Henrique Augusto Chaudon
Caros,
Meu primeiro contato com o poeta fluminense Henrique Augusto Chaudon ocorreu por
acaso. Ele me enviou uma observação sobre o poema “Quadrilátero Ferrífero”, de
Hélio Pellegrino (poesia.net
n. 274). Pelo jeito da escrita, achei que o missivista também era praticante
da poesia.
No rodapé da mensagem, havia o link para um blog. Curioso, fui conferir e não
deu outra: de fato, havia ali um poeta. Voltei a procurá-lo, e ele me remeteu,
em PDF, uma cópia de seu livro mais recente, Poemas, publicado em 2005. O
resto são trocas de e-mails que desaguaram neste boletim.
Henrique Augusto Chaudon nasceu em Niterói na safra de 1955. Até o momento, já
deu a público quatro coletâneas de poesia: Confissões a Baco e Outros Poemas
(1977); Vento (1982); A Terceira Gaveta e Poemas Anteriores
(1994); e o já citado Poemas, que reúne uma seleção de textos dos livros
anteriores e inclui um punhado de poemas inéditos.
Chaudon também participou de várias antologias e no momento está preparando o
volume Algumas Sílabas. Profissionalmente, ele dedica-se à marcenaria, em
especial à restauração de mobiliário antigo.
Na pequena antologia ao lado, os dois primeiros poemas, I e IV, pertencem ao
bloco “Confissões a Baco”. Inspirado pelo deus do vinho, o poeta aprecia o mundo
com um olhar cauteloso e, na verdade, contrário ao espírito excessivo do
patrono. “Não queiras prolongar / teus momentos de alegria (...) / Não te
lamentes, se a noite acaba”.
O mesmo tom aparece no poema IV. O sujeito lírico prefere ficar “sem cerveja,
sem cigarro, sem amores” e roga às garçonetes que abandonem tudo e corram para
casa. São versos de um filho desnaturado de Baco.
Uma característica da poesia de Henrique Augusto Chaudon é a transubstanciação
de acontecimentos triviais, como a torneira pingando na pia, em matéria de
reflexão existencial. O processo se repete com os papéis e fotos guardados “na
terceira gaveta / a contar de cima”.
Destaco, por fim, o poema “Momento na Praia”. Nele o narrador descreve, com
desconsolo e ironia, a devastação de uma praia poluída. “Nas margens da
Guanabara / em marés de sizígia e beleza / aflora uma arte aleatória e
grotesca”.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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Recorde de leitores
no site Alguma Poesia
Uma notícia que muito me alegra: neste mês de março, o site
Algumapoesia.com.br
atingiu a média de 2.157 visitantes por dia, os quais leem 5.042 páginas em
sua passagem. São números que merecem comemoração, dadas a discrição do site e
seu foco em poesia.
Outro detalhe: em 14 de março — data de nascimento do poeta Castro Alves e Dia
Nacional da Poesia —, o movimento no site atingiu o recorde histórico de quase
3000 visitantes.
É claro que o ideal seriam milhares, milhões de leitores.
Mas, como diz o poeta Drummond, de tudo fica um pouco. Espero que, nessas
incursões, cada internauta fique com alguma poesia.
Obrigado a todos, e um sonoro viva à poesia.
•o•
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A terceira gaveta
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Henrique Augusto Chaudon
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CONFISSÕES A BACO
I
Não queiras prolongar
teus momentos de alegria.
Não marques encontros a que não irás.
Bebe este vinho enquanto existe:
o copo tem fundo,
embora não tenhas.
Não te lamentes, se a noite acaba:
ela acaba sempre,
sempre recomeça.
Que o sol da manhã surgindo
apague toda a ilusão desta noite.
Michelangelo Caravaggio, Baco,
óleo sobre tela, c. 1595
IV
Sinto-me triste
pelas garçonetes das altas madrugadas.
Olho suas sandálias de salto alto
seus vestidos curtos
e tenho vontade de dizer:
Que fazeis aqui, meninas?
A noite é voraz e desumana.
Correi, correi para casa.
Deixai-me aqui sem cerveja, sem cigarros, sem amores.
Correi e amamentai vossos filhos, meninas,
que os filhos da noite
em qualquer alambique
mamam.
ESTE NÃO TEM TÍTULO
Não leias versos
esperando soluções:
os poemas não dão respostas,
eles propõem dúvidas atrozes.
Todo poema busca algo ele próprio,
não traz nada acabado:
nem sua forma,
ou seu tema,
ou tudo.
Não julgues também os poemas, coitados.
Eles não têm culpa alguma
do mundo estar assim
ou o poeta assado.
DISSOLUÇÃO II
A água pingava
sobre os talheres na pia,
fluía, perdia-se no ralo.
A água pingava, pingava,
os talheres reluziam prata,
a água sonava nos talheres na pia.
O tempo pingava
sobre os homens na Terra,
fluía, perdia-se entre os homens.
O tempo pingava, pingava,
os homens ressonavam treva,
o tempo fugia sob a lua fria.
Pingava inexorável o tempo
sobre a noite, os homens, os talheres na pia.
O tempo pingava sobre a água,
com ela perdia-se no ralo:
água e tempo escorriam
gastando Terra, homens, talheres na pia.
TEMPO DE PARTIDA
Esparsos pelo vento
os dias, horas, pensamentos.
É tempo, eu sei, há muito, de partida.
Ir pelos jardins de sol e chuva
em procura paciente, silenciosa busca
entre musgo e saibro, espinho e flor.
Pois quem sabe o pó da estrada
nas sandálias gastas e feridas
não pede ao pão mais do que trigo
nem à paisagem alheia senão paz.
Porque é tempo, há muito, de partida
e nas pousadas dormem insensatos homens,
irei só, e já.
O vento que passou levando a vida,
a vida deixa esparsa no caminho.
Por isso eu vou.
E porque é tempo, há muito, de partida.
NOTURNO
A noite é silenciosa.
Um gesto
a quebraria em mil pedaços.
Talvez um grito
não a estilhaçasse tal um gesto.
E hora de ficar parado
sentado imovelmente na cadeira.
Vejo a noite em meu redor:
desgasta a pedra, os campos,
meus cabelos, tudo quanto toco.
Nao me esforçarei agora.
Sentado aqui nesta cadeira
ouvirei seu falar mudo e convincente:
ensina mais que os longes todos,
mais que os alfarrábios.
Mais,
muito mais.
Avril Brand (Irlanda), Sea Shore, óleo sobre tela, s/data
MOMENTO NA PRAIA
As marés vivas
e suas oferendas bizarras...
Na praia de outono
enquanto a lua sobe
e o sol se esconde
pousam gaivotas e urubus.
A fímbria violeta é toalha estendida.
Bichos do mar e da terra
intumescidos
bonecas plásticas desmembradas
um pé de chinelo
garrafão de vinho barato, seringas, camisinhas
um carretel de linha 10...
Trastes patéticos:
lembram os restos de algum indigente naufrágio.
Nas margens da Guanabara
em marés de sizígia e beleza
aflora uma arte aleatória e grotesca.
Mecanizados, prestos, eficientes
os homens da Limpeza Urbana
recolhem a fina flor de uma civilização.
POEMA DO VENTO QUE NÃO VOLTA
Quando aquele vento soprou,
antigo, longo,
cheio de pólen e esperanças,
senti que eu jamais me esqueceria.
Nunca mais — pensei — passarás.
Serei outro, quando retornares.
Serás outro a mexer em meus cabelos.
E outra, a terra que me veja.
ALGUNS PAPÉIS
Na terceira gaveta
a contar de cima
à esquerda da escrivaninha
guardo esperançoso alguns papéis.
Há também uma caixa com fotografias
quase antigas:
ensolaradas, cheias de vento, cheias de mar.
Nos papéis
escrevi poemas que penso um dia publicar
se eu for capaz de alguns reparos.
Quanto às fotografias
às vezes sinto que me chamam na noite
e já nada mais posso fazer.
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