Número 270 - Ano 9

São Paulo, quarta-feira, 16 de novembro de 2011

«Todos os poemas são um mesmo poema.»  (Mario Quintana) *
 

Rubem Braga (1913-1990)
Rubem Braga


Caros amigos,

O poesia.net voltou. Mas a maior parte de vocês talvez ainda não saiba. É que o retorno coincidiu com problemas no envio de e-mails, só agora resolvidos. Peço, portanto, a quem não viu o boletim anterior que o visite no site (aliás, também renovado): poesia.net n. 269.

Na edição anterior, discutimos como o poeta Carlos Drummond de Andrade praticou, durante décadas, a crônica em versos nos jornais. Agora vamos caminhar em sentido quase contrário, mostrando como o cronista Rubem Braga, sempre escrevendo em prosa, construiu momentos da mais alta poesia.

Natural de Cachoeiro do Itapemirim, Rubem Braga (1913-1990) é considerado por muitos o melhor cronista brasileiro. É talvez o único integrante de nosso primeiro time de escritores que alcançou essa condição exclusivamente com a crônica. Ainda adolescente, começou a escrever para um jornal de sua cidade. Em 1932, formou-se em direito em Belo Horizonte, onde exerceu o jornalismo no diário O Estado de Minas. Depois, transferido para o Rio de Janeiro, trabalhou no Diário Carioca, que o enviou para a Itália em 1944 para cobrir a Segunda Guerra Mundial.

Sempre escrevendo crônicas para jornais e revistas, Braga as reuniu em 13 livros, publicados regularmente desde 1936. Em 1977 ele organizou o volume 200 Crônicas Escolhidas, coletânea que se tornou um clássico e representa um saboroso extrato de todo o seu trabalho de cronista.

Para este boletim selecionei três crônicas do escritor capixaba, todas incluídas nas duas centenas escolhidas pelo autor. A primeira, datada de 1952, é "A Equipe". Consiste no comentário saudoso de um homem diante da fotografia de um time de futebol, do qual o narrador fazia parte. O texto não só reflete a brasileiríssima paixão pelo esporte como confere dimensões épicas aos embates nos gramados.

A linguagem é marcada pelo jargão da época. Alguns termos ainda estão no original bretão, como goal, center-half e “quipa” – uma gíria para goleiro, o goal-keeper. Uma curiosidade: essa crônica foi publicada originalmente em 1946, com algumas diferenças no conteúdo e com o texto disposto em versos. Aliás, saiu num volume chamado Livro de Versos.

A segunda crônica ao lado, "Ai de Ti, Copacabana!", foi escrita em 1958 e constitui uma excelente paródia aos textos bíblicos. Disposta em versículos numerados, lança maldições sobre o famoso bairro carioca de Copacabana, supostamente mergulhada em luxúria e iniqüidades. Assim como no livro do Gênesis a ira do Senhor se abate sobre Sodoma, aqui o texto profetiza a destruição da “pecaminosa” praia carioca.

O título da crônica, repetido várias vezes como um bordão, inspira-se no Velho Testamento: "Tenho visto as tuas abominações sobre os outeiros e no campo, a saber, os teus adultérios, os teus rinchos e a luxúria da tua prostituição. Ai de ti, Jerusalém! Até quando ainda não te purificarás?" (Jeremias 13:27). Rubem Braga usa ainda outras referências à Bíblia, sempre na mesma linguagem profética e altissonante.

Um detalhe: o “Oscar, filho de Ornstein”, citado no versículo 17, é Oscar Ornstein, empresário musical e produtor artístico que foi relações-públicas do Hotel Copacabana Palace. Foi ele quem trouxe Frank Sinatra para o show no Maracanã em 1980. Ornstein morreu em 1990. O palácio que ele deveria reservar para Iemanjá, segundo o versículo braguiano, seria portanto o Copacabana Palace.

Por fim, vem a crônica “O Cajueiro”, escrita em 1954 uma página que remete diretamente à infância do cronista. Observem a beleza desses cinco parágrafos. Uma história envolvente para qualquer leitor, mas especialmente para quem passou a infância no interior, com árvores, frutas e quintais. No final, entende-se: o cajueiro dos Braga era como se fosse uma pessoa da família.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



                      •o•



Se você quiser saber mais sobre Rubem Braga, encontra-se nas livrarias uma boa bibliografia:

Rubem Braga
200 Crônicas Escolhidas
Editora Record

Alexandre Bonafim
Rubem Braga – A Graça Poética do Instante
Ed. Biblioteca 24 Horas

Marco Antonio de Carvalho
Rubem Braga - Um Cigano Fazendeiro do Ar
Ed. Globo

José Castello
Na Cobertura de Rubem Braga
Ed. José Olympio, 1996

Davi Arrigucci Junior
Os Melhores Contos de Rubem Braga
Global Editora

Ai de ti, Copacabana!

Rubem Braga

 



Candido Portinari - Futebol (1935)
Candido Portinari - Futebol (1935)


A EQUIPE


Uma velha, amarelada fotografia de nosso time.

No primeiro plano vê-se a linha intrépida, ajoelhada sobre o joelho esquerdo, prestes a erguer-se, uma vez batida a chapa, e atacar com fúria.

A defesa está atrás, de pé pelo Brasil.

Esse de gorro era nosso melhor elemento. Lembro que nesse jogo Nico foi expulso de campo, injustamente, pelo juiz; mas não sem antes marcar dois goals.

Esse mais gordo era Roberto Vaca-Brava, nosso center-half, homem capaz de jogar em qualquer posição. Até hoje me lembro do time, como da letra de uma velha canção: Joca, Liberato e Zico; Tião, Roberto e Sossego; Baiano, eu, Coriolano, Antonico e Fuad.

Era um onze imortal, como aliás se nota nessa fotografia, nessa chuvosa tarde, antigamente heróica eternamente, em que empatamos, porém todos reconheceram que foi nossa a vitória moral.

E olhando o retrato, olho especialmente o meu: um rapazinho feio, de ar doce e violento, sobre quem disse o jornal: “o valoroso meia-direita” — e com toda razão, modéstia à parte.

Esse alto, nosso quipa Joca Desidério, quando a linha fechava ele gritava para os beques — sai tudo, sai da frente — e avançava na linha. E chorava de raiva quando uma bola entrava. Mais tarde, por causa de um italiano, ele se fez assassino, mas com toda razão, segundo me contaram. Alviverde camisa do Esperança do Sul Futebol Clube, conhecido como os capetas verdes — somos nós!

Nós todos envergando essas cores sagradas; e no coração, dentro do peito, cada um tinha uma namorada na bancada. Cada um, menos um: era Fuad, que não interessava a ninguém, e morreu tuberculoso, sacrificado de tanto correr na extrema, pelas cores do clube — glória eterna! Era esse aqui, de nariz grande, esse turquinho feio.

                                                      Novembro, 1952



Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar e cingiram tua
fronte com uma coroa de mentiras.



AI DE TI, COPACABANA!

1. Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas.

2. Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite.

3. Já movi o mar de uma parte e de outra parte, e suas ondas tomaram o Leme e o Arpoador, e tu não viste este sinal; estás perdida e cega no meio de tuas iniqüidades e de tua malícia.

4. Sem Leme, quem te governará? Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas.

5. Grandes são teus edifícios de cimento, e eles se postam diante do mar qual alta muralha desafiando o mar; mas eles se abaterão.

6. E os escuros peixes nadarão nas tuas ruas e a vasa fétida das marés cobrirá tua face; e o setentrião lançará as ondas sobre ti num referver de espumas qual um bando de carneiros em pânico, até morder a aba de teus morros; e todas as muralhas ruirão.

7. E os polvos habitarão os teus porões e as negras jamantas as tuas lojas de decorações; e os meros se entocarão em tuas galerias, desde Menescal até Alaska.

8. Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade não haverá terreno algum.

9. Ai daqueles que dormem em leitos de pau-marfim nas câmaras refrigeradas, e desprezam o vento e o ar do Senhor, e não obedecem à lei do verão.

10. Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto, pois não terão tanta pressa quando virem pela frente a hora da provação.

11. Tuas donzelas se estendem na areia e passam no corpo óleos odoríferos para tostar a tez, e teus mancebos fazem das lambretas instrumentos de concupiscência.

12. Uivai, mancebos, e clamai, mocinhas, e rebolai-vos na cinza, porque já se cumpriram vossos dias, e eu vos quebrantarei.

13. Ai de ti, Copacabana, porque os badejos e as garoupas estarão nos poços de teus elevadores, e os meninos do morro, quando for chegado o tempo das tainhas, jogarão tarrafas no Canal do Cantagalo; ou lançarão suas linhas dos altos do Babilônia.

14. E os pequenos peixes que habitam os aquários de vidro serão libertados para todo o número de suas gerações.

15. Por que rezais em vossos templos, fariseus de Copacabana, e levais flores para Iemanjá no meio da noite? Acaso eu não conheço a multidão de vossos pecados?

16. Antes de te perder eu agravarei a tua demência — ai de ti, Copacabana! Os gentios de teus morros descerão uivando sobre ti, e os canhões de teu próprio Forte se voltarão contra teu corpo, e troarão; mas a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão.

17. E tu, Oscar, filho de Ornstein, ouve a minha ordem: reserva para Iemanjá os mais espaçosos aposentos de teu palácio, porque ali, entre algas, ela habitará.

18. E no Petit Club os siris comerão cabeças de homens fritas na casca; e Sacha, o homem-rã, tocará piano submarino para fantasmas de mulheres silenciosas e verdes, cujos nomes passaram muitos anos nas colunas dos cronistas, no tempo em que havia colunas e havia cronistas.

19. Pois grande foi a tua vaidade, Copacabana, e fundas foram as tuas mazelas; já se incendiou o Vogue, e não viste o sinal, e já mandei tragar as areias do Leme e ainda não vês o sinal. Pois o fogo e a água te consumirão.

20. A rapina de teus mercadores e a libação de teus perdidos; e a ostentação da hetaira do Posto Cinco, em cujos diamantes se coagularam as lágrimas de mil meninas miseráveis — tudo passará.

21. Assim qual escuro alfanje a nadadeira dos imensos cações passará ao lado de tuas antenas de televisão; porém muitos peixes morrerão por se banharem no uísque falsificado de teus bares.

22. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas jóias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para a prece; e que estremeça o teu corpo fino e cheio de máculas, desde o Edifício Olinda até a sede dos Marimbás porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá. Canta a tua última canção, Copacabana!

                                                      Janeiro, 1958

 

Casa dos Braga, em Cachoeiro do Itapemirim, ES
Casa em Cachoeiro do Itapemirim, ES, onde Rubem passou a infância


O CAJUEIRO

O cajueiro já devia ser velho quando nasci. Ele vive nas mais antigas recordações de minha infância: belo, imenso, no alto do morro, atrás de casa. Agora vem uma carta dizendo que ele caiu.

Eu me lembro do outro cajueiro que era menor, e morreu há muito mais tempo. Eu me lembro dos pés de pinha, do cajá-manga, da grande touceira de espadas-de-são-jorge (que nós chamávamos simplesmente "tala") e da alta saboneteira que era nossa alegria e a cobiça de toda a meninada do bairro porque fornecia centenas de bolas pretas para o jogo de gude. Lembro-me da tamareira, e de tantos arbustos e folhagens coloridas, lembro-me da parreira que cobria o caramanchão, e dos canteiros de flores humildes, "beijos", violetas. Tudo sumira; mas o grande pé de fruta-pão ao lado de casa e o imenso cajueiro lá no alto eram como árvores sagradas protegendo a família. Cada menino que ia crescendo ia aprendendo o jeito de seu tronco, a cica de seu fruto, o lugar melhor para apoiar o pé e subir pelo cajueiro acima, ver de lá o telhado das casas do outro lado e os morros além, sentir o leve balanceio na brisa da tarde.

No último verão ainda o vi; estava como sempre carregado de frutos amarelos, trêmulo de sanhaços. Chovera; mas assim mesmo fiz questão de que Carybé subisse o morro para vê-lo de perto, como quem apresenta a um amigo de outras terras um parente muito querido.

A carta de minha irmã mais moça diz que ele caiu numa tarde de ventania, num fragor tremendo pela ribanceira; e caiu meio de lado, como se não quisesse quebrar o telhado de nossa velha casa. Diz que passou o dia abatida, pensando em nossa mãe, em nosso pai, em nossos irmãos que já morreram. Diz que seus filhos pequenos se assustaram; mas depois foram brincar nos galhos tombados.

Foi agora, em fins de setembro. Estava carregado de flores.

                                                      Setembro, 1954

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2011

Rubem Braga
•  In 200 Crônicas Escolhidas
   
Círculo do Livro, São Paulo, s/data
______________
Foto Casa dos Braga: Wikicommons, Prefeitura de
Cachoeiro de Itapemirim
______________
* Mario Quintana, "Pequeno Poema Didático",
  in Apontamentos de História Sobrenatural (1976)