Cecília Meireles
Caros amigos,
Embora há pelo menos uns 40 anos eu leia
e até saiba de cor alguns versos do magnífico Romanceiro da Inconfidência,
de Cecília Meireles, já fazia algum tempo que eu não voltava a ler esse livro.
Fiz isso agora, às vésperas do 220º aniversário daquele “vinte e um de abril
sinistro” (palavras de Cecília), o de 1792. E saí dessa leitura, entre as muitas
que já fiz, profundamente gratificado, embevecido. O Romanceiro de
Cecília é um trabalho monumental.
De fato, o 21 de abril que está no eixo
dessa história é data sinistra, macabra, horripilante. Marca a execução na
forca, seguida do esquartejamento, do alferes e dentista prático Joaquim José da
Silva Xavier, o Tiradentes. Seu crime: sonhar com a liberdade e conspirar pela
independência do Brasil.
O alferes – posto militar hoje
equivalente a segundo-tenente ― foi sentenciado à pena máxima. Assumiu sozinho a
culpa da conspiração. Seus companheiros (cerca de vinte) foram condenados ao
degredo perpétuo na África. Entre eles estavam os juristas Tomás Antônio Gonzaga
e Cláudio Manoel da Costa e o militar Inácio de Alvarenga Peixoto, três poetas.
Tomás Antônio, o árcade Dirceu,
celebrizou-se pelos versos que dedicou à sua pastora Marília, personagem
inspirada na musa Maria Doroteia Joaquina de Seixas Brandão. Alvarenga também
dedicou belos cantos à esposa Bárbara Heliodora. Cláudio Manoel nem chegou a ser
levado para o Rio de Janeiro, sede da colônia. Ex-secretário de governo, foi
assassinado na prisão, em Minas. Acredita-se que ele sabia demais e poderia
revelar fatos que comprometeriam autoridades locais. Tomás Antônio Gonzaga e
Alvarenga Peixoto morreram no exílio, o primeiro em Moçambique e o outro em
Angola.
•o•
O BÊBEDO E A DONZELA
O Romanceiro da Inconfidência representa um livro único na história da
literatura brasileira. Nenhum outro poeta se debruçou sobre um episódio
histórico e produziu resultado tão ambicioso. Não se trata de escrever um ou
outro bom poema sob a inspiração de um grande tema. Cecília escreveu um volume
de 270 páginas (esse é o número de uma edição que tenho, publicada pelo extinto
Círculo do Livro, nos anos 70), contendo 85 romances ― gênero poético de origem
medieval, assim como as narrativas de cordel ―, mais 11 cenários e falas
introdutórias aos sete blocos de poemas em que a obra se organiza. E página após
página, o nível do trabalho nunca resvala para a mediocridade, o que seria até
aceitável, dada a extensão da empreitada.
O Romanceiro foi publicado em
1953. Não tenho nenhum material que informe como a escritora procedeu em sua
elaboração. No entanto, não resta a menor dúvida de que ela estudou os autos de
devassa da Inconfidência para inteirar-se das acusações oficiais, das delações
e, por fim, das condenações dos conspiradores. Também pesquisou usos e costumes
da época, inteirou-se de histórias e personagens não diretamente associados à
conspiração, mas que caracterizam o modo de vida no final dos 1700 em Minas
Gerais.
É assim que surgem os romances sobre o
contratador João Fernandes e sua mulher, a negra Chica da Silva ― “a
Chica-que-manda”. Há também vários personagens inventados ou recriados com base
em relatos de época. É o caso de grupos de pessoas, como os tropeiros do
"Romance XXX", o cigano do "Romance XXXIII", ou o filosófico “bêbedo descrente”
do "Romance LXII". São pessoas que aparecem para fazer um comentário, indicar o
que se pensava na época ou mesmo mostrar um pouco dos costumes vigentes. Nesse
último caso está o "Romance da Donzela Assassinada". É a terrível história de um
pai que mata a filha por entender que ela acenara o lenço para um passante,
flertando com ele.
•o•
FÔLEGO CAMONIANO
Ao reunir todos esses dados e
transfigurá-los em poesia do mais elevado quilate, Cecília mostrou-se única. O
Romanceiro da Inconfidência é trabalho de fôlego camoniano. Perfeito na
descrição da vida econômica e política das Minas Gerais, o livro também desce ao
cotidiano, às relações entre as pessoas comuns, as autoridades. As ambições, os
negócios, o ouro.
O “Romance XXI ou das Ideias” é primoroso nesse aspecto (veja o primeiro texto
ao lado). Sem nunca perder o sentido musical, que é uma das marcas de sua
poesia, a autora nesse romance traça um retrato completo de Minas: “As lavras
inchadas de ouro. / Os diamantes entre as pedras / Negros, índios e mulatos. /
Almocafres e gamelas.” Observe: ela vai ao detalhe dos instrumentos. Almocafre é
um tipo de enxada terminada em ponta usada na mineração.
Esse romance, por si só, constitui uma
obra-prima. Ele é organizado como um simples rol de coisas, pessoas e situações,
muitas vezes declinadas numa única palavra: “Candombeiros. Feiticeiros. /
Ungüentos. Emplastos. Ervas. / Senzalas. Tronco. Chibata. / Congos. Angolas.
Benguelas. / Ó imenso tumulto humano! / E as ideias.”
Cada um dos blocos que descrevem um
ambiente termina com o verso curto “E as ideias”. São as ideias da Revolução
Americana, da Revolução Francesa, os anseios de independência.
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OS DELATORES
O "Romance de Joaquim Silvério" fala da
pusilanimidade do delator, considerado no texto uma figura “impenitente”, mais
canalha que o traidor bíblico. “Melhor negócio que Judas / fazes tu, Joaquim
Silvério”. O caixeiro Vicente Vieira da Mota, do "Romance XLVI", é outro
delator. A pessoa que fala no texto diz que esse Mota usou os próprios dentes
que o Alferes pusera em sua boca para morder, como uma víbora, o dentista que o
tratara. Aqui, aproveitando o contexto odontológico, vem uma brilhante sequência: “Grandes medos mastigados... // O medo nos incisivos, / nos caninos,
nos molares; / o medo a tremer nos queixos, / a descer aos calcanhares; / o medo a
abalar a terra; / o medo a toldar os ares;”.
O “Romance das Palavras Aéreas” é outro
momento em que a poesia ceciliana atinge o zênite. “Ai, palavras, ai, palavras,
/ que estranha potência, a vossa! (...) Sois o sonho e sois a audácia, /
calúnia, fúria, derrota”.
Nossa pequena amostra dessa obra
magistral termina com o “Romance dos Ilustres Assassinos”. Trata-se de uma
forte invectiva a autoridades, juízes, magistrados e todos aqueles que, tendo
poder, dispõem da vida e da morte de outros, apegados apenas aos seus próprios
interesses. “Ó grandes oportunistas, / sobre o papel debruçados , / que
calculais mundo e vida / em contos, doblas, cruzados (...)”
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HERÁCLITO E A LEITURA
Se você nunca leu o Romanceiro,
corra à biblioteca, corra à livraria e descubra o que está perdendo. Dei uma
olhada em livrarias e vi que existem edições da obra que podem ser compradas por
15 reais. Mesmo que você já tenha lido, aproveite para revisitar essa obra
impressionante.
Um amigo meu vive dizendo que não existe
releitura. Assim como Heráclito afirma que ninguém pode se banhar duas vezes no
mesmo rio, também ― diz esse amigo ― ninguém relê o mesmo livro. Bem, o livro,
inclusive o objeto físico, pode ser o mesmo. Mas o leitor é certamente outro, e
isso determina que ele sempre faz uma leitura, e não uma releitura.
Agora, ao revisitar o mesmo volume do
Romanceiro que tenho há décadas, comprovei essa teoria de meu amigo. E, mais
do que nunca, fiquei maravilhado, embasbacado mesmo, com a força da poesia dessa
imensa Cecília Meireles. Foi como se eu tivesse lido pela primeira vez.
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MAIS SOBRE CECÍLIA
A carioca Cecília Meireles (1901-1964) já
esteve em foco várias vezes aqui no poesia.net. Para saber mais sobre ela
e sua poesia, visite os outros boletins em que ela aparece:
005 – Em séculos de sombra
260 – Canções de Cecília
261 – Poemas diante do espelho
267 – Hora de brincar
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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Romanceiro da Inconfidência
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Cecília Meireles
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ROMANCE XXI
ou
DAS IDÉIAS
A vastidão desses campos.
A alta muralha das serras.
As lavras inchadas de ouro.
Os diamantes entre as pedras.
Negros, índios e mulatos.
Almocafres e gamelas.
Os rios todos virados.
Toda revirada, a terra.
Capitães, governadores,
padres intendentes, poetas.
Carros, liteiras douradas,
cavalos de crina aberta.
A água a transbordar das fontes.
Altares cheios de velas.
Cavalhadas. Luminárias.
Sinos, procissões, promessas.
Anjos e santos nascendo
em mãos de gangrena e lepra.
Finas músicas broslando
as alfaias das capelas.
Todos os sonhos barrocos
deslizando pelas pedras.
Pátios de seixos. Escadas.
Boticas. Pontes. Conversas.
Gente que chega e que passa.
E as idéias.
As lavras inchadas de ouro. / Os
diamantes entre as pedras. / Negros, índios e
mulatos. / Almocafres e gamelas.
Amplas casas. Longos muros.
Vida de sombras inquietas.
Pelos cantos da alcovas,
histerias de donzelas.
Lamparinas, oratórios,
bálsamos, pílulas, rezas.
Orgulhosos sobrenomes.
Intrincada parentela.
No batuque das mulatas,
a prosápia degenera:
pelas portas dos fidalgos,
na lã das noites secretas,
meninos recém-nascidos
como mendigos esperam.
Bastardias. Desavenças.
Emboscadas pela treva.
Sesmarias, salteadores.
Emaranhadas invejas.
O clero. A nobreza. O povo.
E as idéias.
E as mobílias de cabiúna.
E as cortinas amarelas.
Dom José. Dona Maria.
Fogos. Mascaradas. Festas.
Nascimentos. Batizados.
Palavras que se interpretam
nos discursos, nas saúdes...
Visitas. Sermões de exéquias.
Os estudantes que partem.
Os doutores que regressam.
(Em redor das grandes luzes,
há sempre sombras perversas.
Sinistros corvos espreitam
pelas douradas janelas.)
E há mocidade! E há prestígio.
E as idéias.
As esposas preguiçosas
na rede embalando as sestas.
Negras de peitos robustos
que os claros meninos cevam.
Arapongas, papagaios,
passarinhos da floresta.
Essa lassidão do tempo
entre imbaúbas, quaresmas,
cana, milho, bananeiras
e a brisa que o riacho encrespa.
Os rumores familiares
que a lenta vida atravessam:
elefantíase; partos;
sarna; torceduras; quedas;
sezões; picadas de cobras;
sarampos e erisipelas...
Candombeiros. Feiticeiros.
Ungüentos. Emplastos. Ervas.
Senzalas. Tronco. Chibata.
Congos. Angolas. Benguelas.
Ó imenso tumulto humano!
E as idéias.
Banquetes. Gamão. Notícias.
Livros. Gazetas. Querelas.
Alvarás. Decretos. Cartas.
A Europa a ferver em guerras.
Portugal todo de luto:
triste Rainha o governa!
Ouro! Ouro! Pedem mais ouro!
E sugestões indiscretas:
Tão longe o trono se encontra!
Quem no Brasil o tivera!
Ah, se Dom José II
põe a coroa na testa!
Uns poucos de americanos,
por umas praias desertas,
já libertaram seu povo
da prepotente Inglaterra!
Washington. Jefferson. Franklin.
(Palpita a noite, repleta
de fantasmas, de presságios...)
E as idéias.
Doces invenções da Arcádia!
Delicada primavera:
pastoras, sonetos, liras,
—
entre as ameaças austeras
de mais impostos e taxas
que uns protelam e outros negam.
Casamentos impossíveis.
Calúnias. Sátiras. Essa
paixão da mediocridade
que na sombra se exaspera.
E os versos de asas douradas,
que amor trazem e amor levam...
Anarda. Nise. Marília...
As verdades e as quimeras.
Outras leis, outras pessoas.
Novo mundo que começa.
Nova raça. Outro destino.
Planos de melhores eras.
E os inimigos atentos,
que, de olhos sinistros, velam.
E os aleives. E as denúncias.
E as idéias.
Pedro Américo - Reunião de inconfidentes
ROMANCE XXXIV
ou
DE JOAQUIM SILVÉRIO
Melhor negócio que Judas
fazes tu, Joaquim Silvério:
que ele traiu Jesus Cristo,
tu trais um simples Alferes.
Recebeu trinta dinheiros...
— e
tu muitas coisas pedes:
pensão para toda a vida,
perdão para quanto deves,
comenda para o pescoço,
honras, glória, privilégios.
E andas tão bem na cobrança
que quase tudo recebes!
Melhor negócio que Judas
fazes tu, Joaquim Silvério!
Pois ele encontra remorso,
coisa que não te acomete.
Ele topa uma figueira,
tu calmamente envelheces,
orgulhoso e impenitente,
com teus sombrios mistérios.
(Pelos caminhos do mundo,
nenhum destino se perde:
há os grandes sonhos dos homens,
e a surda força dos vermes.)
Antônio Parreiras - A Prisão de
Tiradentes
ROMANCE XLVI
ou
DO CAIXEIRO VICENTE
A mim, o que mais me doera,
se eu fora o tal Tiradentes,
era o sentir-me mordido
por esse em quem pôs os dentes.
Mal empregado trabalho,
na boca dos maldizentes!
Assim se forjam palavras,
assim se engendram culpados;
assim se traça o roteiro
de exilados e enforcados:
a língua a bater nos dentes...
Grandes medos mastigados...
O medo nos incisivos,
nos caninos, nos molares;
o medo a tremer nos queixos,
a descer aos calcanhares;
o medo a abalar a terra;
o medo a toldar os ares;
o medo a entregar amigos
à sanha dos potentados;
a fazer das testemunhas
algozes dos acusados;
a comprar os ouvidores,
os escrivães e os soldados...
Vicente Vieira da Mota,
muitos são teus descendentes!
Tu, com o rico patrão salvo,
acusas o Tiradentes.
Mordem a carne do fraco
teus rijos, certeiros dentes!
Dentes de marfim talhado,
de tão bem-feitos fazia,
dentes de víbora foram,
pela tua covardia.
Que poderosa peçonha
por dentro deles subia!
Entre os dentes o tomaste,
como animal carniceiro,
nome e fama lhe mordeste,
—
tu, cúmplice e companheiro,
sabendo que não se salva
quem não dispõe de dinheiro!
E os dentes com que o ferias
eram, afinal, os dentes
que na boca te puseram
as suas mãos diligentes.
(Isso é o que a mim mais me doera,
se eu fora o tal Tiradentes!)
ROMANCE LIII
ou
DAS PALAVRAS AÉREAS
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!
Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota...
A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora...
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam...
Detrás de grossas paredes,
de leve, quem vos desfolha?
Pareceis de tênue seda,
sem peso de ação nem de hora...
— e
estais no bico das penas,
e estais na tinta que as molha,
e estais nas mãos dos juízes,
e sois o ferro que arrocha,
e sois barco para o exílio,
e sois Moçambique e Angola!
Ai, palavras, ai, palavras,
íeis pela estrada afora,
erguendo asas muito incertas,
entre verdade e galhofa,
desejos do tempo inquieto,
promessas que o mundo sopra...
Ai, palavras, ai, palavras,
mirai-vos: que sois, agora?
—
Acusações, sentinelas,
bacamarte, algema, escolta;
— o
olho ardente da perfídia,
a velar, na noite morta;
— a
umidade dos presídios,
— a
solidão pavorosa;
—
duro ferro de perguntas,
com sangue em cada resposta;
— e
a sentença que caminha,
— e
a esperança que não volta,
— e
o coração que vacila,
— e
o castigo que galopa...
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Perdão podíeis ter sido!
—
sois madeira que se corta,
—
sois vinte degraus de escada,
—
sois um pedaço de corda...
—
sois povo pelas janelas,
cortejo, bandeiras, tropa...
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Éreis um sopro na aragem...
—
sois um homem que se enforca!
Leopoldino Faria - Leitura da sentença
ROMANCE LXXXI
ou
DOS ILUSTRES ASSASSINOS
Ó grandes oportunistas,
sobre o papel debruçados,
que calculais mundo e vida
em contos, doblas, cruzados,
que traçais vastas rubricas
e sinais entrelaçados,
com altas penas esguias
embebidas em pecados!
Ó personagens solenes
que arrastais os apelidos
como pavões auriverdes
seus rutilantes vestidos,
—
todo esse poder que tendes
confunde os vossos sentidos:
a glória, que amais, é desses
que por vós são perseguidos.
Levantai-vos dessas mesas,
saí de vossas molduras,
vede que masmorras negras,
que fortalezas seguras,
que duro peso de algemas,
que profundas sepulturas
nascidas de vossas penas,
de vossas assinaturas.
Considerai no mistério
dos humanos desatinos,
e no polo sempre incerto
dos homens e dos destinos!
Por sentenças, por decretos,
pareceríeis divinos:
e hoje sois, no tempo eterno,
como ilustres assassinos.
Ó soberbos titulares,
tão desdenhosos e altivos!
Por fictícia austeridade,
vãs razões, falsos motivos,
inutilmente matastes:
—
vossos mortos são mais vivos;
e, sobre vós, de longe, abrem
grandes olhos pensativos.
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