Luiz Gonzaga Neto
Caros,
Nascido em Quebrangulo, AL —
atenção: Quebrangúlo, a mesma cidade natal do mestre Graciliano Ramos —,
o jornalista e poeta Luiz Gonzaga Silva Neto (1960-) radicou-se desde criança na capital
paulista. Como poeta, participou de várias antologias e publicou até agora dois
livros-solo: Gaveta dos Corais (1998) e Céu sem Dono (2011).
Quem lê os poemas de Luiz Gonzaga Neto logo identifica a presença de um
poeta preocupado em desvendar o que há por trás de coisas aparentemente sem
mistério. É assim que vejo momentos como a troca de olhar entre o visitante do
parque Ibirapuera e o sabiá-laranjeira, no poema “Mutações”. Para estabelecer um
diálogo, o homem atribui ao pássaro uma “natureza humana” e assume para si mesmo
a capacidade de voar.
Outro exemplo dessa tentativa de desvendamento de
coisas simples está no poema “Contemplação do Abismo”. Ao olhar o precipício, o
sujeito poético pensa na possibilidade de cair e recusa, decidido, aquele
sinistro mas belo chamado da morte.
Já em “Evocação do Não-Lugar”, a
viagem do poeta se faz por dentro, e trafega por “cidades não nomeadas /
construídas no corpo, na alma”. Um poema denso, cheio de “rosas e abismos”.
Todos os poemas da miniantologia mostrada ao lado fazem parte da coletân ea
Céu sem Dono, de Luiz Gonzaga Neto, um poeta que reflete com fina
sensibilidade as inquietações da vida nas cidades em que habitamos e das cidades
que nos habitam.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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As cidades que nos habitam
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Luiz Gonzaga Neto
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MUTAÇÕES
Um sabiá-laranjeira
cerca-me no Ibirapuera em urbana asa.
Cerca-me íntimo comigo,
com a grama, o vento rasteiro e com árvores plantadas como homens em
cidades.
O pássaro me cerca como se tivesse natureza humana. Eu
o olho como se voasse.
Leonid Afremov, russo-israelense,
Onde Eu Cresci
EVOCAÇÃO DO NÃO-LUGAR
Existem cidades não nomeadas construídas no corpo, na alma. Horizontes
verticais aninhados nas lágrimas e êxtases do insepulto.
Sinos
silentes, rios dardejantes, sementes vivas e sem território, aroma
vivo de nuvem desfeita: dessa flor, só o vento sabe a voz.
Assim
nos habita o esquecimento, com suas manhãs abandonadas,
tardes-síndromes do pôr-do-sol, uma pátria de noites e silhuetas.
Terra sem nome, mãe sem rosto, onde crianças nunca crescem, onde atroz
é teu silêncio adulto, onde o sol tece adeuses e destinos.
Nessas
aldeias sem nome, sem rei, em cada uma de suas surdas ruas,
inscrevem-se os gritos postergados, as rosas e os abismos da manhã.
Manou Marzban, suíço-iraniano, Os
Banqueiros se Viram
PRESENÇA
que cabeça te pensa neste
instante se não sabes que vento de presença faz-te sentido no corpo
que partiu.
que coração percute agora em ti, quando sabes que a
dor é soberana, já não sentes a chama da partilha.
do tempo vivo
do outro que te ocupa, só tu vês a neblina em que transita e a clara
asa que se abre na cortina.
mas um tempo teu habita o outro,
matéria indelével ou adormecida, o eco do não dito e o raio do absinto.
talvez a poeira te cubra na esquina, quem sabe, num sopro, te
adivinhem.
CONTEMPLAÇÃO DO ABISMO
Os olhos da
ternura ouviam sobre o penhasco a voz da natureza viva:
— Olho
terno tua boca, teu mar, tua sedução. Recuso-te, morte.
— Que é
bela tua altura, as ondas batendo na rocha, o marulhar de teu silvo.
— Deixo-te e caminho sentindo mais doce o chão.
Leonid Afremov, Dia
Chuvoso
CERTAS MANHÃS
Para Rosa Mattos
Em certas manhãs, o futuro não chega. Nem com a vaidade do olho
em sua glória vã.
Nem a fuga do pesadelo nem o calor do sonho
falam ante o muro de hera que se ergue com o sol.
Em certas
manhãs, a chuva não semeia senão o pânico silencioso das mortes
esquecidas.
Em certas manhãs, a hora alva nos aniquila se não
criamos outro tempo além do assalto do sono.
Nessa outra manhã,
rara, não há tempo nem flor nem ouro nem o nada. Nessa, tudo é
presente.
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