Dantas Mota
Caros,
José Franklin Massena de Dantas Mota (1913-1974), nasceu em Carvalhos, na época
município de Aiuruoca, no sul de Minas. Formou-se em 1938 na Faculdade de
Direito da Universidade de Minas Gerais e exerceu a advocacia tanto em sua
região natal como no Vale do Paraíba. Viveu sempre em Aiuruoca, mas mantinha
contato com escritores no Rio, São Paulo e Belo Horizonte.
Amigo de Carlos Drummond de Andrade, com quem se correspondia e encontrava
esporadicamente, Dantas Mota desenvolveu uma poesia sui generis. Leitor
da Bíblia e redator afeito às lides jurídicas, ele desenvolveu com essas
influências uma poesia que tem às vezes um tom cerimonial e profético, mas
fundamente arraigada no solo mineiro. Há também em sua poesia um misto de
linguagem caipira e arcaizante, como se pode constatar em versos do poema "Solar
de Juca Dantas": "A noite com suas lenternas e seus ladrões, /
Terramotos e valhacoutos" (os grifos são meus).
Dantas Mota é um autor único. O que escreveu não tem similar, nem antes nem
depois dele. Aparentemente, não seguiu nenhum outro poeta, nem deixou
seguidores. Para Drummond, seu "verso mais característico" é o das Elegias do
País das Gerais, de 1961, também considerado por Alfredo Bosi o melhor livro
do vate de Aiuruoca.
Os poemas e as informações biobibliográficas apresentadas neste boletim foram
extraídos do volume Elegias do País das Gerais. Não se trata, porém, do
volume publicado em 1961, mas da poesia completa do autor, reunida em 1988 numa
co-edição da José Olympio com o Instituto Nacional do Livro. As observações de
Drummond sobre Dantas Mota também estão nesse livro. Agradeço ao poeta e amigo
Gilberto Tadeu Nable, também natural de Aiuruoca e contraparente de Dantas
Mota, a gentileza do envio dessa poesia completa.
"Sua poesia sempre me deu idéia de solidão", diz Drummond. De
fato, é um sentimento de solidão e desconsolo que parece guiar o olhar de Dantas
Mota para as pessoas e coisas do interior mineiro, ou mesmo para os viventes de
outras cidades, como São Paulo e Belo Horizonte. Ao desconsolo soma-se a revolta
diante dos desacertos do mundo. Que outro sentimento poderia levar um poeta a
escrever suas famosas epístolas?
Além de uma carta escrita por São Francisco (não o santo, o rio), que faz parte
das Elegias de 1961, ele produziu suas duas célebres epístolas de
Tiradentes. Os títulos são reveladores: Primeira Epístola de Jm. Jzé. da Sva.
Xer. -- o Tiradentes -- aos Ladrões Ricos, de 1967; e Segunda Epístola do
Tiradentes Apóstolo ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Sñor Capitão-General de Mar
& Terra Destes Povos do Brasil.
Nesses livros, Dantas Mota, como diz Drummond, "quebra todos os compromissos com
a palavra ritmada para soltar apenas o palavrão retumbante e definitivo". De
fato, são livros em que o poeta expele um desabafo de revolta. Numa expressão
que combina texto jurídico com sermão religioso, ele usa o mártir da
Independência para invectivar as injustiças do presente.
No texto que serve de introdução às Elegias, Drummond
também conta que Dantas devia sentir-se muito ligado ao Tiradentes, uma vez que
descendia do capitão e guarda-livros Vicente Ferreira da Mota, um dos condenados
da Inconfidência. O crime desse guarda-livros foi manter silêncio: não contou às
autoridades que Tiradentes conspirava. Foi sentenciado a 10 anos na África e, ao
que se sabe, morreu por lá.
Neste abril em que se relembram os inconfidentes e a figura do Alferes, aí vai
um pouco da solidão e da justa indignação do poeta Dantas Mota.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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LANÇAMENTO
José Geraldo Neres
• Outros Silêncios
O
poeta e divulgador cultural José Geraldo Neres lança a coletânea de poemas
Outros Silêncios, que sai pela Escrituras Editora. No evento, haverá a
leitura de poemas do livro, além de apresentações de dança e música.
Data: 15/4, quarta-feira
Hora: 18h30 às 21h30
Local: Livraria Martins Fontes
Av. Paulista, 509
São Paulo – SP, tel. (11) 2167-9900
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Elegias do País das Gerais
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Dantas Mota |
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SOLAR DE JUCA DANTAS
6.
Tarde já. Os fruitos e as crianças possuíam,
Nas primaveras frustras que então passei a ser,
Um sabor de saudade no mendigo que hoje sou,
A despeito de transunto de velhas glórias
E humanas lidas. E da caspa em desuso
Que pontilha de grisalho meus ombros chovendo,
Dando ao título de doutor de Sião
Este ar deficitário de despesa,
Que busca, na ausência de terras e de teres,
E na paciência com que suporto outros coronéis,
O sentido de sua própria escravidão.
Deste mundo não sou. E nem lhe temo a noite.
A noite com suas lenternas e seus ladrões,
Terramotos e valhacoutos.
Temo sim o dia que dela nasce,
E com ele a burra de dinheiro, agasalhada e fiel,
Cheia dos terrores noturnos de ontem,
Contendo, ensimesmadas, as mesmas manhãs,
Plásticas e portáteis de hoje,
E em que se enfeixam, de uma só vez,
O gado, a servidão de passagem, a infância,
O luto, a vida e o direito de chorar.
De Elegias do País das Gerais (1961)
"Alma,/ Pássaro solitário, / Como é difícil abranger-te!"
Quadro: Eleazar Saenz,
Wind Singer
CANÇÃO DO EXÍLIO
Alma,
Pássaro solitário,
Como é difícil abranger-te!
Nem sei como defender-te,
Incomensurável que és.
Num só crepúsculo,
Passeias todas as paisagens,
Visitas todas as terras,
E te recolhes triste
À morada que te serve
De cárcere...
De Planície dos Mortos (1945)
CANÇÃO DA CASA VAZIA
I
O tempo parou e frio, lá fora,
é o sol das almas.
Verdadeiramente falando, este não é um tempo de...
preparação. Antes,
de quaresma e envelhecimento.
Exemplos: da cal nas paredes,
da moldura nos retratos,
das cadeiras nas salas,
do verniz nos móveis,
das construções nos prazos antigos,
da chuva nas calhas,
até mesmo da dor no corpo morrendo
Março Março Março: Pai,
olha, lá fora, como o vento do outono
brinca com as roupas nos varais!
II
O sol ainda não esquentou de vez, Pai,
Porém, se o sol se esquentar de vez,
As quaresmas lá fora se salientarão tanto,
Que a gente sentirá a tristeza da agonia,
A despedida da Terra.
Principalmente, Pai,
Se as cigarras derem de cantar.
De Esparsos
BREVIARIUM DE FREI JEREMIAS
Está amanhecendo o dia, minha amiga!
E os nossos sentimentos tão iguais!
Tão longas as nossas dores,
Tão breves os nossos risos.
Paira em tudo uma indecisão amarga
E eu não sei o que fazer
Nesta manhã tão clara, tão branca,
Em que as névoas são inúteis,
Os passarinhos proverbiais.
O sol, que nasceu ontem,
É o mesmo de hoje e será o mesmo
De amanhã, de depois, de depois.
Só nossos corpos em nossas almas
Se mudarão e com eles o mundo
Que é tão vasto e, entanto,
Não comporta minhas tristezas,
Minhas alegrias. Está amanhecendo!
O sono da noite, que correu bravia,
Não comporta os trabalhos do dia
E este sofrimento afinal não é tão breve.
Certo, amanhã morreremos e eu não deixarei
Mais fundas lembranças que não os teus
Outonos sobre as memórias repetidos,
Nem outro bem que não a amargura
De ter vivido.
Os amigos de São Paulo, Rio,
Belo Horizonte,
Pensam que este riso é meu,
E com eles até Israel, em Irati,
No Paraná.
Mercedes, porém, apesar de estúpida,
Sabe-o apenas um disfarce
Com que oculto esta tristeza,
Esta dor.
De Planície dos Mortos (1945)
"nas pensões mais imorais / há sempre um Cristo manso falando à Samaritana"
Quadro: Van Gogh, O Bordel (1888)
NOTURNO DE BELO HORIZONTE
O chope não me traz o desejado esquecimento
Os insetos morrem de encontro à lâmpada
Ou se açoitam no sofrimento destas rosas secas.
Vem do Montanhês este ar de farra oculta,
Bem mineira, e um trombone, atravessando
A pensão "Wankie", próxima à Empresa Funerária,
Acorda os mortos desolados na Rua Varginha.
Uma lua muito calma desce do Rola-Moça
E se deita, magoada, sobre os jardins da Praça,
O telhado do Mercado Novo, o bairro da Lagoinha.
Tísicos bóiam que nem defuntos na solidão
Dos Guaicurus. O próprio noturno de Belo Horizonte
Tem lá suas virtudes: nas pensões mais imorais
Há sempre um Cristo manso falando à Samaritana.
As mulheres do Norte de Minas, uma de Guanhães,
Duas de Grão-Mogol e três da cidade do Serro
Mandam ao ar esta canção intolerável
Que aborrece até mesmo o poeta Evágrio.
Pobre Evágrio, perdido na estação de Austin.
Triste e duro como uma garrafa sobre a mesa.
Entanto nada indica haja tiros, facadas, brigas
De amantes na Rua São Paulo, calma e sem epístolas.
O Arrudas desce tranqüilo, grosso e pesado,
Carregando cervejas, fetos guardados, rótulos de
Farmácia, águas tristes refletindo estrelas.
Tudo, ao depois, continuará irremediavelmente
Como no princípio. Somente, ao longe,
Na solidão de um poste, num fim de rua,
O vento agita o capote do guarda.
De Planície dos Mortos (1945)
NOTURNO PAULISTANO N° 1
No Madrugada's Bar ou no Bar Madrugada.
Entre a noite que veio e ela que não vem
E esta lua negra, de papelão, à parede,
As garrafas, sobre a mesa,
Formam um campo de petróleo.
A triste mulher da vida — Nilda —
Esculacha, bem em frente a mim,
O tango argentino intitulado A media luz.
As considerações, cada vez mais sábias,
E sombrias, à medida que a bebida
Vai aumentando o poder de certas dores,
Secretas e violáveis, contudo impublicáveis,
Provam apenas que o mundo continua,
E que as desgraças, como as despesas,
Inevitáveis, são sempre inúteis e iguais.
De Inéditos (1959)
TIRADENTES SOBE AO PATÍBULO
PRETENDE FALAR, NÃO O DEIXAM
SOFRE 3 SERMÕES
35. Jm. Jzé. da Sva. Xer.
dá entrada no LARGO DA LAMPADOSA,
e como que possuídos de furor histero-religioso,
os padres da Comunidade do Convento de Santo Antônio,
aumentando as suas vozes,
alteiam-n'as com a Recitação da Oração dos Agonizantes.
36. Subindo, rápido, ao patíbulo de 24 degraus,
Tiradentes quis falar.
Não o deixaram,
Sinal próprio das épocas em que os outros têm medo
da liberdade.
Deram-lhe, porém, ao invés da fala,
água, pois que suava com abundância.
Recusou-a.
Pediu que apressassem o bárbaro espetáculo.
Prolongaram-n'o.
1º — com dois sermões
2º — com o recitativo do Eu Pecador
3º — com a encomendação do seu corpo ainda vivo.
De Primeira Epístola de Jm. Jzé. da Sva. Xer. — o Tiradentes —
aos Ladrões Ricos (1967)
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