Rubem Braga
Caros amigos,
O poesia.net voltou. Mas a maior parte de vocês talvez ainda não saiba. É que o
retorno coincidiu com problemas no envio de e-mails, só agora resolvidos. Peço,
portanto, a quem não viu o boletim anterior que o visite no site (aliás, também
renovado):
poesia.net n. 269.
Na edição anterior, discutimos como o poeta Carlos Drummond de Andrade praticou,
durante décadas, a crônica em versos nos jornais. Agora vamos caminhar em
sentido quase contrário, mostrando como o cronista Rubem Braga, sempre
escrevendo em prosa, construiu momentos da mais alta poesia.
Natural de Cachoeiro do Itapemirim, Rubem Braga (1913-1990) é considerado por
muitos o melhor cronista brasileiro. É talvez o único integrante de nosso
primeiro time de escritores que alcançou essa condição exclusivamente com a
crônica. Ainda adolescente, começou a escrever para um jornal de sua cidade. Em
1932, formou-se em direito em Belo Horizonte, onde exerceu o jornalismo no
diário O Estado de Minas. Depois, transferido para o Rio de Janeiro,
trabalhou no Diário Carioca, que o enviou para a Itália em 1944 para
cobrir a Segunda Guerra Mundial.
Sempre escrevendo crônicas para jornais e revistas, Braga as reuniu em 13
livros, publicados regularmente desde 1936. Em 1977 ele organizou o volume
200 Crônicas Escolhidas, coletânea que se tornou um clássico e representa um
saboroso extrato de todo o seu trabalho de cronista.
Para este boletim selecionei três crônicas do escritor capixaba, todas incluídas
nas duas centenas escolhidas pelo autor. A primeira, datada de 1952, é "A
Equipe". Consiste no comentário saudoso de um homem diante da fotografia de um
time de futebol, do qual o narrador fazia parte. O texto não só reflete a
brasileiríssima paixão pelo esporte como confere dimensões épicas aos embates
nos gramados.
A linguagem é marcada pelo jargão da época. Alguns termos ainda estão no
original bretão, como goal, center-half e “quipa” – uma gíria para
goleiro, o goal-keeper. Uma curiosidade: essa crônica foi publicada
originalmente em 1946, com algumas diferenças no conteúdo —
e com o texto disposto em versos. Aliás, saiu num volume chamado Livro de
Versos.
A segunda crônica ao lado, "Ai de Ti, Copacabana!", foi escrita em 1958 e
constitui uma excelente paródia aos textos bíblicos. Disposta em versículos
numerados, lança maldições sobre o famoso bairro carioca de Copacabana,
supostamente mergulhada em luxúria e iniqüidades. Assim como no livro do Gênesis
a ira do Senhor se abate sobre Sodoma, aqui o texto profetiza a destruição da
“pecaminosa” praia carioca.
O título da crônica, repetido várias vezes como um bordão, inspira-se no Velho
Testamento: "Tenho visto as tuas abominações sobre os outeiros e no campo, a
saber, os teus adultérios, os teus rinchos e a luxúria da tua prostituição. Ai
de ti, Jerusalém! Até quando ainda não te purificarás?" (Jeremias 13:27). Rubem
Braga usa ainda outras referências à Bíblia, sempre na mesma linguagem profética
e altissonante.
Um detalhe: o “Oscar, filho de Ornstein”, citado no versículo 17, é Oscar
Ornstein, empresário musical e produtor artístico que foi relações-públicas do
Hotel Copacabana Palace. Foi ele quem trouxe Frank Sinatra para o show no
Maracanã em 1980. Ornstein morreu em 1990. O palácio que ele deveria reservar
para Iemanjá, segundo o versículo braguiano, seria portanto o Copacabana Palace.
Por fim, vem a crônica “O Cajueiro”, escrita em 1954 —
uma página que remete diretamente à infância do cronista. Observem a beleza
desses cinco parágrafos. Uma história envolvente para qualquer leitor, mas
especialmente para quem passou a infância no interior, com árvores, frutas e
quintais. No final, entende-se: o cajueiro dos Braga era como se fosse uma
pessoa da família.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
Se você quiser saber mais sobre Rubem Braga, encontra-se nas livrarias uma boa
bibliografia:
• Rubem Braga
200 Crônicas Escolhidas
Editora Record
• Alexandre Bonafim
Rubem Braga – A Graça Poética do Instante
Ed. Biblioteca 24 Horas
• Marco Antonio de Carvalho
Rubem Braga - Um Cigano Fazendeiro do Ar
Ed. Globo
• José Castello
Na Cobertura de Rubem Braga
Ed. José Olympio, 1996
• Davi Arrigucci Junior
Os Melhores Contos de Rubem Braga
Global Editora |
Ai de ti, Copacabana!
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Rubem Braga
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Candido Portinari - Futebol (1935)
A EQUIPE
Uma velha, amarelada fotografia de nosso time.
No primeiro plano vê-se a linha intrépida, ajoelhada sobre o joelho esquerdo,
prestes a erguer-se, uma vez batida a chapa, e atacar com fúria.
A defesa está atrás, de pé pelo Brasil.
Esse de gorro era nosso melhor elemento. Lembro que nesse jogo Nico foi expulso
de campo, injustamente, pelo juiz; mas não sem antes marcar dois goals.
Esse mais gordo era Roberto Vaca-Brava, nosso center-half, homem capaz de
jogar em qualquer posição. Até hoje me lembro do time, como da letra de uma
velha canção: Joca, Liberato e Zico; Tião, Roberto e Sossego; Baiano, eu,
Coriolano, Antonico e Fuad.
Era um onze imortal, como aliás se nota nessa fotografia, nessa chuvosa tarde,
antigamente heróica eternamente, em que empatamos, porém todos reconheceram que
foi nossa a vitória moral.
E olhando o retrato, olho especialmente o meu: um rapazinho feio, de ar doce e
violento, sobre quem disse o jornal: “o valoroso meia-direita” — e com toda
razão, modéstia à parte.
Esse alto, nosso quipa Joca Desidério, quando a linha fechava ele gritava para
os beques — sai tudo, sai da frente — e avançava na linha. E chorava de raiva
quando uma bola entrava. Mais tarde, por causa de um italiano, ele se fez
assassino, mas com toda razão, segundo me contaram. Alviverde camisa do
Esperança do Sul Futebol Clube, conhecido como os capetas verdes — somos nós!
Nós todos envergando essas cores sagradas; e no coração, dentro do peito, cada
um tinha uma namorada na bancada. Cada um, menos um: era Fuad, que não
interessava a ninguém, e morreu tuberculoso, sacrificado de tanto correr na
extrema, pelas cores do clube — glória eterna! Era esse aqui, de nariz grande,
esse turquinho feio.
Novembro, 1952
Ai de ti, Copacabana, porque a ti
chamaram Princesa do Mar e cingiram tua
fronte com uma coroa de mentiras.
AI DE TI, COPACABANA!
1. Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a
véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas.
2. Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua
fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite.
3. Já movi o mar de uma parte e de outra parte, e suas ondas tomaram o Leme e o
Arpoador, e tu não viste este sinal; estás perdida e cega no meio de tuas
iniqüidades e de tua malícia.
4. Sem Leme, quem te governará? Foste iníqua perante o oceano, e o oceano
mandará sobre ti a multidão de suas ondas.
5. Grandes são teus edifícios de cimento, e eles se postam diante do mar qual
alta muralha desafiando o mar; mas eles se abaterão.
6. E os escuros peixes nadarão nas tuas ruas e a vasa fétida das marés cobrirá
tua face; e o setentrião lançará as ondas sobre ti num referver de espumas qual
um bando de carneiros em pânico, até morder a aba de teus morros; e todas as
muralhas ruirão.
7. E os polvos habitarão os teus porões e as negras jamantas as tuas lojas de
decorações; e os meros se entocarão em tuas galerias, desde Menescal até Alaska.
8. Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade
não haverá terreno algum.
9. Ai daqueles que dormem em leitos de pau-marfim nas câmaras refrigeradas, e
desprezam o vento e o ar do Senhor, e não obedecem à lei do verão.
10. Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto, pois não terão
tanta pressa quando virem pela frente a hora da provação.
11. Tuas donzelas se estendem na areia e passam no corpo óleos odoríferos para
tostar a tez, e teus mancebos fazem das lambretas instrumentos de
concupiscência.
12. Uivai, mancebos, e clamai, mocinhas, e rebolai-vos na cinza, porque já se
cumpriram vossos dias, e eu vos quebrantarei.
13. Ai de ti, Copacabana, porque os badejos e as garoupas estarão nos poços de
teus elevadores, e os meninos do morro, quando for chegado o tempo das tainhas,
jogarão tarrafas no Canal do Cantagalo; ou lançarão suas linhas dos altos do
Babilônia.
14. E os pequenos peixes que habitam os aquários de vidro serão libertados para
todo o número de suas gerações.
15. Por que rezais em vossos templos, fariseus de Copacabana, e levais flores
para Iemanjá no meio da noite? Acaso eu não conheço a multidão de vossos
pecados?
16. Antes de te perder eu agravarei a tua demência — ai de ti, Copacabana! Os
gentios de teus morros descerão uivando sobre ti, e os canhões de teu próprio
Forte se voltarão contra teu corpo, e troarão; mas a água salgada levará
milênios para lavar os teus pecados de um só verão.
17. E tu, Oscar, filho de Ornstein, ouve a minha ordem: reserva para Iemanjá os
mais espaçosos aposentos de teu palácio, porque ali, entre algas, ela habitará.
18. E no Petit Club os siris comerão cabeças de homens fritas na casca; e Sacha,
o homem-rã, tocará piano submarino para fantasmas de mulheres silenciosas e
verdes, cujos nomes passaram muitos anos nas colunas dos cronistas, no tempo em
que havia colunas e havia cronistas.
19. Pois grande foi a tua vaidade, Copacabana, e fundas foram as tuas mazelas;
já se incendiou o Vogue, e não viste o sinal, e já mandei tragar as areias do
Leme e ainda não vês o sinal. Pois o fogo e a água te consumirão.
20. A rapina de teus mercadores e a libação de teus perdidos; e a ostentação da
hetaira do Posto Cinco, em cujos diamantes se coagularam as lágrimas de mil
meninas miseráveis — tudo passará.
21. Assim qual escuro alfanje a nadadeira dos imensos cações passará ao lado de
tuas antenas de televisão; porém muitos peixes morrerão por se banharem no
uísque falsificado de teus bares.
22. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas jóias, e aviva o verniz
de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde
para a prece; e que estremeça o teu corpo fino e cheio de máculas, desde o
Edifício Olinda até a sede dos Marimbás porque eis que sobre ele vai a minha
fúria, e o destruirá. Canta a tua última canção, Copacabana!
Janeiro, 1958
Casa em Cachoeiro do Itapemirim, ES, onde Rubem passou a infância
O CAJUEIRO
O cajueiro já devia ser velho quando nasci. Ele vive nas mais antigas
recordações de minha infância: belo, imenso, no alto do morro, atrás de casa.
Agora vem uma carta dizendo que ele caiu.
Eu me lembro do outro cajueiro que era menor, e morreu há muito mais tempo. Eu
me lembro dos pés de pinha, do cajá-manga, da grande touceira de
espadas-de-são-jorge (que nós chamávamos simplesmente "tala") e da alta
saboneteira que era nossa alegria e a cobiça de toda a meninada do bairro porque
fornecia centenas de bolas pretas para o jogo de gude. Lembro-me da tamareira, e
de tantos arbustos e folhagens coloridas, lembro-me da parreira que cobria o
caramanchão, e dos canteiros de flores humildes, "beijos", violetas. Tudo
sumira; mas o grande pé de fruta-pão ao lado de casa e o imenso cajueiro lá no
alto eram como árvores sagradas protegendo a família. Cada menino que ia
crescendo ia aprendendo o jeito de seu tronco, a cica de seu fruto, o lugar
melhor para apoiar o pé e subir pelo cajueiro acima, ver de lá o telhado das
casas do outro lado e os morros além, sentir o leve balanceio na brisa da tarde.
No último verão ainda o vi; estava como sempre carregado de frutos amarelos,
trêmulo de sanhaços. Chovera; mas assim mesmo fiz questão de que Carybé subisse
o morro para vê-lo de perto, como quem apresenta a um amigo de outras terras um
parente muito querido.
A carta de minha irmã mais moça diz que ele caiu numa tarde de ventania, num
fragor tremendo pela ribanceira; e caiu meio de lado, como se não quisesse
quebrar o telhado de nossa velha casa. Diz que passou o dia abatida, pensando em
nossa mãe, em nosso pai, em nossos irmãos que já morreram. Diz que seus filhos
pequenos se assustaram; mas depois foram brincar nos galhos tombados.
Foi agora, em fins de setembro. Estava carregado de flores.
Setembro, 1954
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