Lenilde Freitas
Caros amigos,
Neste 8 de março, Dia da
Mulher, o poesia.net destaca uma poeta que já tive o prazer de apresentar
aqui na
edição 251, em junho de 2008: Lenilde Freitas.
Na época, eu ainda não
tivera a oportunidade de ler toda a sequência de trabalhos da escritora.
Nascida em Campina
Grande (PB), Lenilde Freitas formou-se em Letras em Recife e fez especializações
em poesia na Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos. Estreou em livro no
ano de 1987, quando publicou as coletâneas de poemas Desvios e Esboço
de Eva. Em seguida, deu a público Cercanias (1989), Espaço Neutro
(1991), Tributos (1994) e Grãos na Eira (2001). Em 2009
Lenilde fez uma incursão na literatura para crianças com o volume de versos A
Casa Encantada. No ano seguinte, produziu uma seleção de seus trabalhos
anteriores publicada com o título de A Corça no Campo.
Embora eu tenha em mãos
quase todas as obras citadas acima
— exceto as duas
primeiras
—, extraí todos os poemas
ao lado de A Corça no Campo. Acredito que, desse modo, não apenas fica mais
fácil citar uma única fonte como respeito as eventuais revisões que a autora
possa ter feito. Mas também me permiti uma exceção: o poema "A Hart Crane",
do livro Tributos.
Esse texto é uma homenagem ao jovem poeta modernista americano Hart Crane
(1899-1932) que se atirou ao mar numa viagem do México para Nova York.
Vinicius de Moraes também dedicou a ele um poema intitulado "O Poeta
Hart Crane Suicida-se no Mar", de 1953. Incluí ainda dois outros tributos a
poetas: o americano
T.S. Eliot
e o pernambucano
Carlos Pena Filho.
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Para o crítico literário
Antonio Candido, a poesia de Lenilde Freitas "tem um dos dons essenciais da
modernidade: dizer muita coisa por meio de poucas, quase nenhumas palavras,
organizadas numa sintaxe que parece fechar a comunicação, mas na verdade
multiplica suas possibilidades." Sem dúvida, o mestre Antonio Candido põe em
evidência um aspecto central desse trabalho poético.
Com pinceladas
impressionistas, Lenilde consegue dizer o que aparentemente não está nas
palavras. "O toque do sino / o latido do cão / o ruído de passos." ("Ronda")
Estas três linhas soltas, desprovidas de verbos, dão ao leitor a oportunidade de
imaginar os nexos existentes entre elas. E segue-se uma primeira pergunta ("É
tudo tempo pretérito / que conjugaremos até a morte?") de um total de cinco
interrogações enfeixadas no poema. E o leitor atento é convidado a meditar.
Em poemas como
"Dessemelhanças" o que se destaca é a atenção do observador para detalhes
triviais, apresentados intencionalmente numa linguagem prosaica. É como se
alguém anotasse num diário impressões instantâneas: "vejo a calçada
(...) / e um cachorro que passa / triste como quem fareja / a própria morte". Na
mesma mirada, surgem dois relógios em desajuste cronológico e a lembrança,
simples e desconcertante, de que a rua muda de nome algumas quadras depois.
"Pássaro Noturno" apresenta um exercício similar de apreensão da realidade
circundante. Não é estranho, portanto, que uma das divisões da coletânea A
Corça no Campo se chame,sintomaticamente, "O Olhar em Torno".
A mesma observação
dedicada às coisas miúdas estende-se aos movimentos fundamentais da vida, como o
amor, a passagem do tempo, a morte. A canção "À Revelia" é um exemplo cristalino
desse outro olhar mais amplo. Uma canção suave, macia, sem incêndios. Como diz o
professor Lourival Holanda, da UFPE, no prefácio de A Corça no Campo, a
poesia de Lenilde é "como uma cantata em surdina".
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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Cantata em surdina
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Lenilde Freitas
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DESSEMELHANÇAS
Do lugar em que estou
vejo a calçada do outro lado
e um cachorro que passa
triste como quem fareja
a própria morte.
Aqui, enquanto dois relógios batem
dessemelhantes idêntica hora,
uma vespa insiste
rancorosos declives no vácuo
onde adivinho partículas
de poeira imitando cardumes
— pois só tenho olhos para uma coisa:
o cão subindo a rua
que, sendo a mesma, muda de nome
a alguns quarteirões daqui.
PÁSSARO NOTURNO
Para Deborah Brennand
Na bilha de barro
a água esfria
sobre o peitoril da janela.
Há um desassossego
de folhas em agosto.
Os capins
embaraçam seus cabelos
no vento que varre o pátio
da igreja enraizada
num canto da praça.
A meus pés,
de um cachorro
cujo nome desconheço,
jorra afeto.
Há tempo... há tempo
diz o pássaro noturno.
E, como a lua,
a noite oferta-me a própria cabeça
em uma bandeja de prata.
"Para melhor compor as madrugadas /
também os galos acordavam cedo"
RIO VERDE
Para melhor compor as madrugadas
também os galos acordavam cedo.
O vento ao passar pela varanda
contava à folhagem um segredo.
A hora era imensa e tão pouca
ó rastro da manhã que já desanda
no tempo, despetalando sim cada
palavra frágil flor de nossa boca.
Os colibris voavam bailarinos
sobre as sépalas verdes do futuro.
A brisa prenuncia assim os finos
dedos da chuva fria sobre o muro.
Então o relógio para, a vida zera.
Desfaz-se a neblina de quimera.
CERCANIAS
Há um prazo certo
um tempo justo
para olhar este mundo
— de
relance.
Num abrir e fechar de olhos,
vão-se as paisagens
cercanias e miragens
—
última chance.
RONDA
O toque do sino
o latido do cão
o ruído de passos.
É tudo tempo pretérito
que conjugaremos até a morte?
Que noite é essa
que amanhã reconheceremos?
Que corpo é esse
que não é o nosso?
Em que pensamos nessa madrugada
de sombras que se arrastam até o futuro
onde logo mais estaremos e não estaremos?
Quem somos nós aqui
que já não recordamos?
Que tempo passa e não passa
ó almas que não dormem nunca?
À REVELIA
Porque o amor nasce à revelia
e atravessa o silêncio dos cristais
algum risco lá fora vai correr
a vidraça fumarada deste dia.
Porque o amor nasce à revelia
vezes sempre, sempre
sempre e muito mais,
coberto de fuligem o tempo para,
abre bem os olhos para ver
o amor nascer à revelia
do ontem, do hoje, do agora.
Depois, cansado, se entedia
ou lembra que é tempo,
e vai-se embora.
"O mar inteiro aguarda / a luz que
desce"
A HART CRANE
This fabulous shadow
only the sea keeps.
Acima da linha d'água
o homem delineia seu intento submersível.
Na manhã em que o obscurecer do sol
não é um aviso de eclipse
quase tudo é invisível:
Náufragos com suas respostas de silêncio
para ouvidos de espuma
Havana trezentas milhas ao norte
orlas, calafrios e lembranças
de salgueiros melodiando sons.
Em surdina o homem desveste seu casaco.
Abaixo da linha d'água
algas se movimentam
polvos nascem transparentes
peixes espreitam sob rochas:
o mar inteiro aguarda
a luz que desce.
A T.S. ELIOT
O portão
com gemidos de vento
contorce dobradiças
em lascivo lamento.
A névoa,
forma não corpórea da manhã,
se desvanece
roçando o muro
onde o orvalho
lava com a língua
o rubro da romã.
A CARLOS PENA FILHO
Porque sei de cor as cores dos cajus
e as tessituras da vida que passa,
sinto que não só se afastam as manhãs
ou as tardes mornas que o Recife faz.
Como um ritual de águas e barcaças,
vão-se os azuis e não retornam mais.
ESTRANHA
SOMBRA
A noite entra
sem levantar os olhos.
A lâmpada acesa
é mero lampejo
— sorriso sem alegria.
No desenho do prato
sobre a mesa
um pássaro cruza o horizonte
onde rubra declina a luz do dia.
Por que sangra
o céu desta paisagem?
Por que resmunga
lá fora a ventania?
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