Marly de Oliveira
Caros amigos,
Neste número o poesia.net entra em seu décimo ano de circulação. Em 12 de
dezembro de 2002 começou a circular este modesto expresso literário, que partiu
direto de São Paulo e prossegue em marcha, aqui e agora. Nove anos depois.
Nesta edição, o boletim se debruça sobre a obra da poeta, professora e ensaísta
capixaba Marly de Oliveira (1935-2007). Nascida em Cachoeiro do Itapemirim (ES),
ela viveu a infância e a adolescência na cidade fluminense de Campos dos
Goytacazes. Foi casada em segundas núpcias com o poeta pernambucano
João Cabral de Melo Neto (1920-1999).
Muito jovem, já formada em letras neolatinas no Rio de Janeiro, Marly de
Oliveira estudou língua italiana e filologia românica na Universidade de Roma.
Seus poemas escritos em italiano impressionaram vivamente o poeta
Giuseppe Ungaretti, que declarou sobre ela em 1960: “Como terá feito esta
jovem para apoderar-se de nossa língua, de sua secreta musicalidade (...)? É um
milagre, simplesmente poesia em um italiano luminoso.” Do mesmo modo, em seus
escritos em português, Marly de Oliveira conquistou aplausos de gente como
Clarice Lispector, Leo Gilson Ribeiro e Antonio Houaiss.
Voltada desde cedo para a poesia, Marly publicou cerca de 15 livros do gênero,
sem contar antologias e a Obra Poética Reunida, que veio a público em
1989. Todos os poemas da seleção ao lado foram extraídos desse volume.
Procurei dispor os textos em seqüência cronológica para dar ao leitor uma
pequena idéia da evolução da obra.
Os dois primeiros poemas, a parte 5 de “Cerco da Primavera” e “Retrato”, vêm de
Cerco da Primavera (1958), o livro de estréia da autora. Nesses poemas,
observa-se claramente a influência de Cecília Meireles nos temas, na
musicalidade, embora o talento próprio seja inequívoco.
Em “Explicação de Narciso”, do livro homônimo de 1960, a poeta empreende uma
jornada de indagações existenciais, a tentativa de explicar por que estamos
aqui, o que aqui fazemos e qual é a parte nisso tudo do corpo e da alma. Em A
Suave Pantera, o personagem central é um felino —
enjaulado, como a pantera de
Rilke — que representa o sonho de espaço e
liberdade, a “ânsia secreta” do ser humano. Um animal que tem um “sono cego,
cheio de asas”.
No soneto “25” de O Sangue na Veia (1967), destaca-se a habilidade da
autora ao lidar com versos decassílabos. Fazendo eco à máxima cartesiana (Penso,
logo existo), ela discorre sobre a criação poética e seus efeitos sobre o poeta.
“Escrevo; logo, sou quem se domina, / e quem avança numa descoberta”.
Do livro Contato, de 1975, pincei o belo soneto” XVI”, dedicado a uma das
filhas da poeta. Um dos traços da poesia de Marly de Oliveira é a riqueza de
citações eruditas. Em geral, elas aparecem discretamente e podem mesmo passar
despercebidas. Este soneto, por exemplo, abre-se com o verso “Um súbito silêncio
enfreia a mágica / aventura”. Trata-se de uma referência ao trecho “Um súbito
silêncio enfreia os ventos / e faz ir docemente murmurando / as águas, e nas
casas naturais / adormecer os brutos animais.” É Camões (Os Lusíadas,
Canto Décimo, estrofe 6).
Por fim, vem o poema “XVIII” do livro Aliança (1979), que traça um breve
perfil de Clarice Lispector, amiga da poeta. No blog
A Poesia de Marly
de Oliveira, dedicado à obra da poeta cachoeirense, pode-se ver uma foto do
primeiro casamento dela, na qual os noivos aparecem ladeados pelos padrinhos
Clarice Lispector e Manuel Bandeira.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
A thing of beauty
Em 1818, o jovem poeta romântico inglês
John Keats (1795-1821) publicou o poema "Endymion", aquele que começa com o
célebre verso "A thing of beauty is a joy for ever" (ao pé da letra: uma coisa
bela é uma alegria para sempre). Agora, o guitarrista Celso Fonseca musicou os
cinco primeiros versos do poema. O grande barato desse diálogo com um poeta
oitocentista é que a melodia flui com muita suavidade, com se tivesse nascido
junto com as palavras de Keats.
Clique
no alto-falante para ouvir a canção "A
Thing of Beauty" no YouTube. Canta Celso Fonseca com a participação vocal,
no final, de seu parceiro, o letrista Ronaldo Bastos. No piano, o auxílio
luxuoso de João Donato.
Acompanhe a letra de Keats e, mais abaixo, a tradução do poeta Augusto de
Campos:
A thing of beauty is a joy for ever: /
Its loveliness increases; it will never / Pass into nothingness; but still will
keep / A bower quiet for us, and a sleep / Full of sweet dreams, and health, and
quiet breathing.
O que é belo há de ser eternamente / Uma alegria, e há de seguir presente. / Não
morre; onde quer que a vida breve / Nos leve, há de nos dar um sono leve, /
Cheio de sonhos e de calmo alento.
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Explicação de Narciso
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Marly de Oliveira |
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CERCO DA PRIMAVERA
5.
Molhava os cabelos negros
nas águas da noite, quando
cheio de sombra acendeste
uns olhos cor de limão,
iluminando o silêncio
com o simples tocar de mão.
Um rumor de vinho claro,
de bocas e mãos unidas
e um cheiro de mel e flor,
rasparam, ai, como espada,
meu corpo cheio de noite
e o teu, perdido de amor.
Por certo que não queria,
mas tinha a cintura e jeito
ao teu abraço achegados,
e na sombra relumbrava
a água verde dos teus olhos
nos meus cabelos molhados.
Tremores de vento e lua
encabritavam-me o sangue,
e penas de sal e fogo
talavam o silêncio escuro,
ferindo nossas cadeiras
e amarfanhando o chão duro.
Em frio e fogo de amor
apenas luz se alongaram
curvados talhes desnudos.
E nas sombras o silêncio
agitava como franjas
seus longos braços agudos.
Yasuo Kunioshi (1893-1953), Woman in front
of Mirror, circa 1945
RETRATO
Deixei em vagos espelhos
a face múltipla e vária,
mas a que ninguém conhece
essa é a face necessária.
Escuto quando me falam,
de alma longe e rosto liso,
e os lábios vão sustentando
indiferente sorriso.
A força heróica do sonho
me empurra a distantes mares,
e estou sempre navegando
por caminhos singulares.
Inquiri o mundo, as nuvens
o que existe e não existe,
mas, por detrás das mudanças,
permaneço a mesma, e triste.
De Cerco da Primavera (1958)
EXPLICAÇÃO DE NARCISO
1.
A carne é boa, é preciso louvá-la.
A carne é boa, não é triste ou fraca.
O que a atinge é a fraqueza que há num homem,
a tristeza, maior que um homem, mata-a.
A carne nada tem, salvo o seu sono,
barro tranqüilo de harmoniosa forma,
corpo que distraídos animamos,
fonte real de toda a nossa glória.
A carne é o instrumento do princípio,
é por ela que eu vivo, que vivemos,
e se revela o amor como é preciso;
o que está fora se une ao que está dentro,
alma e corpo no corpo confundidos,
e a sensação completa de estar vendo.
18.
Num tempo alheio ao tempo, a sós comigo
mais uma vez diante de mim, me escuto:
o meu rebanho ficou longe, longe,
e sou pastor apenas do meu luto.
Mana de mim como um silêncio o amor,
e uma angústia, uma estrela em que me escudo
extremamente para não morrer,
de meus próprios recursos inseguro.
Que saudade de mim me vem agora
quando revejo a fonte com seu brilho
onde meu rosto urgia um tempo-outrora!
Permanência do amor ou desafio
ao tempo, no âmago de mim se vota
um sol eterno e cada vez mais frio.
De Explicação de Narciso (1960)
A SUAVE PANTERA
1.
Como qualquer animal,
olha as grades flutuantes.
Eis que as grades são fixas:
Ela, sim, é andante.
Sob a pele, contida
— em silêncio e lisura —
a força do seu mal,
e a doçura, a doçura,
que escorre pelas pernas
e as pernas habitua
a esse modo de andar,
de ser sua, ser sua,
no perfeito equilíbrio
de sua vida aberta:
una e atenta a si mesma,
suavíssima pantera.
Como no fundo da ostra a pérola / ela
se deita veludosa
11.
Como no fundo da ostra a pérola
ela se deita veludosa,
mas anda com patas rebeldes
seu coração com uma glória.
Tem um ritmo de silêncio
a força com que ele desprega
as patas a cada momento,
numa espécie de ânsia secreta.
Violento é o sono do seu corpo,
mas sem aspereza nenhuma,
igual à queda de uma coifa
brusca e silente na verdura,
sem direção, igual à paina
mas uma paina concentrada,
mas uma paina vigorosa,
seu sono cego, cheio de asas.
De A Suave Pantera (1962)
O SANGUE NA VEIA
25.
Escrevo; logo, sinto, logo, vivo,
e tiro-lhe ao viver a indisciplina
que o espraiaria, que o dispersaria,
e dou-lhe a minha forma comedida,
a que tem o tamanho de um amor
que eu guardo, que não gasto, não disperso;
amor que se concentra em dura pérola,
não pétala, não isto que é um excesso,
pois que pode voar; o que me fica
de tudo o que acontece e não se altera,
de tudo o que acontece e me escraviza,
e do que escravizando me liberta.
Escrevo; logo, sou quem se domina,
e quem avança numa descoberta.
De O Sangue na Veia (1967)
Ela adormece / a meus pés como um
gato, um bicho quieto, / com doçura felina,
suave e intensa.
XVI
À Mônica (aos três anos)
Um súbito silêncio enfreia a mágica
aventura de estar entre os objetos
que apenas reconhece. Ela adormece
a meus pés como um gato, um bicho quieto,
com doçura felina, suave e intensa,
recolhida em si mesma contra o frio
da noite. Ela me é, me dorme no seu sono,
desdobrada de mim, além de mim,
que a recebi sem entender, atenta
ao milagre de vida de que fui
receptáculo apenas, serva mansa,
e em tudo obediente à natureza.
Dorme a meus pés, e meu amor reinventa-se
vendo-a tão calma assim, tão sem defesa.
De Contato (1975)
Clarice
XVIII.
Revejo seu rosto nos vários retratos:
cada um capta algo, nenhum a totalidade
do que ela foi, do que é ainda,
a cada instante outra/renovada.
Eu sei que ela tocou no escuro o Proibido
e conheceu a Paixão
com todas as suas quedas.
Quem esteve a seu lado sabe
o que é fulguração de abismo
e piscar de estrela na treva.
De Aliança (1979)
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