Número 290 - Ano 11 |
São Paulo, quarta-feira, 10 de abril de 2013 |
«E a poesia mais rica / é um
sinal de menos.» (Drummond)
* ••• | ••• «A poesia
verdadeira é a mais fingida.» (Shakespeare)
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Edna St. Vincent Millay
Caros,
Já faz alguns anos que eu pensava em trazer para o poesia.net o
trabalho da poeta americana Edna St. Vincent Millay (1892-1950). No entanto, a
ideia não se concretizava. Um dos motivos para isso era — e ainda é — a escassa
disponibilidade de poemas da autora traduzidos para o português.
Este
boletim começou a tomar forma quando reuni dois textos de Edna Millay
traduzidos, um por
Carlos
Drummond de Andrade e o outro por
Paulo Mendes Campos. Saí à cata de outras versões e não obtive êxito.
Depois, lembrei-me de que eu mesmo havia feito tentativas de traduzir alguns
poemas dela. Revisei esses exercícios e passei a ter a matéria-prima para o
boletim.
•o•
Poeta e dramaturga, Edna St. Vincent Millay nasceu no Maine e foi a primeira
mulher nos Estados Unidos a receber o Prêmio Pulitzer de poesia. Conhecida por
sua obra literária, ela também ganhou notoriedade pelo estilo de vida
anticonvencional e boêmio, além de suas diversas relações amorosas. Seu segundo
nome não é de família. Trata-se de uma homenagem ao St. Vincent Hospital, em
Nova York, que salvara a vida de um tio dela, pouco antes do nascimento da
poeta.
Com duas irmãs mais novas, Edna foi criada pela mãe que, embora pobre, tinha
apurado gosto pelos clássicos e lia para as filhas autores como Shakespeare e
John Milton. Estudiosa de línguas e literatura, Edna publicou seu primeiro
livro, Renascence and Other Poems,
em 1917. Nesse ano, mudou-se para Nova York e passou a escrever peças de teatro.
Com o pseudônimo de Nancy Boyd, também publicou contos.
Em 1920, saiu A Few Figs from
Thistles, volume de poemas que conquistou muita atenção, devido às
referências à sexualidade feminina — um escândalo para a época — e aos pontos de
vista feministas. O Prêmio Pulitzer veio em 1923, por seu quarto livro de
poesia, The Harp Weaver.
Edna Millay, que era abertamente bissexual, casou-se em 1923 com o holandês
Eugen Voissevain (1880-1949), empresário que se autoproclamava feminista. Foram
viver numa mansão rural. Voissevain passou a atuar como administrador da
carreira literária da esposa, organizando leituras e palestras para ela.
Conforme relato da própria Edna, o casal vivia como se fossem dois solteiros,
num “casamento aberto”. Ficaram juntos até a morte dele, em 1949. Ela morreria
um ano depois.
Dona de beleza extraordinária, Edna St. Vincent Millay era uma pessoa engajada
em causas políticas e sociais. Feminista, pacifista, simpatizante comunista. Em
1927, juntou-se a um grupo de intelectuais que pediam a absolvição de dois
anarquistas acusados da morte de dois policiais em Massachusetts. Era o
conhecido caso Sacco e Vanzetti. Os dois foram condenados e executados, e Millay
acabou presa. Durante a Segunda Guerra Mundial, a poeta destacou-se como
militante pacifista, levantando a voz contra o fascismo espanhol e o nazismo
alemão.
•o•
Passemos à pequena amostra de poemas de Edna Millay apresentada neste boletim.
Amor e morte são dois temas caros à poeta. Dos cinco poemas aqui apresentados,
somente dois não fazem referência direta a esses temas. O soneto “O amor não é
tudo”, na versão de Paulo Mendes Campos, trata das peripécias do relacionamento
amoroso.
Em “Canto Fúnebre sem Música”, vertido para o português por
Carlos Drummond de Andrade, ela declara sua inconformidade com a morte de
pessoas queridas. “É assim, assim há de ser, pois assim tem sido desde tempos
imemoriais”, diz o texto, que termina com um brado de revolta: “Eu sei. Porém
não estou de acordo. E não me conformo”.
No poema “Um Gesto Antigo”, a autora recorre ao casal Ulisses
(ou Odisseu) e Penélope,
personagens da Odisseia, de Homero. Como se sabe, por vinte anos
Penélope esperou o retorno do marido, que saiu para lutar na guerra de Tróia.
Não havia notícias dele, nem se sabia se estava vivo ou morto. Por causa disso,
o pai de Penélope propôs que a filha se casasse novamente.
No entanto,
fiel a Ulisses, ela disse que só se casaria quando terminasse de tecer um
sudário para o sogro. Pretendentes faziam fila à porta de sua casa. Mas, como
não desejava casar-se, ela usava de um ardil: tecia durante o dia e, à noite,
desfazia tudo às escondidas, de modo que o trabalho nunca terminava. No texto,
Edna Millay faz referência a esse estratagema. Trata-se na verdade de um poema
feminista, que zomba discretamente do pressuposto de que homem não chora. E
mostra que o bravo guerreiro Ulisses também aprendeu lições com a tecedeira
Penélope.
A quadra “Primeiro Figo” corresponde ao primeiro poema do livro
A Few Figs from Thistles (Alguns
figos dos abrolhos). Esse título faz referência a um trecho bíblico do Novo
Testamento, que pergunta: “Colhem-se, porventura, uvas de espinheiros ou figos
dos abrolhos?” (Mateus, 7:16). Contrariando a lógica do evangelista, Edna
conseguiu a proeza de colher figos poéticos de outra planta que não a figueira.
O último texto mostra a faceta política de Edna St. Vincent Millay, sua defesa
do pacifismo e, ao mesmo tempo, a ideia de resistir às tiranias, que ela
sabiamente associa à Morte. O poema “Conscientious Objector”, aqui traduzido
como “Objeção de Consciência”, veio a público em 1934. “Conscientious objector”
é a pessoa que se recusa a prestar o serviço militar, alegando razões como
liberdade de pensamento ou religião.
O indivíduo que fala no poema contrapõe-se radicalmente a fazer qualquer tipo de
acordo com a Morte. Esta aparece personificada, com inicial maiúscula, na figura
de um cavaleiro. Sim, um homem. Para nós a indesejada das gentes é mulher, mas na
tradição anglo-germânica a morte é representada por uma figura masculina: Mr.
Death em inglês, Herr Tod em alemão. Curiosamente, as referências à necessidade
de proteger pessoas perseguidas são como um pressentimento do que realmente
viria a acontecer, anos depois, na Europa conflagrada, durante a resistência ao
nazi-fascismo.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
•o•
Poeta não é
escritor?
Leio por aí, com aflitiva repetição — nos jornais e revistas, na internet e em escritos acadêmicos —, a expressão “o poeta e escritor Fulano”. Pergunto aos sensíveis e argutos leitores deste boletim: poeta não é escritor?
Se fosse “poeta e jornalista”, perfeito; ou então “poeta e dramaturgo”, “poeta e compositor”, “poeta e administrador de empresas”. Ou mesmo, como era o caso do pernambucano
Joaquim Cardozo, “poeta e engenheiro calculista de concreto”.
Creio que os únicos exemplos de poetas-não-escritores eram os praticantes do poema processo (movimento derivado da poesia concreta), que produziam páginas literárias com desenhos, fotos e símbolos não-verbais. Mas duvido que os repetidores da expressão “poeta e escritor” tenham em mente qualquer alusão ao poema processo.
Por que não dizer, com mais acerto e informação, “poeta e romancista”, “poeta e contista”, “poeta e ficcionista”, “poeta e ensaísta”? Para mim, a tautologia “poeta e escritor” só não é pior que o também repetido lugar-comum-com-cacofonia “isso não é tarefa fácil”.
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A lição de Penélope
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Edna St. Vincent Millay
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Edna St. Vincent Millay em 1914, aos 22 anos
O AMOR NÃO É TUDO
O amor não é tudo: nem carne nem
bebida, nem é sono, lar da gente,
nem a tábua lançada para quem
se afunda e volta e afunda novamente.
O amor não pode encher o pulmão forte,
pôr osso no lugar, tratar humores,
embora tantos dêem a mão à morte
(enquanto o digo) só por desamores.
Bem pode ser, na hora mais doída,
ou da minha franqueza arrependida,
buscando alívio à dor, seja capaz
de vender teu amor por minha paz
ou trocar-te a lembrança pelo pão.
Bem pode ser que o faça. Acho que não.
Tradução: Paulo
Mendes Campos
LOVE IS NOT ALL
Love is not all: it is not meat nor
drink Nor slumber nor a roof
against the rain;
Nor yet a
floating spar to men that sink
And rise and sink and rise and sink again;
Love can not fill the thickened lung
with breath,
Nor clean the
blood, nor set the fractured bone;
Yet many a man is making friends with death
Even as I speak, for lack of love
alone. It well may be that in
a difficult hour,
Pinned down
by pain and moaning for release,
Or nagged by want past resolution's power,
I might be driven to sell your love
for peace, Or trade the memory
of this night for food.
It
well may be. I do not think I would.
Ruth Chase, Edna St. Vincent Millay,
carvão e café sobre papel
CANTO FÚNEBRE SEM MÚSICA
Não me conformo em ver
baixarem à terra dura os corações amorosos, É assim, assim há de ser,
pois assim tem sido desde tempos imemoriais: Partem para a treva os
sábios e os encantadores. Coroados de louros e de lírios, partem; porém
não me conformo com isso.
Amantes, pensadores, misturados com a
terra! Unificados com a triste, indistinta poeira. Um fragmento do que
sentíeis, do que sabíeis, uma fórmula, uma frase resta — porém o melhor
se perdeu.
As réplicas vivas, rápidas, o olhar sincero, o riso, o
amor foram-se embora. Foram-se para alimento das rosas. Elegante,
ondulosa é a flor. Perfumada é a flor. Eu sei. Porém não estou de acordo.
Mais preciosa era a luz em vossos olhos do que todas as rosas do mundo.
Vão baixando, baixando, baixando à escuridão do túmulo suavemente, os
belos, os carinhosos, os bons. Tranquilamente baixam os espirituosos, os
engraçados, os valorosos. Eu sei. Porém não estou de acordo. E não me
conformo.
Tradução: Carlos Drummond de Andrade
DIRGE WITHOUT MUSIC
I am not resigned to the
shutting away of loving hearts in the hard ground. So it is, and so it
will be, for so it has been, time out of mind: Into the darkness they go,
the wise and the lovely. Crowned With lilies and with laurel they go; but
I am not resigned.
Lovers and thinkers, into the earth with you.
Be one with the dull, the indiscriminate dust. A fragment of what you
felt, of what you knew, A formula, a phrase remains, — but the best is
lost.
The answers quick and keen, the honest look, the laughter, the
love, They are gone. They are gone to feed the roses. Elegant and curled
Is the blossom. Fragrant is the blossom. I know. But I do not approve.
More precious was the light in your eyes than all the roses in the world.
Down, down, down into the darkness of the grave Gently they go, the
beautiful, the tender, the kind; Quietly they go, the intelligent, the
witty, the brave. I know. But I do not approve. And I am not resigned.
Francesco Primaticcio, italiano,
Odisseu e Penélope (1563)
UM GESTO ANTIGO
Pensei, enquanto secava os olhos na ponta do avental: Penélope também
fez isto. E mais de uma vez: não podes seguir tecendo o dia inteiro e
desfazendo tudo durante a noite. Os braços se cansam, e a nuca se
enrijece. E a manhã se aproxima, quando pensas que nunca haverá luz, e
teu marido partiu, faz anos, não sabes para onde. De repente, explodes em
lágrimas; não há outra coisa a fazer.
E pensei, enquanto secava os
olhos na ponta do avental: este é um gesto remoto, autêntico, antigo,
na melhor tradição clássica, grega. Ulisses também fez isto. Mas
apenas como um gesto — um gesto que indicava à platéia que ele estava
muito comovido para falar. Aprendeu com Penélope... Penélope, que
realmente chorava.
Tradução:
Carlos Machado
AN ANCIENT GESTURE
I thought, as I wiped my eyes on the corner of my apron: Penelope did this too. And
more than once: you can’t keep weaving all day And undoing it all through
the night; Your arms get tired, and the back of your neck gets tight;
And along towards morning, when you think it will never be light, And
your husband has been gone, and you don't know where, for years. Suddenly
you burst into tears; There is simply nothing else to do.
And I
thought, as I wiped my eyes on the corner of my apron: This is an ancient
gesture, authentic, antique, In the very best tradition, classic, Greek;
Ulysses did this too. But only as a gesture, — a gesture which implied
To the assembled throng that he was much too moved to speak. He learned
it from Penelope... Penelope, who really cried.
A casa de Edna St. Vincent Millay: hoje
é um museu
PRIMEIRO FIGO
Minha vela queima nos dois lados e não vai durar a noite inteira.
Mas ah, meus amigos, oh meus inimigos — que luz adorável ela dá!
Tradução:
Carlos Machado
FIRST FIG
My candle burns at both ends; It will not last the night; But ah,
my foes, and oh, my friends — It gives a lovely light!
OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA
Eu morrerei, mas isso é tudo que farei pela Morte. Eu a ouço
tirando o cavalo da baia; escuto as pisadas no chão do celeiro. Ela tem
pressa; tem negócios em Cuba, negócios nos Bálcãs, muitos chamados a
fazer nesta manhã. Mas eu não vou segurar a rédea enquanto ela ajusta
as correias. Ela que monte sozinha: não lhe darei apoio na subida.
Embora ela fustigue meus ombros com o chicote, não vou dizer para
onde a raposa fugiu. Com seu casco em meu peito, não vou contar onde o
garoto negro está escondido no pântano. Eu morrerei, mas isso é tudo que
farei pela Morte. Não estou em sua folha de pagamentos.
Não
contarei a ela o paradeiro de meus amigos, nem o de meus inimigos.
Ainda que me prometa muito, não darei o endereço de ninguém.
Acaso sou um espião na terra dos vivos para entregar pessoas à Morte?
Irmão, a senha e os planos de nossa cidade estão seguros comigo. Jamais,
por minha culpa, você será derrotado.
Tradução:
Carlos Machado
CONSCIENTIOUS OBJECTOR
I shall die, but
that is all that I shall do for Death. I hear him leading his horse out
of the stall; I hear the clatter on the barn-floor. He is in haste;
he has business in Cuba, business in the Balkans, many calls to make this
morning. But I will not hold the bridle while he clinches the girth.
And he may mount by himself: I will not give him a leg up.
Though he flick my shoulders with his whip, I will not tell him which way
the fox ran. With his hoof on my breast, I will not tell him where
the black boy hides in the swamp. I shall die, but that is all that I
shall do for Death; I am not on his pay-roll.
I will not tell him
the whereabout of my friends nor of my enemies either. Though he
promise me much, I will not map him the route to any man's door. Am I
a spy in the land of the living, that I should deliver men to Death?
Brother, the password and the plans of our city are safe with me; never
through me shall you be overcome.
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poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado,
2013
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• "O Amor não é Tudo"
Tradução: Paulo Mendes Campos • "Canto Fúnebre sem
Música" Tradução: Carlos Drummond de Andrade in Carlos Drummond de Andrade,
Poesia Traduzida Cosac Naify, São Paulo, 2011 • "Um
Gesto Antigo", "Primeiro Figo", "Objeção de Consciência"
Tradução: Carlos Machado
______________ * Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), "Poema-Orelha",
in A Vida Passada a Limpo, 1958 ** William Shakespeare (1554-1616),
in Como Gostais, Ato III, Cena III ______________ -
Imagem 1: Foto: Arnold Genthe - Imagem 2:
Ruth Chase, Edna
St. Vincent Millay - Imagem 3:
Francesco Primaticcio, Odisseu e Penélope (1563)
- Imagem 4:
Daniel Case, Wikimedia Commons
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