Humberto Werneck
Caros,
Esta página constitui um boletim complementar à
edição 274
do poesia.net.
A propósito do boletim dedicado à poesia de Hélio Pellegrino, o jornalista e
escritor Humberto Werneck concedeu a este boletim a
graça de publicar duas de suas saborosas crônicas.
A primeira, "Pegando um bronze em Beagá" (parte do livro Esse Inferno Vai
Acabar, de 2011), trata da tendência atual de erguer estátuas ao
rés-do-chão, em contraposição ao modo tradicional de fixar as figuras de bronze
no alto de pedestais. Entre as estátuas "pedestres" estão as que homenageiam, em
Belo Horizonte, o grupo d'Os Quatro Mineiros: os escritores Hélio Pellegrino,
Otto Lara Resende,
Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino. A outra crônica, "Bichos literários",
conta pequenas anedotas envolvendo integrantes do mesmo quarteto de escritores.
Humberto Werneck é, na verdade, um especialista em escritores
mineiros. Em 1992, ele publicou o livro O Desatino da Rapaziada (Cia. das
Letras), que traça o retrato da geração de jornalistas e escritores da qual
fizeram parte... Os Quatro Mineiros. Mas esse retrato também amplia o foco para
a geração anterior, a de Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava e outros.
Ao pesquisar sobre a vida desses personagens, Werneck notou
que muitos deles tinham especial admiração pelo
paraense Jayme Ovalle (1894-1955), uma figura extraordinária que trafegou nos
meios artísticos da primeira metade do século passado. Amigo de Vinicius de
Moraes, parceiro de Manuel Bandeira (é de Ovalle a música de Azulão, que
tem letra do autor de "Pasárgada"), esse paraense era considerado um gênio
literário que nunca pôs uma só linha no papel. No volume O Santo Sujo
(Cosac Naify, 2008), Werneck biografa esse rico personagem baseando-se no
depoimento desses amigos e admiradores. Elogiadíssima pelos críticos, essa
biografia é um trabalho que exigiu enorme paciência e fôlego de setecentos gatos
para pesquisar, entrevistar, cruzar informações.
O livro Esse Inferno Vai Acabar é a segunda reunião de
crônicas publicada por Werneck. A primeira foi O Espalhador de Passarinhos &
Outras Crônicas (Dubolsinho, 2010).
Mas chega de conversa. Passem logo — os mais
espertos certamente já fizeram isso — às crônicas e
deliciem-se com o texto primoroso e bem-humorado de Humberto Werneck.
Carlos Machado
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Crônicas mineiras
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Humberto Werneck
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PEGANDO UM BRONZE EM BEAGÁ
Foi-se o tempo em que, batidas as botas, o cidadão notável era moldado em
bronze e posto a pairar acima dos viventes, no topo de um pedestal. Em Belo
Horizonte, pelo menos, não se usa mais. Lá, independentemente de a alma ter
subido ao Céu ou baixado ao Inferno, o camarada está hoje condenado ao
purgatório do rés-do-chão, com todos os inconvenientes que daí decorrem,
inclusive a sem-cerimônia dos cachorros em demanda de poste.
Talvez mais do que em outras cidades brasileiras, em Beagá parece ter
vingado a moda da estátua pedestre. Embora menos que o pessoal de carne e osso,
sua população brônzea não para de crescer. Dela faz parte, para começar, nosso
maior poeta, que, desconfio, não deve estar gostando nada da berlinda. Não lhe
bastasse ter sido chumbado a um banco na praia de Copacabana, onde volta e meia
lhe afanam os óculos, na capital mineira Carlos Drummond de Andrade foi
condenado a estar de pé no degradado Centro da cidade, a poucos metros da rua da
Bahia que ele tanto palmilhou na mocidade. Menos mal que tenha ali, como teve em
vida, a companhia do memorialista Pedro Nava, também ele antigo habituê da
região, ambos um tanto escurecidos. Como lembra o escritor Jaime Prado Gouvêa,
outro que corre o risco de virar estátua: aqueles dois pegaram um bronze.
Menos sorte teve a poeta Henriqueta Lisboa, a quem a posteridade reservou
a solidão num canto de praça na Savassi, não longe, aliás, de sua penúltima
morada. De pé ao lado de um tufo de vegetação, sua figurinha ficou ainda mais
frágil. Indiferente ao mafuá etílico-musical em que o lugar se transforma nas
manhãs de sábado, Henriqueta, talvez por falta de companhia para papear, tem nas
mãos um livro aberto. Já o romancista Roberto Drummond, noutro canto da praça,
não lê nem papeia: segue batendo pernas pela Savassi. Se em vida se recusava a
revelar a idade, tem agora o consolo de estar estacionado, não só no chão como
no tempo. De tanto que o tocam, apalpam e abraçam, o Roberto está cada vez mais
brilhante.
É esse o problema da estátua pedestre: jazer, desfrutável, ao alcance da
irreverência de quem passa. Numa terça-feira de Carnaval, fui ver na praça da
Liberdade o grupo de estátuas dos chamados Cavaleiros de um Íntimo Apocalipse —
e dei com um bebum aconchegado de comprido no colo gélido porém acolhedor de
Fernando Sabino e Otto Lara Resende, os dois ficcionistas do célebre quarteto,
sob as vistas dos poetas Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos. Fiz uma foto
que o Estado de Minas publicou. Mais tarde transferiram a turma para a
entrada da Biblioteca Pública, local talvez à prova de desfrute.
A verdade é que em Belzonte a vida das estátuas, seja ao rés-do-chão,
seja nas alturas, não tem sido fácil. E não é de hoje. No começo do século XX, a
mulher do governador Francisco Salles se horrorizou com a nudez de três ninfas
de mármore branco italiano que adornavam um laguinho da praça da Liberdade, e
mandou trancafiá-las no almoxarifado da Prefeitura, onde as pétreas senhoritas
amargariam quatro décadas de exílio. Não só elas. Vista por alguns como dama de
costumes pouco recomendáveis, em 1926 Anita Garibaldi foi removida da praça Rui
Barbosa para locação mais discreta, no Parque Municipal, onde está até hoje.
Causou celeuma também o nu masculino que desde 1930 se exibe no Monumento
à Civilização Mineira, na mesma praça, bandeira desfraldada em punho.
Encomendada ao escultor italiano Giulio Starace, a estátua já ia ser fundida em
bronze em São Paulo quando o governador Antônio Carlos mandou ver se tudo estava
nos conformes. Não estava, constatou o emissário, a quem genitália do musculoso
anônimo pareceu inadmissível. O pobre Starace tentou defender a integridade
anatômica de sua criatura, mas teve que entregar os pontos — e providenciais
ventos da moral montanhesa fizeram tremular a bandeira, drapeando-a de modo que
uma das pontas, jogada contra o baixo ventre, se encarregasse de ocultar a
indecorosa prenda. A Civilização Mineira estava salva.
Estátuas d'Os Quatro Mineiros, em Belo
Horizonte. Da esquerda para a direita:
Fernando Sabino,
Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino.
BICHOS LITERÁRIOS
Desde o momento em que publicou seu grande livro, O encontro marcado,
em 1956, Fernando Sabino não teve mais sossego. Dia não passava sem que alguém
viesse cobrar: e o novo romance? Havia quem esperasse dele não menos que um
segundo Encontro marcado, no mínimo uma continuação do primeiro. Até
1979, quando desovou outro estrepitoso sucesso, O grande mentecapto, o
escritor mineiro viveu o estigma de ser romancista de um romance só. Talvez por
isso tenha a certa altura enveredado por uma conversa de que o gênero estava
morto, substituído que fora no coração dos leitores pela reportagem — o
livro-reportagem, explicava, algo como o A sangue frio, de Truman Capote.
O atestado de óbito do romance, como era de esperar, foi muito mal
recebido por seu colega e amigo Autran Dourado, romancista tão aplicado quanto
prolífico.
— O Fernando é gozado — reagiu o autor de A barca dos homens.
— Foi campeão de natação, e agora, como já não dá conta de nadar, quer esvaziar
a piscina...
*
Foi Sabino, aliás, quem editou em 1961 A barca dos homens, na
Editora do Autor, que fundara em parceria com Rubem Braga. Não faltou quem
dissesse que com o romance de Autran Dourado os dois editores pretendiam dar um
contrapeso de consistência literária a um catálogo no qual predominava a leveza
de cronistas como eles próprios. O fato é que o livro, com boas críticas mas
vendagem discretíssima, ficou sendo apenas o que os franceses chamam de um
sucesso de estima. O que, de resto, já estava previsto — e culpa, se há,
certamente não cabe ao poeta e psicanalista Hélio Pellegrino, embora este não
topasse com o amigo em local público sem puxar um coro:
— A barca dos homens / vai encalhar!
*
Pellegrino, excelente poeta que se foi sem publicar livro — sua poesia,
dispersa, só foi reunida em 1993, cinco anos após sua morte, no volume
Minérios domados —, nem por isso deixava de ter o que recomendar aos jovens
aspirantes às letras que com ele iam se aconselhar. Foi o que fiz em 1969,
quando Hélio esteve em Belo Horizonte para enterrar o pai. Conselhos
propriamente literários ele não tinha naquela circunstância, mas, em conversa
comigo e com seu primo Carlos Roberto, pôs-se a defender com pellegrínica
veemência a ideia de que deveríamos, sem mais tardança, mandar às favas a então
modorrenta e moralmente abafada capital mineira. Esse era o tema obsessivo de
sua peroração quando, no dia seguinte ao enterro, nós o levamos ao célebre —
ainda hoje — restaurante da Maria das Tranças, numa periferia da cidade. Naquela
sala sem qualquer luxo, frequentada por gente simples, reboava e sobretudo
destoava a voz redonda, radiofônica, de Hélio Pellegrino, num discurso em que
éramos instados a deixar urgentemente Minas Gerais, lugar inabitável, sob pena
de acabarmos secretários de Educação. Neste ponto veio da cozinha a Maria das
Tranças em pessoa, trazendo uma travessa de frango ao molho pardo, estrela-mor
do cardápio da casa. Só mesmo a chegada de tamanha maravilha para silenciar a
inflamada arenga do psicanalista, que, subitamente solenizado, avançou o nariz
sobre a travessa, respirou fundo e proclamou:
— Minas é um útero pantanoso!
*
O mesmo Hélio já era um exaltado orador esquerdista no dia em que Eloi
Lima, seu colega na faculdade de Medicina, o encontrou engalfinhado num
bate-boca ideológico com o pai, o médico e professor Brás Pellegrino,
conservador não menos chegado numa retórica incandescente.
— Ninguém há de hastear nesta casa uma bandeira vermelha! — rugia o professor,
açulando ainda mais as labaredas verbais do interlocutor.
Entre os dois, esfregando nervosamente as mãos, estava dona Assunta,
italiana cujo português guardava ainda acentos da Calábria.
— O que houve? — perguntou Eloi, alarmado.
— Num sê... — respondeu chorosa a mãe de Hélio. — Negócio de uma bandêra...
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