Número 275 - Ano 10

São Paulo, quarta-feira, 7 de março de 2012

«Eu quero sempre mais do que vem nos milagres.» (Cecília Meireles) *
 


Lenilde Freitas


 

Caros amigos,

Neste 8 de março, Dia da Mulher, o poesia.net destaca uma poeta que já tive o prazer de apresentar aqui na edição 251, em junho de 2008: Lenilde Freitas. Na época, eu ainda não tivera a oportunidade de ler  toda a sequência de trabalhos da escritora.

Nascida em Campina Grande (PB), Lenilde Freitas formou-se em Letras em Recife e fez especializações em poesia na Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos. Estreou em livro no ano de 1987, quando publicou as coletâneas de poemas Desvios e Esboço de Eva. Em seguida, deu a público Cercanias (1989), Espaço Neutro (1991), Tributos (1994) e Grãos na Eira (2001). Em 2009 Lenilde fez uma incursão na literatura para crianças com o volume de versos A Casa Encantada. No ano seguinte, produziu uma seleção de seus trabalhos anteriores publicada com o título de A Corça no Campo.

Embora eu tenha em mãos quase todas as obras citadas acima exceto as duas primeiras , extraí todos os poemas ao lado de A Corça no Campo. Acredito que, desse modo, não apenas fica mais fácil citar uma única fonte como respeito as eventuais revisões que a autora possa ter feito. Mas também me permiti uma exceção: o poema "A Hart Crane", do livro Tributos.

Esse texto é uma homenagem ao jovem poeta modernista americano Hart Crane (1899-1932) que se atirou ao mar numa viagem do México para Nova York. Vinicius de Moraes também dedicou a ele um poema intitulado "O Poeta Hart Crane Suicida-se no Mar", de 1953. Incluí ainda dois outros tributos a poetas: o americano T.S. Eliot e o pernambucano Carlos Pena Filho

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Para o crítico literário Antonio Candido, a poesia de Lenilde Freitas "tem um dos dons essenciais da modernidade: dizer muita coisa por meio de poucas, quase nenhumas palavras, organizadas numa sintaxe que parece fechar a comunicação, mas na verdade multiplica suas possibilidades." Sem dúvida, o mestre Antonio Candido põe em evidência um aspecto central desse trabalho poético.

Com pinceladas impressionistas, Lenilde consegue dizer o que aparentemente não está nas palavras. "O toque do sino / o latido do cão / o ruído de passos." ("Ronda") Estas três linhas soltas, desprovidas de verbos, dão ao leitor a oportunidade de imaginar os nexos existentes entre elas. E segue-se uma primeira pergunta ("É tudo tempo pretérito / que conjugaremos até a morte?") de um total de cinco interrogações enfeixadas no poema. E o leitor atento é convidado a meditar.

Em poemas como "Dessemelhanças" o que se destaca é a atenção do observador para detalhes triviais, apresentados intencionalmente numa linguagem prosaica. É como se alguém anotasse num diário impressões instantâneas: "vejo a calçada (...) / e um cachorro que passa / triste como quem fareja / a própria morte". Na mesma mirada, surgem dois relógios em desajuste cronológico e a lembrança, simples e desconcertante, de que a rua muda de nome algumas quadras depois.

"Pássaro Noturno" apresenta um exercício similar de apreensão da realidade circundante. Não é estranho, portanto, que uma das divisões da coletânea A Corça no Campo se chame,sintomaticamente, "O Olhar em Torno".

A mesma observação dedicada às coisas miúdas estende-se aos movimentos fundamentais da vida, como o amor, a passagem do tempo, a morte. A canção "À Revelia" é um exemplo cristalino desse outro olhar mais amplo. Uma canção suave, macia, sem incêndios. Como diz o professor Lourival Holanda, da UFPE, no prefácio de A Corça no Campo, a poesia de Lenilde é "como uma cantata em surdina".



Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



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Cantata em surdina

Lenilde Freitas

 



DESSEMELHANÇAS

Do lugar em que estou
vejo a calçada do outro lado
e um cachorro que passa
triste como quem fareja
a própria morte.
Aqui, enquanto dois relógios batem
dessemelhantes idêntica hora,
uma vespa insiste
rancorosos declives no vácuo
onde adivinho partículas
de poeira imitando cardumes
— pois só tenho olhos para uma coisa:
o cão subindo a rua
que, sendo a mesma, muda de nome
a alguns quarteirões daqui.



PÁSSARO NOTURNO

                Para Deborah Brennand

Na bilha de barro
a água esfria
sobre o peitoril da janela.
Há um desassossego
de folhas em agosto.
Os capins
embaraçam seus cabelos
no vento que varre o pátio
da igreja enraizada
num canto da praça.
A meus pés,
de um cachorro
cujo nome desconheço,
jorra afeto.
Há tempo... há tempo
diz o pássaro noturno.
E, como a lua,
a noite oferta-me a própria cabeça
em uma bandeja de prata.



"Para melhor compor as madrugadas / também os galos acordavam cedo" (Lenilde Freitas)
"Para melhor compor as madrugadas / também os galos acordavam cedo"



RIO VERDE

Para melhor compor as madrugadas
também os galos acordavam cedo.
O vento ao passar pela varanda
contava à folhagem um segredo.
A hora era imensa e tão pouca
ó rastro da manhã que já desanda
no tempo, despetalando sim cada
palavra frágil flor de nossa boca.
Os colibris voavam bailarinos
sobre as sépalas verdes do futuro.
A brisa prenuncia assim os finos
dedos da chuva fria sobre o muro.
Então o relógio para, a vida zera.
Desfaz-se a neblina de quimera.



CERCANIAS

Há um prazo certo
um tempo justo
para olhar este mundo
             — de relance.

Num abrir e fechar de olhos,
vão-se as paisagens
cercanias e miragens
             — última chance.



RONDA

O toque do sino
o latido do cão
o ruído de passos.
É tudo tempo pretérito
que conjugaremos até a morte?
Que noite é essa
que amanhã reconheceremos?
Que corpo é esse
que não é o nosso?
Em que pensamos nessa madrugada
de sombras que se arrastam até o futuro
onde logo mais estaremos e não estaremos?
Quem somos nós aqui
que já não recordamos?
Que tempo passa e não passa
ó almas que não dormem nunca?



À REVELIA

Porque o amor nasce à revelia
e atravessa o silêncio dos cristais
algum risco lá fora vai correr
a vidraça fumarada deste dia.

Porque o amor nasce à revelia
vezes sempre, sempre
sempre e muito mais,
coberto de fuligem o tempo para,
abre bem os olhos para ver
o amor nascer à revelia
do ontem, do hoje, do agora.

Depois, cansado, se entedia
ou lembra que é tempo,
e vai-se embora.



"O mar inteiro aguarda / a luz que desce" (Lenilde Freitas)
"O mar inteiro aguarda / a luz que desce"



A HART CRANE

               This fabulous shadow
               only the sea keeps.



Acima da linha d'água
o homem delineia seu intento submersível.
Na manhã em que o obscurecer do sol
não é um aviso de eclipse
quase tudo é invisível:
Náufragos com suas respostas de silêncio
para ouvidos de espuma
Havana trezentas milhas ao norte
orlas, calafrios e lembranças
de salgueiros melodiando sons.

Em surdina o homem desveste seu casaco.

Abaixo da linha d'água
algas se movimentam
polvos nascem transparentes
peixes espreitam sob rochas:
o mar inteiro aguarda
a luz que desce.



A T.S. ELIOT

O portão
com gemidos de vento
contorce dobradiças
em lascivo lamento.
A névoa,
forma não corpórea da manhã,
se desvanece
roçando o muro
onde o orvalho
lava com a língua
o rubro da romã.



A CARLOS PENA FILHO

Porque sei de cor as cores dos cajus
e as tessituras da vida que passa,
sinto que não só se afastam as manhãs
ou as tardes mornas que o Recife faz.

Como um ritual de águas e barcaças,
vão-se os azuis e não retornam mais.



ESTRANHA SOMBRA

A noite entra
sem levantar os olhos.

A lâmpada acesa
é mero lampejo
— sorriso sem alegria.

No desenho do prato
sobre a mesa
um pássaro cruza o horizonte
onde rubra declina a luz do dia.

Por que sangra
o céu desta paisagem?

Por que resmunga
lá fora a ventania?


 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2012

Lenilde Freitas
•  "A Hart Crane"
    Tributos
   
Editora Giordano, São Paulo, 1994
•  Demais poemas
    A Corça no Campo
   
Ed. da autora, Recife, 2010
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* Cecília Meireles, "Explicação", de Vaga Música (1942),
  in Obra Poética, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1987
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