Número 274-A - Ano 10

São Paulo, quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

«Se não é aguda, é crônica.» (Rubem Braga) *
 

Humberto Werneck
Humberto Werneck


Caros,

Esta página constitui um boletim complementar à edição 274 do poesia.net.

A propósito do boletim dedicado à poesia de Hélio Pellegrino, o jornalista e escritor Humberto Werneck concedeu a este boletim a
graça de publicar duas de suas saborosas crônicas.

A primeira, "Pegando um bronze em Beagá" (parte do livro Esse Inferno Vai Acabar, de 2011), trata da tendência atual de erguer estátuas ao rés-do-chão, em contraposição ao modo tradicional de fixar as figuras de bronze no alto de pedestais. Entre as estátuas "pedestres" estão as que homenageiam, em Belo Horizonte, o grupo d'Os Quatro Mineiros: os escritores Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Fernando Sabino. A outra crônica, "Bichos literários", conta pequenas anedotas envolvendo integrantes do mesmo quarteto de escritores.

Humberto Werneck é, na verdade, um especialista em escritores mineiros. Em 1992, ele publicou o livro O Desatino da Rapaziada (Cia. das Letras), que traça o retrato da geração de jornalistas e escritores da qual fizeram parte... Os Quatro Mineiros. Mas esse retrato também amplia o foco para a geração anterior, a de Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava e outros.

Ao pesquisar sobre a vida desses personagens, Werneck notou que muitos deles tinham especial admiração pelo paraense Jayme Ovalle (1894-1955), uma figura extraordinária que trafegou nos meios artísticos da primeira metade do século passado. Amigo de Vinicius de Moraes, parceiro de Manuel Bandeira (é de Ovalle a música de Azulão, que tem letra do autor de "Pasárgada"), esse paraense era considerado um gênio literário que nunca pôs uma só linha no papel. No volume O Santo Sujo (Cosac Naify, 2008), Werneck biografa esse rico personagem baseando-se no depoimento desses amigos e admiradores. Elogiadíssima pelos críticos, essa biografia é um trabalho que exigiu enorme paciência e fôlego de setecentos gatos para pesquisar, entrevistar, cruzar informações.

O livro Esse Inferno Vai Acabar é a segunda reunião de crônicas publicada por Werneck. A primeira foi O Espalhador de Passarinhos & Outras Crônicas (Dubolsinho, 2010).

Mas chega de conversa. Passem logo os mais espertos certamente já fizeram isso às crônicas e deliciem-se com o texto primoroso e bem-humorado de Humberto Werneck.

 

Carlos Machado



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Crônicas mineiras

Humberto Werneck

 


PEGANDO UM BRONZE EM BEAGÁ


Foi-se o tempo em que, batidas as botas, o cidadão notável era moldado em bronze e posto a pairar acima dos viventes, no topo de um pedestal. Em Belo Horizonte, pelo menos, não se usa mais. Lá, independentemente de a alma ter subido ao Céu ou baixado ao Inferno, o camarada está hoje condenado ao purgatório do rés-do-chão, com todos os inconvenientes que daí decorrem, inclusive a sem-cerimônia dos cachorros em demanda de poste.

Talvez mais do que em outras cidades brasileiras, em Beagá parece ter vingado a moda da estátua pedestre. Embora menos que o pessoal de carne e osso, sua população brônzea não para de crescer. Dela faz parte, para começar, nosso maior poeta, que, desconfio, não deve estar gostando nada da berlinda. Não lhe bastasse ter sido chumbado a um banco na praia de Copacabana, onde volta e meia lhe afanam os óculos, na capital mineira Carlos Drummond de Andrade foi condenado a estar de pé no degradado Centro da cidade, a poucos metros da rua da Bahia que ele tanto palmilhou na mocidade. Menos mal que tenha ali, como teve em vida, a companhia do memorialista Pedro Nava, também ele antigo habituê da região, ambos um tanto escurecidos. Como lembra o escritor Jaime Prado Gouvêa, outro que corre o risco de virar estátua: aqueles dois pegaram um bronze.

Menos sorte teve a poeta Henriqueta Lisboa, a quem a posteridade reservou a solidão num canto de praça na Savassi, não longe, aliás, de sua penúltima morada. De pé ao lado de um tufo de vegetação, sua figurinha ficou ainda mais frágil. Indiferente ao mafuá etílico-musical em que o lugar se transforma nas manhãs de sábado, Henriqueta, talvez por falta de companhia para papear, tem nas mãos um livro aberto. Já o romancista Roberto Drummond, noutro canto da praça, não lê nem papeia: segue batendo pernas pela Savassi. Se em vida se recusava a revelar a idade, tem agora o consolo de estar estacionado, não só no chão como no tempo. De tanto que o tocam, apalpam e abraçam, o Roberto está cada vez mais brilhante.

É esse o problema da estátua pedestre: jazer, desfrutável, ao alcance da irreverência de quem passa. Numa terça-feira de Carnaval, fui ver na praça da Liberdade o grupo de estátuas dos chamados Cavaleiros de um Íntimo Apocalipse — e dei com um bebum aconchegado de comprido no colo gélido porém acolhedor de Fernando Sabino e Otto Lara Resende, os dois ficcionistas do célebre quarteto, sob as vistas dos poetas Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos. Fiz uma foto que o Estado de Minas publicou. Mais tarde transferiram a turma para a entrada da Biblioteca Pública, local talvez à prova de desfrute.

A verdade é que em Belzonte a vida das estátuas, seja ao rés-do-chão, seja nas alturas, não tem sido fácil. E não é de hoje. No começo do século XX, a mulher do governador Francisco Salles se horrorizou com a nudez de três ninfas de mármore branco italiano que adornavam um laguinho da praça da Liberdade, e mandou trancafiá-las no almoxarifado da Prefeitura, onde as pétreas senhoritas amargariam quatro décadas de exílio. Não só elas. Vista por alguns como dama de costumes pouco recomendáveis, em 1926 Anita Garibaldi foi removida da praça Rui Barbosa para locação mais discreta, no Parque Municipal, onde está até hoje.

Causou celeuma também o nu masculino que desde 1930 se exibe no Monumento à Civilização Mineira, na mesma praça, bandeira desfraldada em punho. Encomendada ao escultor italiano Giulio Starace, a estátua já ia ser fundida em bronze em São Paulo quando o governador Antônio Carlos mandou ver se tudo estava nos conformes. Não estava, constatou o emissário, a quem genitália do musculoso anônimo pareceu inadmissível. O pobre Starace tentou defender a integridade anatômica de sua criatura, mas teve que entregar os pontos — e providenciais ventos da moral montanhesa fizeram tremular a bandeira, drapeando-a de modo que uma das pontas, jogada contra o baixo ventre, se encarregasse de ocultar a indecorosa prenda. A Civilização Mineira estava salva.


Os Quatro Mineiros
Estátuas d'Os Quatro Mineiros, em Belo Horizonte. Da esquerda para a direita:
Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos e Hélio Pellegrino.



BICHOS LITERÁRIOS


Desde o momento em que publicou seu grande livro, O encontro marcado, em 1956, Fernando Sabino não teve mais sossego. Dia não passava sem que alguém viesse cobrar: e o novo romance? Havia quem esperasse dele não menos que um segundo Encontro marcado, no mínimo uma continuação do primeiro. Até 1979, quando desovou outro estrepitoso sucesso, O grande mentecapto, o escritor mineiro viveu o estigma de ser romancista de um romance só. Talvez por isso tenha a certa altura enveredado por uma conversa de que o gênero estava morto, substituído que fora no coração dos leitores pela reportagem — o livro-reportagem, explicava, algo como o A sangue frio, de Truman Capote.

O atestado de óbito do romance, como era de esperar, foi muito mal recebido por seu colega e amigo Autran Dourado, romancista tão aplicado quanto prolífico.

— O Fernando é gozado — reagiu o autor de A barca dos homens.
— Foi campeão de natação, e agora, como já não dá conta de nadar, quer esvaziar a piscina...

                          *
Foi Sabino, aliás, quem editou em 1961 A barca dos homens, na Editora do Autor, que fundara em parceria com Rubem Braga. Não faltou quem dissesse que com o romance de Autran Dourado os dois editores pretendiam dar um contrapeso de consistência literária a um catálogo no qual predominava a leveza de cronistas como eles próprios. O fato é que o livro, com boas críticas mas vendagem discretíssima, ficou sendo apenas o que os franceses chamam de um sucesso de estima. O que, de resto, já estava previsto — e culpa, se há, certamente não cabe ao poeta e psicanalista Hélio Pellegrino, embora este não topasse com o amigo em local público sem puxar um coro:

A barca dos homens / vai encalhar!

                          *
Pellegrino, excelente poeta que se foi sem publicar livro — sua poesia, dispersa, só foi reunida em 1993, cinco anos após sua morte, no volume Minérios domados —, nem por isso deixava de ter o que recomendar aos jovens aspirantes às letras que com ele iam se aconselhar. Foi o que fiz em 1969, quando Hélio esteve em Belo Horizonte para enterrar o pai. Conselhos propriamente literários ele não tinha naquela circunstância, mas, em conversa comigo e com seu primo Carlos Roberto, pôs-se a defender com pellegrínica veemência a ideia de que deveríamos, sem mais tardança, mandar às favas a então modorrenta e moralmente abafada capital mineira. Esse era o tema obsessivo de sua peroração quando, no dia seguinte ao enterro, nós o levamos ao célebre — ainda hoje — restaurante da Maria das Tranças, numa periferia da cidade. Naquela sala sem qualquer luxo, frequentada por gente simples, reboava e sobretudo destoava a voz redonda, radiofônica, de Hélio Pellegrino, num discurso em que éramos instados a deixar urgentemente Minas Gerais, lugar inabitável, sob pena de acabarmos secretários de Educação. Neste ponto veio da cozinha a Maria das Tranças em pessoa, trazendo uma travessa de frango ao molho pardo, estrela-mor do cardápio da casa. Só mesmo a chegada de tamanha maravilha para silenciar a inflamada arenga do psicanalista, que, subitamente solenizado, avançou o nariz sobre a travessa, respirou fundo e proclamou:

— Minas é um útero pantanoso!

                          *
O mesmo Hélio já era um exaltado orador esquerdista no dia em que Eloi Lima, seu colega na faculdade de Medicina, o encontrou engalfinhado num bate-boca ideológico com o pai, o médico e professor Brás Pellegrino, conservador não menos chegado numa retórica incandescente.

— Ninguém há de hastear nesta casa uma bandeira vermelha! — rugia o professor, açulando ainda mais as labaredas verbais do interlocutor.

Entre os dois, esfregando nervosamente as mãos, estava dona Assunta, italiana cujo português guardava ainda acentos da Calábria.

— O que houve? — perguntou Eloi, alarmado.

— Num sê... — respondeu chorosa a mãe de Hélio. — Negócio de uma bandêra...

 

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Carlos Machado, 2012

Humberto Werneck
•  "Pegando um bronze em Beagá"
    Esse Inferno Vai Acabar
   
Arquipélago Editorial, Porto Alegre, 2011
•  "Bichos Literários"
    O Estado de S. Paulo, 4/12/2011
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* Rubem Braga, em resposta à pergunta "O que é crônica?",
  feita por um jornalista.