Número 299 - Ano 11

São Paulo, quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

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«Só o silêncio é musical.» (Dante Milano) *

7 poetas
João Cabral, Manuel Bandeira e Carlos Drummond (no alto); Solano Trindade (centro); Cecília Meireles, Haroldo de Campos e Francisco Carvalho (embaixo) 

 

Caros,

Em outubro de 1973, durante um debate sobre música popular e poesia erudita na PUC-Rio, o poeta João Cabral de Melo Neto disse o seguinte:

“Eu não posso hoje ler nenhuma sequência de Morte e Vida Severina sem que a música me fique soando no ouvido. Hoje, estou resignado a tirar das minhas Poesias Completas o auto de Natal Morte e Vida Severina, pois creio que ele pertence mais ao Chico do que a mim”.

Obviamente, João Cabral quis mostrar-se lisonjeiro com o jovem — e já consagrado — compositor Chico Buarque, também participante do debate. No entanto, não resta a mínima dúvida: a música de Chico Buarque ajudou muito a popularizar, no palco e no rádio, o excelente e hoje clássico auto de Natal do poeta pernambucano.


Afinal, dentre todas as artes, a música é a que exibe maior capacidade de envolver as pessoas. Basta considerar que o primeiro contato com uma canção pode ser totalmente involuntário. A melodia invade os ouvidos, e pronto: você se rende a ela. É algo puramente sensorial. Com a poesia, o romance, ou qualquer arte textual, a história é bem diferente.

Não existe leitor por acaso. Leitor, mesmo, é alguém que toma a decisão de empreender a leitura. Isso implica que ele ou ela vai dedicar sua atenção ao texto. Pressupõe-se também que seja capaz de dominar os códigos ali existentes. Com a música, porém, não é necessário ter nenhum domínio. Na verdade, ela — a arte dos sons — é que domina.

Isso em parte explica o sucesso internacional de canções populares, mesmo quando têm letras em idiomas de pouca divulgação. (Estou falando, é claro, de fenômenos que vão além das erupções efêmeras e puramente contábeis que a indústria do entretenimento é capaz de fabricar.)

Portanto, ao dizer aquelas palavras, o poeta João Cabral de Melo Neto, além de lisonjear o parceiro compositor, conhecia muito bem os poderes que a música tem. Cabral, aliás, era famoso por não gostar de música.



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Uma conversa a respeito de poesia e música popular levou-me a este boletim, que reúne dez poemas brasileiros transformados em canções populares. Juntam-se, aqui, sete poetas e nove compositores: Manuel Bandeira, em parcerias com Antonio Carlos Jobim e Gilberto Gil; Carlos Drummond de Andrade, com Milton Nascimento, Belchior e Paulo Diniz; Cecília Meireles e João Cabral de Melo Neto, ambos com Chico Buarque; Solano Trindade com João Ricardo; Haroldo de Campos com Caetano Veloso; e Francisco Carvalho com Fagner.

O critério básico para figurar nessa lista foi simples: músicas de recorte popular escritas com base em poemas publicados. Portanto, ficaram de fora canções como “Azulão”, que tem letra de Bandeira e música de Jayme Ovalle. Nesse caso, Bandeira deixa bem claro em seu Itinerário de Pasárgada: “texto que escrevi para uma melodia de Jayme Ovalle”. Outro critério foi a disponibilidade do poema-canção no YouTube. Assim, pode-se falar dele com a possibilidade imediata de ouvi-lo.


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Um detalhe: vale deixar claro que considero poesia de livro e letra de música duas artes distintas, embora obviamente tenham pontos comuns. Como diz um dos mestres do ramo, o letrista mineiro Fernando Brant, as duas artes não são a mesma, mas são primas.

Edu Lobo, outro mestre da canção popular, concorda: letra e poema são artes diferentes. "Muitas vezes você pega grandes poetas que jamais fariam letra de música. (...) Fazer letra de música é outra história... Envolve musicalidade, você precisa entender disso, ter o ouvido legal, compreender como é que a frase musical se desenha". [Edu Lobo, no documentário Vinicius (2005), de Miguel Faria Jr.] 

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A seguir, 10 poemas que viraram canções. A ordem não tem nenhuma importância.



1. Drummond e
    Paulo Diniz


O primeiro poema da lista é “José”, de Carlos Drummond de Andrade. Publicado originalmente em 1942, é um dos mais conhecidos do poeta e tornou-se inclusive responsável pela adoção popular da expressão “E agora, José?”, usada no dia a dia como se fosse um refrão de domínio público. “José” foi musicado pelo compositor pop pernambucano Paulo Diniz (1940-), conhecido por um bom punhado de sucessos no início dos anos 70, mas principalmente por “Eu quero voltar pra Bahia”.

Embora se possa supor que o ouvinte de Paulo Diniz não seria exatamente o leitor de Drummond, vale registrar o empenho do compositor pernambucano de incluir textos de grandes poetas em seu trabalho. Além de “José”, ele musicou e gravou versos de Manuel Bandeira (“Vou-me Embora pra Pasárgada”); Jorge de Lima (“Essa Negra Fulô”); Gonçalves Dias (“Canção do Exílio”); e Augusto dos Anjos (“Versos Íntimos”). Mas não para aí: Gregório de Matos, Adélia Prado, Ascenso Ferreira e Ferreira Gullar também se tornaram parceiros de Paulo Diniz. Portanto, palmas para ele.


2. Cecília Meireles e
    Chico Buarque


O texto seguinte é o “Tema de Os Inconfidentes”, extraído do Romanceiro da Inconfidência (1953), de Cecília Meireles. A canção foi escrita por Chico Buarque para o espetáculo teatral Os Inconfidentes, de Flávio Rangel, que foi à ribalta em 1968. A letra consiste numa feliz montagem de trechos extraídos de três poemas do livro de Cecília: os Romances V, LIX e XXXI. Ao transcrever a letra, ao lado, assinalei quais partes vêm de quais poemas.

3. Drummond e Milton
    Nascimento


Publicada pela primeira vez em Novos Poemas (1948), a “Canção Amiga”, de Carlos Drummond de Andrade, contém uma proposta de fraternidade e convivência harmônica entre as pessoas. Três décadas depois, Milton Nascimento associou uma melodia aos versos de Drummond e gravou-os no álbum Clube da Esquina 2, um dos pontos mais altos de seu trabalho musical.


4. Solano Trindade e
    João Ricardo


Surgido em 1944 no volume Poemas de uma Vida Simples, do poeta e ativista negro pernambucano Solano Trindade (1908-1974), o texto “Tem Gente com Fome” dá voz ao trem da Estrada de Ferro Leopoldina, que vai pelo caminho denunciando as precárias condições de vida dos subúrbios cariocas. João Ricardo, líder do grupo Secos & Molhados, transformou o poema numa letra de rock, gravado por Ney Matogrosso em 1979. Trinta e cinco anos depois de publicado em livro, o grito do trem ainda fazia sentido. E, infelizmente, ainda faz agora. Talvez haja menos fome de pão, mas quantas outras fomes ainda nos  cutucam corpo e alma...

Nascido em Portugal, João Ricardo vive no Brasil desde 1964. Ele também revelou especial inclinação para musicar poemas. Os dois primeiros discos do Secos & Molhados, de 1973 e 1974, trazem canções com poemas de Cassiano Ricardo, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, Oswald de Andrade e Solano Trindade (nesse caso, “Mulher Barriguda”) e até um texto de Julio Cortázar, todos musicados por João Ricardo. Há ainda um poema de Vinicius de Moraes, “A Rosa de Hiroxima”, com melodia de Gerson Conrad, outro integrante do Secos & Molhados.


5. Haroldo de Campos
    e Caetano Veloso


Na maioria dos casos, os poemas que os compositores escolhem para musicar são peças que apresentam certa regularidade formal, o que lhes facilita a empreitada. Em “José”, embora as estrofes não sejam uniformes, predominam os versos de cinco sílabas. Em “Vou-me Embora pra Pasárgada”, todos os versos têm sete sílabas. Isso não vale para “Circuladô de Fulô”, cantiga de um cantador de feira nordestina que Caetano Veloso desentranhou de uma página do poema em prosa Galáxias, de Haroldo de Campos.

Num texto em que não há pontuação nem mesmo maiúsculas para ajudar a leitura, Veloso extraiu um refrão e desenvolveu o canto mastigado do repentista. O texto opera com duas vozes. No refrão e na última das partes musicais, quem fala é o cantador. Nas outras duas, um narrador descreve a cena.

Na transcrição do poema, mantive o padrão usado por Haroldo de Campos em Galáxias, que é o texto corrido sem parágrafos, como uma caudal sem fim. Separei, no entanto, os blocos que correspondem às partes definidas pela música de Caetano. Vale destacar que, dos quatro blocos aqui mostrados, somente o primeiro (que é também o refrão) e o segundo têm no poema original uma sequência imediata. Os outros dois, embora situados na mesma página, são trechos salteados.

As primeiras páginas de Galáxias divulgadas amplamente, incluindo o “Circuladô de Fulô”, foram publicadas no livro Xadrez de Estrelas, de Haroldo de Campos, em 1976. Contudo, o poeta data o “Circuladô” de 1966. Ele também conta que apresentou o texto a Caetano em 1969, durante o exílio do cantor em Londres. A gravação da música é de 1975.


6. Drummond e Belchior

O cantor e compositor cearense Belchior é talvez o campeão na arte de transformar poemas em canções. Em 2004, ele lançou um CD duplo, As Várias Caras do Drummond, no qual apresenta 31 canções compostas sobre versos do poeta itabirano. As caras do título se explicam também pelo fato de que o projeto inclui um álbum com 31 retratos de Drummond pintados pelo compositor. Desse CD selecionei o baião “Cota Zero”, feito em cima do micropoema modernista que está no livro de estreia do poeta, Alguma Poesia (1930). Ah, acreditem: as caras do título também têm a ver com a revista Caras, que se associou a Belchior no projeto.


7. Manuel Bandeira e
    Tom Jobim


Modernista de primeira água, Bandeira lançava mão de variados recursos musicais em sua poesia. Poemas como “Rondó do Capitão” e “Os Sinos” são daqueles que escancaradamente pedem melodia. “Trem de Ferro” (do livro Estrela da Manhã, de 1936) também se inclui nesse grupo. Vários compositores musicaram o delicioso “Café com pão / Café com pão” de Bandeira, mas a versão que aparece aqui tem a assinatura de nosso mais celebrado maestro popular, Antonio Carlos Jobim.

Nos anos 80, a cantora Olívia Hime convidou, além de Jobim, um bom punhado de compositores (Dorival Caymmi, Gilberto Gil, Francis Hime, Milton Nascimento, Joyce e outros) e pediu-lhes que compusessem melodias sobre poemas de Bandeira. Assim, Olívia montou o CD Estrela da Vida Inteira – Manuel Bandeira (1986), no qual ela canta as canções encomendadas. Inicialmente, neste boletim, destacamos a versão cantada por Olívia Hime. Contudo, essa versão tornou-se indisponível no YouTube e foi substituída por uma gravação do próprio Jobim, incluída no disco Antonio Brasileiro, de 1994, da qual Olívia também participa.


8. João Cabral e
    Chico Buarque


“Funeral de um lavrador” é uma das canções que valeram a Chico Buarque o elogio de João Cabral de Melo Neto citado no início deste boletim. Divulgada na peça de teatro e depois também gravada por Chico em 1968, a música foi adotada pela juventude como uma denúncia da miséria no Nordeste e, ao mesmo tempo, um protesto contra a ditadura.


9. Manuel Bandeira e
    Gilberto Gil


No projeto de Olívia Hime para musicar poemas de Manuel Bandeira, coube a Gilberto Gil a tarefa de tornar cantáveis os versos de “Vou-me embora pra Pasárgada”, talvez a página mais conhecida do poeta recifense. O poema, como já vimos, também ganhou melodia de Paulo Diniz — e possivelmente deve ter outras trilhas sonoras por aí. Apenas um resmungo: em sua interpretação, Olívia pronuncia PaSSárgada, quando o S entre duas vogais pede o som de Z. Som que, aliás, é o pronunciado pelo próprio Bandeira ao ler o poema.


10. Francisco Carvalho
      e Fagner


O cantor e compositor cearense Raimundo Fagner (1949-) pôs melodia em cinco poemas de seu conterrâneo Francisco Carvalho (1927-2013). As canções estão no CD Donos do Brasil, de 2004. Entre elas selecionei “O Bicho Homem”, texto do qual não consegui identificar a origem exata. Na antologia Memórias do Espantalho – Poemas Escolhidos, lançada no mesmo ano do disco, Francisco Carvalho reuniu textos de 19 de seus livros até então. Essa coletânea inclui “O Bicho Homem” e indica Centauros Urbanos como livro de origem. Consultei Centauros e o poema não está lá. E mais: a versão cantada por Fagner é mais longa, tem umas quatro ou cinco estrofes além das publicadas na antologia. É provável que Fagner tenha se baseado na versão original, depois reduzida pelo poeta nos poemas escolhidos. A transcrição ao lado é a do disco de Fagner.

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Certamente dezenas de outros poemas que viraram canções poderiam ser citados. Eu mesmo seria capaz de lembrar várias outras. "Ismália", do poeta simbolista mineiro Alphonsus de Guimaraens, tem numerosas versões cantáveis. O compositor baiano Alcyvando Luz (1937-1998) musicou poemas de Drummond, entre os quais o conhecido "Memória", de Claro Enigma. José Miguel Wisnik agregou melodia ao poema "Anoitecer", também de Drummond. Francis Hime transformou em valsa um texto de Castro Alves. E João Bosco, no samba "Pagodespell", juntou dois poemas-minuto do modernista Oswald de Andrade: "Escapulário" (melodia de Caetano Veloso) e "Relicário" (melodia de Bosco, mas com sacada de Chico Buarque para usar o poema como letra).


Um abraço, e até a próxima,


Carlos Machado


                    

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OS COMPOSITORES

Paulo Diniz Paulo Diniz
 Pesqueira-PE
(1940-2022)
 
Chico Buarque Chico Buarque
 Rio de Janeiro-RJ, 1944
 
Milton Nascimento Milton Nascimento
 Rio de Janeiro-RJ, 1942
 
João Ricardo João Ricardo
 Portugal, 1952
 
Caetano Veloso

 Caetano Veloso
 Santo Amaro-BA, 1942

 
Belchior

 Belchior
 Sobral-CE
 (1946-2017)

 
Tom Jobim Tom Jobim
 Rio de Janeiro-RJ
 (1927-1994)

 
Gilberto Gil Gilberto Gil
 Salvador-BA, 1942
 
Fagner Raimundo Fagner
 Orós-CE, 1949




NOTA

Este boletim, publicado originalmente em dezembro de 2013, já sofreu várias atualizações, especialmente em relação aos videoclipes musicais. Vários deles saíram do ar e tiveram de ser substituídos. Um exemplo é o da canção “Trem de Ferro” (Tom Jobim/ Manuel Bandeira), originalmente apresentada aqui na versão do CD Estrela da Vida Inteira, de Olívia Hime. Essa versão desapareceu do YouTube e tivemos de substituí-la pela que está no disco Antonio Brasileiro (1994), de Antonio Carlos Jobim. Também “Circuladô de Fulô” (Caetano Veloso/ Haroldo de Campos) já foi substituída mais de uma vez.




10 poemas que viraram canções

Sete poetas, nove compositores

 

 

 

Carlos Drummond de Andrade
                    + Paulo Diniz



Paulo Diniz, José (1972), música dele sobre poema de Drummond

 
JOSÉ

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio — e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

 


Cecília Meireles
                    + Chico Buarque




Chico Buarque e MPB4, tema da peça Os Inconfidentes. Música de Chico com trechos do Romanceiro da Inconfidência


TEMA DE "OS INCONFIDENTES"

Toda vez que um justo grita,
um carrasco o vem calar.
Quem não presta, fica vivo;
quem é bom, mandam matar.
Quem não presta, fica vivo;
quem é bom, mandam matar.    [do Romance V]

Foi trabalhar para todos...
— e vede o que lhe acontece!
Daqueles a quem servia,
já nenhum mais o conhece.
Quando a desgraça é profunda,
que amigo se compadece?

Foi trabalhar para todos...
Mas, por ele, quem trabalha?
Tombado fica seu corpo,
Nessa esquisita batalha.
Suas ações e seu nome,
por onde a glória os espalha?    [do Romance LIX]

Por aqui passava um homem
— e como o povo se ria! —
que reformava este mundo
de cima da montaria.

Por aqui passava um homem...
— e como o povo se ria! —
Ele, na frente, falava
e, atrás, a sorte corria...

Por aqui passava um homem
— e como o povo se ria! —
"Liberdade ainda que tarde"
nos prometia.

Por aqui passava um homem...
— e como o povo se ria! —
No entanto, à sua passagem,
Tudo era como alegria.

Por aqui passava um homem
— e como o povo se ria! —
"Liberdade ainda que tarde"
nos prometia.                          [do Romance XXXI]

Toda vez que um justo grita,
um carrasco o vem calar.
Quem não presta fica vivo;
quem é bom, mandam matar.
Quem não presta fica vivo;
quem é bom mandam matar.    [do Romance V]

 

Carlos Drummond de Andrade
                    + Milton Nascimento



Milton Nascimento canta Canção Amiga (1978), composição dele sobre poema
de Carlos Drummond de Andrade



CANÇÃO AMIGA


Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me veem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.

 

 

Solano Trindade
                    + João Ricardo



Ney Matogrosso, Tem Gente com Fome (1979). Música de João Ricardo sobre poema de Solano Trindade

 

TEM GENTE COM FOME

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Piiiii

Estação de Caxias
de novo a correr
de novo a dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar

Só nas estações
quando vai parando
começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer

Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuu.

 

 

Haroldo de Campos
                    + Caetano Veloso




Caetano Veloso canta "Circuladô de Fulô", canção criada sobre trechos do poema em prosa "Galáxias", de Haroldo de Campos



CIRCULADÔ DE FULÔ


circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não posso guiá eviva quem já me deu circuladô de fulô e ainda quem falta me dá

soando como um shamisen e feito apenas com um arame tenso um cabo e uma lata velha num fim de festafeira no pino do sol a pino mas para outros não existia aquela música não podia porque não podia popular aquela música se não canta não é popular se não afina não tintina não tarantina e no entanto puxada na tripa da miséria na tripa tensa da mais megera miséria física e doendo doendo como um prego na palma da mão um ferrugem prego cego na palma espalma da mão coração exposto como um nervo tenso retenso um renegro prego cego durando na palma polpa da mão ao sol

o povo é o inventalínguas na malícia da mestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso tenteando a travessia azeitava o eixo do sol

e não peça que eu te guie não peça despeça que eu te guie desguie que eu te peça promessa que eu te fie me deixe me esqueça me largue me desamargue que no fim eu acerto que no fim eu reverto que no fim eu conserto e para o fim me reservo e se verá que estou certo e se verá que tem jeito e se verá que está feito que pelo torto fiz direito que quem faz cesto faz cento se não guio não lamento pois o mestre que me ensinou já não dá ensinamento




Carlos Drummond de Andrade
                    + Belchior



Belchior lançou em 2004 um CD duplo com 31 poemas de Drummond musicados.
A canção Cota Zero é parte desse disco


COTA ZERO

Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?



Manuel Bandeira
                    + Tom Jobim



Tom Jobim, com Olívia Hime e coro, canta a música de Jobim para o poema "Trem de Ferro", de Manuel Bandeira


TREM DE FERRO

Café com pão
Café com pão
Café com pão

Virge Maria que foi isso maquinista?

Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força

Oô...
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
De cantar!

Oô...
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
Oô...
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matá minha sede
Oô...
Vou mimbora vou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Oô...

Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...




João Cabral de Melo Neto
                    + Chico Buarque

 


"Funeral de um Lavrador" é um trecho de Morte e Vida Severina, de João Cabral, musicado em 1965 pelo jovem compositor Chico Buarque

 

FUNERAL DE UM LAVRADOR

Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a conta menor
que tiraste em vida.

É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.

Não é cova grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.

É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.

É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.

É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.

 

 

Manuel Bandeira
                    + Giberto Gil



Olívia Hime interpreta a canção "Vou-me Embora pra Pasárgada", composta por Gilberto Gil em cima dos versos de Bandeira

 

 

VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca da Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

 


Francisco Carvalho
                    + Fagner


Musicado e gravado por Fagner em 2004, O Bicho Homem é um texto do poeta cearense Francisco Carvalho, falecido este ano





O BICHO HOMEM

Que bicho é o homem
de onde ele veio
para onde vai?
Onde é que entra
de onde é que sai?

Que raio lhe acende
a chama da fúria?
O que é que sobra
da cesta básica
de sua penúria?

Que bicho é o homem
do que se enfeita?
Que mão o ampara
no chão de enigmas
em que se deita?

Que bicho é o homem
que mama no seio
da reminiscência?
E que embala a morte
em seu devaneio?

Que bicho é esse
que carrega o fardo
de uma dor medonha?
Que sucumbe ao charco
mas ainda sonha?

Que bicho vagueia
na treva hedionda?
Que pantera esguia
será mais veloz
do que a própria sombra?

O homem que tece
as malhas da lei.
Que bicho é o homem
que transforma em pêssegos
as fezes do rei?

Que bicho é o homem
que ama e desama
que afaga e magoa?
E que às vezes lembra
um anjo em pessoa?

O homem que vai
para a eternidade
num saco de lixo.
Que bicho é o homem
de salário fixo?

Que bicho é o homem
que trapaceia?
Que às vezes pensa
Que é mais brilhante
do que a papa-ceia?

Que bicho é esse
que escreve as vogais
das cinzas do pai?
— De onde ele veio
e para onde vai?

Que bicho é o homem
que se interroga?
léguas de volúpia
sonhos e utopias
tudo se evapora?

Que bicho é o homem
de argila e colostro
que lavra e semeia?
mas só colhe insônias
em lavoura alheia?

Os rastros do homem
no vento ou na água
são rastros de fera.
Mas que bicho é esse
que se dilacera?

O homem suplica
os deuses concedem.
Que bicho é o homem
que sempre regressa
às praias do Éden?

Que bicho é o homem
que escreve poemas
na aurora agônica
e depois acende
a fogueira atômica?

Que bicho te oferta
um ramo de rimas
e à sombra dos mortos
semeia gemidos
por sete Hiroximas?

Que bicho te espreita
aos olhos dos becos
onde os cães insones
mastigam as sombras
dos antigos donos?

Que bicho é o homem
que rasteja e voa
que se ergue e cai?
— De onde ele veio
e para onde vai?

Que bicho é o homem
de onde ele veio
e para onde vai?
Onde é que entra
de onde é que sai?


poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2013





•  "José"
    Poema de Carlos Drummond de Andrade
    in José (1942)
    Música de Paulo Diniz
    in LP Paulo Diniz, E Agora José (1972)
•  "Tema de Os Inconfidentes"
    Poema de Cecília Meireles (montagem de trechos dos Romances
    V, LIX e XXXI) do Romanceiro da Inconfidência (1953)
    Música de Chico Buarque, feita para o espetáculo teatral
    Os Inconfidentes
, de Flávio Rangel, estreado em julho de 1968
    in LP Chico Buarque de Hollanda n. 4 (1970)
•  "Canção Amiga"
    Poema de Carlos Drummond de Andrade
    in Novos Poemas (1948)
    Música de Milton Nascimento
    in LP Clube da Esquina 2 (1978)
•  "Tem Gente com Fome"
    Poema de Solano Trindade
    Música de João Ricardo
    in LP Ney Matogrosso, Seu Tipo (1979)
•  "Circuladô de Fulô"
    Trechos do poema "Galáxias", de Haroldo de Campos
    in Xadrez de Estrelas (1976)
    Música de Caetano Veloso
    in LP Caetano Veloso, Joia (1975)
•  "Cota Zero"
    Poema de Carlos Drummond de Andrade
    in Alguma Poesia (1930)
    Música de Belchior
    in CD Belchior, As Várias Caras de Drummond (2004)
•  "Trem de Ferro"
    Poema de Manuel Bandeira
    in Estrela da Manhã (1936)
    Música de Antonio Carlos Jobim
    in CD Olívia Hime, Estrela da Vida Inteira - Manuel Bandeira (1986)
•  "Funeral de um Lavrador"
    Poema de João Cabral de Melo Neto
    in Morte e Vida Severina (1955)
    Música de Chico Buarque
    in LP Chico Buarque de Holanda Vol. 3 (1968)
•  "Vou-me Embora pra Pasárgada"
    Poema de Manuel Bandeira
    in Libertinagem (1930)
    Música de Gilberto Gil
    in CD Olívia Hime, Estrela da Vida Inteira - Manuel Bandeira (1986)
•  "O Bicho Homem"
    Poema de Francisco Carvalho
    Música de Fagner
    in CD Fagner, Donos do Brasil (2004)
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* Dante Milano, "Glória Morta", in Obra Reunida (2004)
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