«O teu silêncio é uma nau
com todas as velas pandas...» (Fernando
Pessoa) *
Carlos Drummond de Andrade
Caros amigos,
O poesia.net está de volta! E para marcar o retorno, nada melhor que
voltar ao começo. Em setembro de 2002, enviei pela primeira vez uma página de
poesia por e-mail. O poeta era Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), que então
completava 100 anos de nascimento. Neste 31 de outubro, 109º aniversário do
poeta, o poesia.net volta a circular.
Jornalista durante décadas — desde "os anos a.C. de
1920", como escreveu certa vez —, Drummond promoveu em
seus textos um inusitado cruzamento de fatos da vida cotidiana com a expressão
poética. Nesse aspecto, tanto sua poesia tirou proveito da escrita jornalística
como seus trabalhos publicados em jornal ficaram profundamente marcados pela
poesia.
Seria fácil citar um bom número de poemas drummondianos que assumem traços
jornalísticos. Mas o objetivo aqui é destacar o outro lado: como Drummond levou
a poesia para as páginas do jornal. Na condição de jornalista profissional,
Drummond escreveu crônicas durante 30 anos ininterruptos, de 1954 até 1984
— os primeiros 15 anos no Correio da Manhã e os
restantes no Jornal do Brasil.
Às vezes, a crônica vinha em versos. Em certos casos, a forma poética era usada
apenas para dar ao texto um sabor jovial que talvez não fosse alcançado em
prosa. Em 1966, a cantora Nara Leão (1942-1989) fez declarações públicas
que desagradaram os militares governantes do país. Acreditou-se que a
jovem bossa-novista seria presa. Em 27/05/1966, Drummond publicou este "Apelo"
dirigido ao marechal Castello Branco, o presidente-ditador:
Meu honrado marechal / dirigente da nação, / venho fazer-lhe um apelo: / não
prenda Nara Leão (…) A menina disse coisas / de causar estremeção? / Pois a voz
de uma garota / abala a Revolução? / / Narinha quis separar / o civil do
capitão? / Em nossa ordem social / lançar desagregação? / / Será que ela tem na
fala, / mais do que charme, canhão? / Ou pensam que, pelo nome, / Em vez de
Nara, é leão? (...)
E termina assim: Nara é pássaro, sabia? / E nem adianta prisão / para a voz que, pelos ares, /
espalha sua canção. // / Meu ilustre marechal / dirigente da nação, / não deixe,
nem de brinquedo, / que prendam Nara Leão.
Com versos bem simples e uma rima pobre e única
— em ão
—, o poeta trata o
assunto com leveza, como se estivesse falando de algo sem importância. Afinal,
era "a voz de uma garota" contra o poder dos canhões. Nara não foi presa.
O apelo em favor de Nara Leão é apenas uma crônica, datada e literariamente
despretensiosa. No entanto, muitos poemas que estão entre os mais celebrados de
Drummond também vieram do jornal. Cito dois exemplos. Um é "O
homem; as viagens", que saiu originalmente no Correio da Manhã, em
1969 e depois no livro As Impurezas do Branco (1973). O outro é "Adeus
a Sete Quedas", publicado no JB em 07/10/1982 e, que eu saiba, ainda
não divulgado em livro. [Este boletineiro orgulha-se de ter sido o primeiro a
desencavar esse "Adeus" numa velha coleção de jornais e publicá-lo no site
Alguma Poesia em 2002.]
Em "O homem; as viagens", o tema é a corrida espacial, que representava nos anos
60 e 70 uma das facetas da Guerra Fria e da competição americano-soviética. Em
vez de celebrar a conquista da Lua, o poeta apresenta ao leitor de jornal uma
reflexão mais funda: não adianta muito explorar o espaço se aqui no chão não
praticamos sequer a "alegria de con-viver".
O poema "Adeus a Sete Quedas" foi estampado em letras grandes ocupando uma
página inteira do jornal. Emocionado e forte, é um registro da destruição do
Salto de Sete Quedas, publicado às vésperas do fechamento das comportas para a
formação do lago de Itaipu. "Sete quedas por nós passaram, / e não soubemos, ah,
não soubemos amá-las".
Outro exemplo de poema-crônica encontra-se em "Os pacifistas", que apareceu
originalmente em 28/10/1962 no Correio da Manhã. Os pacifistas são homens
mal vestidos que se sentam nos bancos de jardim da Cinelândia, no Rio de
Janeiro, e ficam a ver as pombas catando milho.
É proveitoso lembrar que esse poema foi publicado numa época de recrudescimento
da Guerra Fria. Um ano antes, ocorrera o episódio da Baía dos Porcos, em Cuba,
quando cerca de 1400 exilados cubanos, apoiados pelos Estados Unidos, tentaram
invadir a ilha socialista de Fidel. Em 14 de outubro de 1962
— o poema é do dia 28
—, os EUA publicaram fotos de um vôo secreto sobre
Cuba que indicavam a existência de abrigos para mísseis nucleares soviéticos.
Desencadeou-se a chamada Crise dos Mísseis, um momento de delicada tensão entre
as duas superpotências. Ninguém duvidava de que uma guerra atômica poderia
estourar a qualquer hora. É nesse contexto que os homens mal vestidos do parque
são chamados de pacifistas e considerados os melhores de seu tempo. Afinal, no
meio de uma conturbação mundial, eles "não transportam a guerra n’alma / não
vendem ódio, não tocaiam / nem sofismam quem tem razão / entre sem-razões deste
instante".
Como se vê, é a notícia transformada em combustível para a alta criação poética.
Não sei se outro cronista já havia antes usado o expediente de se expressar em
versos. De todo modo, Drummond parece ter inventado esse gênero híbrido, o
poema-crônica, um formato que ele mesmo chamou de "versiprosa". Reparem que era
um raro — talvez único —
caso de grande poesia chegando ao público. Observe-se que ele escrevia em
jornais de grande circulação do Rio e seus textos muitas vezes eram republicados
em periódicos regionais.
Outro viés jornalístico da poesia drummondiana aparece nas memórias. É verdade
que toda a obra do poeta, desde o livro inaugural, é marcada pelo memorialismo.
"Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. / Minha mãe ficava sentada cosendo".
("Infância, em Alguma Poesia, 1930). Aí está a memória. O próprio poeta
reconhecia essa inclinação. No soneto "Remissão" — de
Claro Enigma (1951) —, ele diz, falando consigo
mesmo: "Tua memória, pasto de poesia".
Mas não me refiro de forma genérica aos poemas calcados em lembranças do poeta.
Refiro-me a outra invenção drummondiana: uma poética da memória apresentada em
três volumes e também nascida das crônicas em jornal. São histórias pessoais,
rememorações que vão desde a vida em Itabira-MG, a terra natal do poeta, no
início do século passado, até as experiências juvenis em Belo Horizonte nos anos
20.
Esse exercício da memória está contido nos volumes Boitempo (1968),
Menino Antigo – Boitempo-II (1973) e Esquecer para Lembrar – Boitempo-III
(1979). Na Poesia Completa, publicada pela Editora Nova Aguilar em 2003,
os três volumes aparecem num bloco único com o título Boitempo. Aí, o
bloco boitempiano ocupa por volta de 300 páginas.
Em minha opinião, os boitempos de Drummond são o equivalente dos escritos de seu
amigo e também mineiro
Pedro Nava, que conquistou grande notoriedade com seis volumes de memórias,
publicados de 1972 a 1983. O que um fez em versos o outro desenvolveu em prosa. Quem se
aproxima dessas duas obras obtém, além do prazer da leitura, a envolvente
informação de como se vivia (e até como se falava) naqueles antigamentes.
"Abença papai, abença mamãe. / Deus te abençoe. Não vá se esquecer / de arear os
dentes e lavar os pés / antes de deitar. / Sim senhora. E não vá dormir / sem
rezar um padre-nosso, três ave-marias, / uma salve-rainha." (...)
É assim que começa o poema "Noturno", de Menino Antigo.
Nava e Drummond não contam apenas o que viram. Falam também do que ouviram, o
que torna seus relatos muito mais ricos. Como amostras de Boitempo,
selecionei alguns poemas. O primeiro, "Tempo ao Sol", foi escolhido porque me
parece manter certo parentesco com "Os Pacifistas". São também homens sentados.
No caso, velhos negociantes do interior, já cansados do ofício.
Em "A Tentação de Comprar", de Boitempo-III, o lugar é a Belo Horizonte
dos anos 20. O poema trata da inauguração da loja Parc Royal, com as últimas
novidades de Paris e a inoculação do protovírus do consumismo "no solo imáculo
de Minas", como diz ironicamente o autor.
Vêm, a seguir, os poemas "Cortesia" e "Dodona Guerra", respectivamente de
Boitempo e Boitempo-II. No primeiro, o poeta destaca uma regra de
etiqueta, que era o cumprimento com o chapéu. No outro, uma figura universal das
cidades do interior, o louco — no caso, a louca
—, que serve de diversão para a maldade dos moleques.
Por fim, "A Moça Ferrada", de Boitempo-III, texto em que o poeta compara
a maledicência popular interiorana a uma marca de ferro em brasa.
O Instituto Moreira Salles lançou a iniciativa de
criar, a partir deste ano, o Dia D – Dia Drummond, em 31 de
outubro. A idéia é estimular a realização de encontros, leituras e outras
atividades culturais, um pouco nos moldes do que se faz na Irlanda em 16 de
junho, comemorando o Bloomsday, em homenagem ao escritor James Joyce. O nome
deriva de Leopold Bloom, o protagonista de Ulysses, romance cuja ação
transcorre num único dia, 16 de junho de 1904.
Uma boa iniciativa para
saudar nosso maior poeta.
Crônica. Memória. Poesia.
Carlos Drummond de Andrade
OS PACIFISTAS
Na Cinelândia, pela tarde,
em bancos vulgares e amigos,
sentam-se homens mal vestidos.
Não mostram pressa de voltar
para casa ou para o trabalho.
Sentam-se em honra de uma vida
que vige dentro de suas vidas
corriqueiras, pardas e tristes,
e lá ficam a ver as pombas
em torno à estátua de Floriano
catando milho distribuído
por um deus amigo das aves,
o deus que no baixar à Terra
preferiu o simples disfarce
de empregado administrativo.
Bicam as pombas, esvoaçam
por entre mármores do Teatro,
do Museu e da Biblioteca,
não que lhes interessem óperas,
livros, telas, artes humanas.
Brincam as pombas: pena, cor,
lampejo entre árvores, tranqüilo
ser-existir infenso ao trágico
mundo que se foi modelando
entre gritos, gagos regougos,
lágrimas, cóleras, solércias,
à custa do mundo essencial.
Libertados de todo peso,
deixam-se os homens existir
desprevenidos junto às pombas.
Silenciosos e circunspectos,
são talvez os homens melhores
de nosso tempo assim parados.
Não pleiteiam bens ou poderes
mais que o bem e o poder de um banco
alteado no chão de pedrinhas.
Não transportam a guerra n’alma,
não vendem ódio, não tocaiam
nem sofismam quem tem razão
entre sem-razões deste instante.
O vôo não viajeiro basta-lhes
para alimento das retinas
e, ao mirar as pombas, remiram
uma harmonia que perdemos.
Na Cinelândia, aves e homens
redescobrem a paz, em vida.
Correio da
Manhã, 28/10/1962 - Versiprosa (1967)
Clique
no alto-falante para ouvir "Os Pacifistas"
na voz do próprio Drummond.
Nota: Drummond lê o verso "desprevenidos face às pombas". No entanto, na
Poesia
Completa, essa linha aparece como "desprevenidos junto às pombas".
"Silenciosos e circunspectos, são talvez os
homens melhores de nosso tempo"
TEMPO AO SOL
Sentados à soleira tomam sol
velhos negociantes sem fregueses.
É um sol para eles: mitigado,
sem pressa de queimar. O sol dos velhos.
Não entra mais ninguém na loja escura
ou se entra não compra. É tudo caro
ou as mercadorias se esqueceram
de mostrar-se. Os velhos negociantes
já não querem vendê-las? Uma aranha
começa a tecelar sobre o relógio
de parede. E o sagrado pó nas prateleiras.
O sol vem visitá-los. De chapéu
na cabeça o recebem. Se surgisse
um comprador incostumeiro, que maçada.
Ter de levantar, pegar o metro,
a tesoura, mostrar a peça de morim,
responder, informar, gabar o pano...
Sentados à soleira, estátuas simples,
de chinelos e barba por fazer,
a alva cabeça movem lentamente
se passa um conhecido. Que não pare
a conversar coisas do tempo. O tempo
é uma cadeira ao sol, e nada mais.
De
Menino Antigo (Boitempo-II), 1973
A TENTAÇÃO DE COMPRAR
Com anúncios de página inteira
(coisa nunca vista nos sertões)
inaugura-se na Rua da Bahia
o fabuloso Parc Royal.
Três andares das mais finas futilidades
vindas diretamente da Rue de la Paix.
Seu Teotônio Caldeira, gerente,
manipula novas técnicas de vender.
As virgens loucas compram compram compram.
e as mães das virgens loucas, outro tanto.
Pais de família, em pânico,
vêem germinar no solo imáculo de Minas
a semente de luxo e desperdício.
Nada podem fazer, cruzam os braços:
O Parc Royal tem como padroeira
nada menos que Nossa Senhora da Conceição.
― Meu pai, posso botar na sua conta
três camisas de seda, um alfinete de gravata?
― Até você, meu filho, até você?!
De
Esquecer para Lembrar (Boitempo-III), 1979
CORTESIA
Mil novecentos e pouco.
Se passava alguém na rua
sem lhe tirar o chapéu
Seu Inacinho lá do alto
de suas cãs e fenestra
murmurava desolado
― Este mundo está perdido!
Agora que ninguém porta
nem lembrança de chapéu
e nada mais tem sentido,
que sorte Seu Inacinho
já ter ido para o céu.
De
Boitempo, 1968
DODONA GUERRA
Dodona
Guerra.
Guerra
a Dodona.
Pedra
na telha
pedra
na cara
pedra
na alma.
Dodona
louca,
loucos
moleques
contra
Dodona.
Dodona
eterna
fera
enjaulada
uiva
às pedradas,
amaldiçoa
cada moleque
cada família
pedradamente.
De
Menino Antigo (Boitempo-II), 1973
Vídeo: o poema "No Meio do Caminho", de Drummond, lido em doze idiomas
A MOÇA FERRADA
Falam tanto dessa moça. Ninguém viu,
todos juram.
Cada qual conta coisa diferente,
e todas concordantes.
Dizem que à noite, ela. Ela o quê?
E com quem? Com viajantes
que somem sem rastro
gabando no caminho
os espasmos secretos (tão públicos) da moça.
Sobe a moça
a ladeira da igreja
para a reza de todas as tardes.
De branco perfeitíssimo,
alta, superior, inabordável
(luxúria de mil-folhas sob o véu,
murmura alguém).
À noite é que acontecem coisas
no quarto escuro. Ganidos de prazer,
escutados por quem? se ninguém passa
na rua em altas horas-muro?
Pouco importa, a moça está marcada,
marca de rês na anca, ferro em brasa
de língua popular.