Mariana Botelho
Caros,
Às vésperas de completar seis anos de pastoreio poético com este boletim, sinto
que esta página se renova ao apresentar a jovem poeta Mariana Botelho. Mineira
da pequena Padre Paraíso, no Vale do Jequitinhonha, Mariana é formada em
educação física e escreve desde os 12 anos.
"Foi nessa idade que comecei a cultivar o hábito de escrever em agendas e também
a ler poetas como Fernando Pessoa, Vinicius de Moraes e Pablo Neruda", conta
ela. Quem me chamou a atenção para os escritos de Mariana Botelho foi a poeta
baiana
Ana Cecília de Sousa Bastos.
Mariana Botelho é uma poeta da internet. Ela publica seus
escritos no blog
Suave Coisa. O que se destaca, de cara, em seus poemas é a predominância de
procedimentos minimalistas. Em vez de fazer discursos, ela condensa quase tudo
em frases curtas, levíssimas. Nesse tom, a partitura às vezes se aproxima do
haikai, combinando climas subjetivos com movimentos da natureza: "tenho um
outono no corpo / de onde as / coisas / caem".
Os quatro elementos comparecem com forte assiduidade nesses poemas,
especialmente a água. Implícita ou nomeada, ela umedece (e às vezes encharca) a
delicada poesia de Mariana Botelho. "Aquele cheiro de capim chovido", "eu choro
/ pra pertencer à paisagem". "Ficamos ali / eu e meu corpo / cantando a
plenitude do mato /depois da chuva". São poemas com cheiro de terra molhada,
esse odor que o mundo urbano esconde atrás de suas máscaras de concreto e
betume.
Há também uma discreta sensualidade pagã que se insinua nos versos de Mariana,
misturando céus e terra, a poesia no corpo e tudo formando o corpo da própria
poesia: "um poema me deixou um sismo na carne / (...) / e traçou em minhas
costas itinerários de espuma".
Não posso deixar de chamar a atenção para o excelente poema "Persona", que traz
uma epígrafe de Mario Quintana. Libero-me de citar um ou outro trecho desse
texto porque o melhor, mesmo, é apreciá-lo na íntegra.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
LANÇAMENTO
Renata Pallotini
- Chocolate Amargo
A
poeta e teatróloga paulista Renata Pallottini lança seu novo livro de poemas,
Chocolate Amargo, que sai pela Editora Brasiliense.
Data: 1/12, segunda-feira
Hora: 19h00
Local: Livraria Cultura - Paulista
Av. Paulista, 2073
Conjunto Nacional - Térreo
São Paulo – SP
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Cheiro de terra molhada
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Mariana Botelho |
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ABSTRATO
eu nunca beijei um poema.
no entanto ele está aqui
roçando leve minha
boca
nas horas dos
mais
doídos
silêncios
ATO
um poema me deixou um sismo na carne
me arqueou o corpo
e traçou em minhas costas itinerários de espuma.
com um gosto de cor
na boca
deixei cair pulsante
um
longo beijo
morno
RESISTÊNCIA
um pote cheio
do furor que escorria dos teus olhos
guardei
porque gastamos todas
as nossas mãos
e restou inteiro
esse sentimento
enrugado
que não
passa
INTIMIDADE
um pequeno itinerário de passos
uma claustrofobia acariciada
gente que todo dia me bate
à porta e entrega-me os
cílios meus que encontraram
na calçada...
o dedinho de uma linda preta
com quem dividir os cílios caídos
com quem dividir o medo
de não sobreviver e de sofrer
a violência das crianças na escola.
aquela voz grave todas as manhãs
todas as manhãs
aquele cheiro só
aquele cheiro de capim chovido
os olhos negros do meu pai
e uma cidade íntima
soluçando dentro de mim.
CESARIANA
para Pedro
seus pequenos olhos
cor de aurora represada
ainda que um dia se afastem
ficarão
nessa pequena cicatriz
[OS OLHOS DE MEU PAI]
os olhos do meu pai fincaram em mim duas colunas de óleo negro
buscando retalhos de amanhecimento
em vão
nada digo
que seja digno de claridade
NASCENTE
córrego
cachoeira
ribeirão
eu choro
pra pertencer à paisagem
ÁGUA
Água.
fui sentir o cheiro de
terra molhada.
ficamos ali
eu e meu corpo,
cantando a plenitude do mato
depois da chuva.
Água.
me amei.
[TUDO O QUE ME RESTA]
tudo o que me resta é dizer de um corpo que chora à margem de
[ um rio
esperando a sede.
porque a palavra me pega de dois jeitos:
de um jeito que não basta sabê-la;
de um jeito que me come.
tudo o que me resta é dizer de um corpo que chora à margem
esperando a sede
enquanto ouve a palavra: água
[TANTA COISA]
tanta coisa que fala no corpo
cala
na pequenina poesia
COISA QUE ME OCORREU DE REPENTE
a poesia se derrete nas mãos do poeta
como gato que ele afaga
a poesia queima nas mãos do poeta
como um fogo que ele alimenta
a poesia afoga as mãos do poeta
é um copo do oceano que ele mesmo inventa
o poeta é um mar de si mesmo.
[O SILÊNCIO]
o silêncio tange o
sino de tão
leve ninguém
escuta
PERSONA
o poema
essa estranha máscara
mais verdadeira do que a própria face
Mario Quintana
não é isso o que somos mas é assim que resistimos
porque fingimos que fingimos
empurramos nossos barcos contra as marés da aurora
para que a noite não passe
e continuemos despidos
ESTAÇÃO
tenho um outono no corpo
de onde as
coisas
caem
vejo doçura nas roupas
espalhadas
pelo
chão
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