Amélia Alves
Caros,
Poeta e educadora, Amélia Alves nasceu em Campos
dos Goytacazes, RJ, onde se graduou em letras. Tambem lá, foi co-fundadora do
grupo Uni-Verso, pelo qual publicou seu livro de estréia Vácuo e Paisagem
(poesia e prosa poética) em 1978.
Além de participar de várias coletâneas, como a Antologia da Nova Poesia
Brasileira, organizada por Olga Savary (Rio de Janeiro, Fundação
Rio/Hipocampo, 1992), Amélia Alves publicou em 2005 seu segundo livro-solo: Atrás
das Borboletas Azuis. Tive a oportunidade de ler alguns poemas dessa última
coletânea e também uma série de outros publicados em sites e blogs. Dessas
leituras fiz a seleção para este boletim.
Firmemente telúrica e enraizada na paisagem, a poesia de
Amélia Alves não tira os pés do chão. Há em seus versos algo como o espírito do
blues, que transforma em arte a crônica do dia-a-dia. Desse modo, poemas como
"Açúcar" e "Confidência" refletem a experiência da autora em sua cidade natal,
numa área em que predomina a cultura da cana-de-açúcar.
"Nasci em Campos. /(...) / Por isso sou fluida / como o melado / escorrido entre
ferros / e mãos encardidas de sol / e escravidão", escreve ela em "Confidência".
Outro autêntico blues é "Cilada", poema em que o narrador discorre sobre sua má
sorte e segue, "sem noite nem seita", sabendo que há lobos de tocaia no caminho.
Esse poema me traz à lembrança um blues clássico,
Born under a bad sign, gravado originalmente por Albert King em 1967.
Ainda em relação ao vínculo entre verso e realidade, vale ressaltar o poema
"Bordado". O texto começa descrevendo o planejamento do trabalho de agulha "no
macio do pano branco". Mas essa cadência suave é logo quebrada. Depois da
imaginação, vem o "risco duro" do lápis para impor "premeditadas paisagens".
E essas paisagens também não são neutras e bucólicas. Nelas, desenham-se
indícios de sustos, palavras acorrentadas, os dedos dormentes da própria
bordadeira e a estafa do trabalho no campo.
A poesia de Amélia Alves enxerga a vida que está além dos alvos bastidores do
bordado.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
Um pequeno pós-escrito.
Curioso: afirmei que a poesia de Amélia Alves me sugeriu cadências e emoções
dessa música doída e existencial que é o blues americano, primo de sangue e alma
dos sambas-canções de Cartola ou Nelson Cavaquinho. E eu nem me dera conta de
que entre os poemas da autora há um soneto que, sintomaticamente, se chama
"Blues".
•o•
ERRATA
No boletim anterior, "Poemas
diante do espelho", cometi dois erros de transcrição no poema de Paul
Éluard. Primeiro, a palavra mouvement apareceu sem o u. Depois, o verso
L'oiseaux s'est confundu avec le vent também apareceu truncado. No site
Alguma Poesia, o texto já foi corrigido. Agradeço os toques do poeta Ruy
Espinheira Filho, Salvador-BA, e da jornalista Flávia Gouveia, de Campinas-SP.
•o•
CRÉDITOS ETC.
Como até leitores que acompanham o boletim há algum tempo não observaram, vale a
pena lembrar:
• Os
dados bibliográficos dos
poemas citados nos boletins (inclusive das frases ou versos usados como
epígrafe *) sempre aparecem no rodapé do lado direito da página.
• As
fotos e ilustrações estão
creditadas nelas próprias (passe o mouse sobre elas) e, em alguns casos,
também no rodapé direito.
• Eventualmente, o
rodapé esquerdo é utilizado para créditos de fotos ou outros itens incluídos no
texto de apresentação.
•o•
ORTOGRAFIA
Enquanto não se definirem com clareza os critérios do novo acordo ortográfico,
este boletim não o adotará. Aproveito para dizer que não vejo nenhum benefício
(ou explicação) nessa mudança. De tudo que já li, ficou-me apenas que o objetivo
único do acordo seria a unificação da escrita em todos os países de língua
portuguesa. Só isso? Parece uma bobagem. Não existe, por exemplo, nenhum acordo
de unificação entre Inglaterra e Estados Unidos. Ingleses escrevem labour;
americanos, labor. E daí?
Do mesmo modo, quem é alfabetizado, não encontra problema nenhum, por causa da
grafia, ao ler Saramago, Mia Couto, Fernando Pessoa. Do outro lado, os
portugueses, angolanos, moçambicanos etc. também lêem muito bem autores
brasileiros. (Neste boletim, sempre que transcrevo textos portugueses, mantenho
a grafia original.)
Ainda não encontrei nenhum argumento que me convença das vantagens dessa
unificação. No entanto, estou mais do que convencido dos prejuízos dela. Vocês
já pararam para pensar nos custos de substituir todo o acervo bibliográfico das
escolas fundamentais no Brasil inteiro? Isso sem contar a perda de tempo
com um reaprendizado inútil — e piorado com o fato de que, até agora, os
mandarins da língua não definiram direito a grafia de uma série de palavras,
especialmente entre as que têm ou deixam de ter o hífen.
Dois exemplos de como a nova ortografia — que, com razão, até hoje ainda não foi
verdadeiramente engolida pelos portugueses — desfigura as palavras, confunde e
atrapalha a leitura. Observem estes exemplos:
• coprodutor (antes, co-produtor)
• autorretrato (antes, auto-retrato)
Na primeira, o que se lê, de saída, é copro-dutor. Parece algo como um cano de
esgoto. E a outra palavra, teria alguma coisa a ver com retrato do autor?
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Sob o signo do blues
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Amélia Alves |
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BORDADO
A noção do traço
sugerindo a presença da linha
e o manejo da agulha
sendo
cadência
após cadência
no macio do
pano branco
pra depois haver o risco duro de premeditadas paisagens
onde matizes de fumaças
dizem de sustos
sortes
da palavra acorrentando-se
do desenho escapulindo entre dedos dormentes
da pá
do pó
do pé
violentando caminhos
da propalada
paz de papel
dessa vontade
de viver
entre-mentes,
humana-mente.
..."e o manejo da agulha / sendo cadência / após cadência /
no macio do pano
branco" (Amélia Alves)
— Ilustração: bordado da ilha da
Madeira
AÇÚCAR
é verde e veio
de cana caiana
sangrando
o suco operário
de muitos suores
e caldos
melados
fermentos
cachaça
melaço
e canaviais
roçados
de calos
nos pés e nas mãos
e bóia fria
marmita
— aceiros intermináveis
e joios e pedras
e foices
e folhas secas
estalando miséria.
FOGO-FÁTUO
A vida que se pariu
força da natureza
se dando
naturalmente
não constrói
uma apologia
ao mito morto
após as guerras.
É antes epígrafe,
dedicatória e lápide
(ao herói anônimo)
inscrita
no mapa–documento
(adubo)
da terra
por onde prensou
seus ossos.
CONFIDÊNCIA
A Drummond
Sou de Campos.
Por isso sou áspera
como a textura
da folha da cana.
Nasci em Campos.
Por isso sou plana
tal a plenitude
da planície.
Sou planície.
Por isso sou fluida
como o melado
escorrido entre ferros
e mãos encardidas de sol
e escravidão.
Sou moenda.
Por isso sou seca
como o bagaço
largado pelos currais.
Sou dos Campos dos Goytacazes.
Por isso quero beira de rio — Paraíba,
e vento nordeste
assanhando a cabeleira
dos canaviais.
CILADA
Embaixo da escada, passei várias vezes,
por malquerer e sorte
— desavisada.
E depois, sem mais que nada,
por dor, paixão e morte,
inscrevi destino e sina — reveses.
Recebi do azar dotes e porte,
em primeira mão,
de sim em sim e não em não.
E fui seguindo, sem noite nem seita,
varando a madrugada,
embora sabendo de uivos e lobos, à espreita.
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