fiz: por que não se conhece nenhuma poeta francesa?
Por que a terra de Baudelaire, Rimbaud, Verlaine, Mallarmé e Valéry não tem uma
só mulher no primeiro time de sua poesia? Explico: não quero dizer que não
existam poetas francesas. A pergunta é: por que não se conhece amplamente
nenhuma poeta francesa?
Se alguém tiver uma explicação, ou mesmo um bom palpite, conte-me, por favor. |
Só a noite é que amanhece
|
Alphonsus de Guimaraens Filho |
|
À VONTADE
(trecho final)
Não seja por isto, noite.
Melhor é que desças. Com toda a tua treva.
E entre nós — embora ressabiados e feridos — até que poderás ficar à vontade.
Pois de qualquer modo há em ti um frêmito vôo informulado,
grande ave de asas cegas…
Somos teus, como sabes, todos te pertencemos, constrangidos embora.
Mas não seja por isto.
A casa é tua — como nestes domínios é hábito dizer aos amigos —
e poderás ficar à vontade.
De Transeunte (1963-1968)
Com Mário de Andrade, em 1944: recorte
de uma foto do mestre modernista
em Belo Horizonte com um grupo de mineiros. Em cima: Hélio Pellegrino,
Alphonsus de Guimaraens Filho, Otto Lara Resende e Alexandre Drummond.
Embaixo: Oscar Mendes, Mário de Andrade e João Etienne Filho.
(Foto do Arquivo Otto Lara Resende/Instituto Moreira Salles)
NINGUÉM
Ninguém se engane se soar a hora,
se todos os relógios, de repente,
gaguejarem nem sei que dor fremente
que nunca veio e não se foi embora.
Ninguém se engane se souber
quem chora,
que um grande choro convulsivo e quente
virá das coisas como espada ardente
atravessando a carne ontem, agora.
Ninguém se engane se dos seus papéis,
dos seus livros inertes, um lamento
terrível se levante como um vento
de maldição e de intenções cruéis.
Tudo, a este instante, é como um grande grito
quase a romper as cercas do infinito.
De Discurso no Deserto (1975-1981)
XV
Que o amor me possa dar tudo que espero:
a cálida manhã, o aflito, esquivo
carinho, que se faça mais sincero
quanto o meu corpo reclamá-lo vivo...
Que me dê a alegria de uma infância
molhada de um abril fresco e macio.
Que me traga um perfume de distância,
de frutos, flores, sombras quentes, frio...
Que o amor me seja a luz doendo em lentas
oscilações de adeus na montanha...
Que o amor me seja a escada, o meu pomar,
o pouso, as madrugadas friorentas,
o corpo claro, a voz, a febre estranha,
e o reino, e o reino para além do mar...
XVI
Entre os ventos do sul como do norte
lá vou eu, lá vais tu, lá vamos nós.
Dor não existe que não se suporte
e estamos sós, terrivelmente sós...
Agradecemos, sim, tamanha sorte:
a vida passa rápida, veloz...
Quando menos se espera vem a morte
e ouve-se então a prometida voz.
E o mundo ora nos é suave e manso
ou então cruel, bem mais do que agressivo...
Lá vamos nós cantando ou soluçando...
Que importa exista o reino do descanso!
Que importa amar, que importa, morto ou vivo,
ouvir o vento uivando, uivando, uivando...
XXXII
Era um fogo somente. Um fogo frio,
muito lúcido e frio. Entre lembranças,
vi meu corpo perder-se num macio,
leve oscilar de madrugadas mansas.
Vi a casa, o portão. Dormi no rio.
Visitei o caminho. E tive danças
selvagens, cor da lua. Um fogo frio
umedecia o riso das crianças.
Era um fogo, uma brasa, uma fogueira,
uma estrela, talvez. Nele, cansado,
curvei meu corpo doído de agonia
e nada vi senão minha cegueira,
meu grito seco aos poucos deformado,
e a face calma, para sempre fria.
De Sonetos da Ausência (1940-1943)
MARIANA
É como um grande soluço:
Mariana.
São velhas casas pedindo
um pouco de amanhecer.
São velhas casas sonhando...
São velhas casas sonhando...
Parece que vão morrer.
É como um grande soluço:
Mariana.
Navegas por entre luzes
que te recordam, na sombra
dos teus olhos,
um passado dolorido,
um passado que não viste
e que entretanto é bem teu.
Carregas na carne aflita
uma carne que morreu.
E é como um grande soluço
de mil torres,
de paisagens exaustas,
um soluço
sufocado:
Mariana.
De Nostalgia dos Anjos (1939-1944)
"A morte chegou de branco / mas quem a viu não fui eu." (Alphonsus de Guimaraens
Filho). Quadro: The Somnambulist, óleo sobre tela de John Everett Millais
(1871)
A MORTE CHEGOU DE BRANCO
A morte chegou de branco
mas quem a viu não fui eu.
Foi a moça do barranco
que mal a viu se escondeu.
Chegou de branco trazendo
um sopro de terras santas
de rosas castas e rios
onde em claros arrepios
se deita o sonho gemendo...
Chegou de verdes colinas
de longínquos povoados
e tinha toda a pureza
da risada das meninas
das águas virgens das plantas
dos campos mal-assombrados.
Chegou de branco! De branco...
De branco como o silêncio
como as núpcias de branco
como o primeiro suspiro
da moça que no barranco
só por vê-la se escondeu.
A morte chegou de branco
mas quem a viu não fui eu.
De A Cidade do Sul (1944-1948)
PERPLEXIDADE II
Que imperceptível clamor rói as muralhas do tempo?
Quem nos impõe essa expectativa diante do dia que não chega,
essa efusão diante da inércia e da indiferença das coisas,
essa ternura pelo que não se confia,
essa ternura pelo que nunca será senão um breve relâmpago
no fundo dos olhos indormidos?
Por que, nessa viagem através do que resiste,
em torno das fortalezas impenetráveis
onde para sempre resta adormecida a grande resposta,
por que não se revela o que apenas escutamos
como suspiro de vento,
leve suspiro de aragem?
Por que permitem que contornemos as montanhas solitárias
que se erguem dentro de nós, trágicas e altas,
como um silencioso apelo inexorável?
Por que as coisas se conservam assim, esfíngicas e hirtas,
se nelas pressentimos palpitar
o sentido de nossa própria solidão?
PAISAGEM (III)
É tudo muito elementar: dois, três cabritos
pastando na macega; andaimes e argamassa;
as casas! e esta chuva humilde, resignada,
e um céu que ninguém sabe, agora, se é real.
E esta saudade estranha e o latejar sombrio
de asas que se ocultam... E este terrível frio
que nos projeta, agora, em mato e terra, e deita
o nosso grande espanto entre telhados sujos
e a nossa eternidade entre porões de cinza.
XVI
Para os cabos do fim
e os rochedos extremos,
ai! como foi que eu vim
sem barco e sem remos?
Como foi que atingi
esses cabos do engano,
se jamais dantes vi
o seu vulto no oceano,
se naveguei às cegas
sem cuidar aonde ia,
como agora navegas,
alma! na luz do dia?
Eis que alcanço uma paz
que mais longe supunha...
Eis que o vento me traz
a solidão que depunha,
com mãos ríspidas, nos cimos
dos mais altos rochedos.
Eis que o mar, por onde vimos,
nos oferta os segredos
que há milênios se esquecem
nos pélagos mais fundos.
E eis que a voz de outros mundos
(que jamais aparecem)
junto aos cabos do fim
perplexos concebemos...
Como foi que aqui vim,
se eu perdi barco e remos?
De Elegia de Guarapari (1953)
|