João Cabral, Manuel Bandeira e Carlos Drummond (no alto); Solano
Trindade (centro); Cecília Meireles, Haroldo de Campos e Francisco
Carvalho (embaixo)
Caros,
Em outubro de 1973, durante um debate sobre música popular e poesia erudita na
PUC-Rio, o poeta João Cabral de Melo Neto disse o seguinte:
“Eu não posso
hoje ler nenhuma sequência de Morte e Vida Severina sem que a música me
fique soando no ouvido. Hoje, estou resignado a tirar das minhas Poesias
Completas o auto de Natal Morte e Vida Severina, pois creio que ele
pertence mais ao Chico do que a mim”.
Obviamente,
João Cabral quis mostrar-se lisonjeiro com o jovem — e já consagrado — compositor Chico Buarque,
também participante do debate. No entanto, não resta a mínima dúvida: a música de
Chico Buarque ajudou muito a popularizar, no palco e no rádio, o excelente e hoje
clássico auto de Natal do poeta pernambucano.
Afinal, dentre
todas as artes, a música é a que exibe maior capacidade de envolver as pessoas.
Basta considerar que o primeiro contato com uma canção pode ser totalmente
involuntário. A melodia invade os ouvidos, e pronto: você se rende a ela. É algo
puramente sensorial. Com a poesia, o romance, ou qualquer arte textual, a
história é bem diferente.
Não existe leitor por acaso. Leitor, mesmo, é alguém que toma a
decisão de empreender a leitura. Isso implica que ele ou ela vai dedicar sua atenção ao
texto. Pressupõe-se também que seja capaz de dominar os códigos ali
existentes. Com a música, porém, não é necessário ter nenhum domínio. Na
verdade, ela
— a arte dos sons —
é que domina.
Isso em parte explica o sucesso
internacional de canções populares, mesmo quando têm letras em idiomas de pouca
divulgação. (Estou falando, é claro, de fenômenos que vão além das erupções
efêmeras e puramente contábeis que a indústria do entretenimento é capaz de
fabricar.)
Portanto, ao dizer aquelas palavras, o poeta João Cabral de
Melo Neto, além de lisonjear o parceiro compositor, conhecia muito bem os
poderes que a música tem. Cabral, aliás, era famoso por não gostar de música.
•o•
Uma conversa a respeito de poesia e música popular levou-me a este
boletim, que reúne dez poemas brasileiros transformados em canções populares.
Juntam-se, aqui, sete poetas e nove compositores: Manuel Bandeira, em parcerias
com Antonio Carlos Jobim e Gilberto Gil; Carlos Drummond de Andrade, com Milton
Nascimento, Belchior e Paulo Diniz; Cecília Meireles e João Cabral de Melo Neto,
ambos com Chico Buarque; Solano Trindade com João Ricardo; Haroldo de Campos com
Caetano Veloso; e Francisco Carvalho com Fagner.
O critério
básico para figurar nessa lista foi simples: músicas de recorte popular escritas com base em poemas
publicados. Portanto, ficaram de fora canções como “Azulão”, que tem letra de
Bandeira e música de Jayme Ovalle. Nesse caso, Bandeira deixa bem claro em seu
Itinerário de Pasárgada: “texto que escrevi para uma melodia de Jayme
Ovalle”. Outro critério foi a disponibilidade do poema-canção no YouTube. Assim,
pode-se falar dele com a possibilidade imediata de ouvi-lo.
•o•
Um detalhe:
vale deixar claro que considero poesia de livro e letra de música duas artes
distintas, embora obviamente tenham pontos comuns. Como diz um dos mestres do ramo, o
letrista mineiro Fernando Brant, as duas artes não são a mesma, mas são primas.
Edu Lobo, outro mestre da canção popular, concorda: letra e poema são artes
diferentes. "Muitas vezes você pega grandes poetas que jamais fariam letra de
música. (...) Fazer letra de música é outra história... Envolve musicalidade,
você precisa entender disso, ter o ouvido legal, compreender como é que a frase
musical se desenha". [Edu Lobo, no documentário Vinicius (2005), de
Miguel Faria Jr.]
•o•
A seguir, 10 poemas
que viraram canções. A ordem não tem nenhuma importância.
1. Drummond e Paulo Diniz
O primeiro poema da lista é “José”, de
Carlos Drummond de Andrade. Publicado originalmente em 1942, é um dos mais
conhecidos do poeta e tornou-se inclusive responsável pela adoção popular da
expressão “E agora, José?”, usada no dia a dia como se fosse um refrão de
domínio público. “José” foi musicado pelo compositor pop pernambucano Paulo
Diniz (1940-), conhecido por um bom punhado de sucessos no início dos anos 70,
mas principalmente por “Eu quero voltar pra Bahia”. Embora se possa supor que o
ouvinte de Paulo Diniz não seria exatamente o leitor de Drummond, vale registrar
o empenho do compositor pernambucano de incluir textos de grandes poetas em seu
trabalho. Além de “José”, ele musicou e gravou versos de Manuel Bandeira
(“Vou-me Embora pra Pasárgada”); Jorge de Lima (“Essa Negra Fulô”); Gonçalves
Dias (“Canção do Exílio”); e Augusto dos Anjos (“Versos Íntimos”). Mas não para
aí: Gregório de Matos, Adélia Prado, Ascenso Ferreira e Ferreira Gullar também
se tornaram parceiros de Paulo Diniz. Portanto, palmas para ele.
2. Cecília Meireles e Chico Buarque
O texto seguinte é o “Tema de Os Inconfidentes”,
extraído do Romanceiro da Inconfidência (1953), de Cecília Meireles. A
canção foi escrita por Chico Buarque para o espetáculo teatral Os Inconfidentes,
de Flávio Rangel, que foi à ribalta em 1968. A letra consiste numa feliz
montagem de trechos extraídos de três poemas do livro de Cecília: os Romances V,
LIX e XXXI. Ao transcrever a letra, ao lado, assinalei quais partes vêm de quais
poemas.
3. Drummond e Milton Nascimento
Publicada pela primeira vez em Novos
Poemas (1948), a “Canção Amiga”, de Carlos Drummond de Andrade, contém uma
proposta de fraternidade e convivência harmônica entre as pessoas. Três décadas
depois, Milton Nascimento associou uma melodia aos versos de Drummond e
gravou-os no álbum Clube da Esquina 2, um dos pontos mais altos de seu trabalho
musical.
4. Solano Trindade e João Ricardo
Surgido em 1944 no volume Poemas de
uma Vida Simples, do poeta e ativista negro pernambucano Solano Trindade
(1908-1974), o texto “Tem Gente com Fome” dá voz ao trem da Estrada de Ferro
Leopoldina, que vai pelo caminho denunciando as precárias condições de vida dos
subúrbios cariocas. João Ricardo, líder do grupo Secos & Molhados, transformou o
poema numa letra de rock, gravado por Ney Matogrosso em 1979. Trinta e cinco
anos depois de publicado em livro, o grito do trem ainda fazia sentido. E, infelizmente, ainda faz
agora. Talvez haja menos fome de pão, mas quantas outras fomes ainda nos cutucam
corpo e alma...
Nascido em
Portugal, João Ricardo vive no Brasil desde 1964. Ele também revelou
especial inclinação para musicar poemas. Os dois primeiros discos do Secos &
Molhados, de 1973 e 1974, trazem canções com poemas de Cassiano Ricardo,
Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, Oswald de Andrade e Solano Trindade (nesse
caso, “Mulher Barriguda”) e até um texto de Julio Cortázar, todos musicados por
João Ricardo. Há ainda um poema de Vinicius de Moraes, “A Rosa de Hiroxima”, com
melodia de Gerson Conrad, outro integrante do Secos & Molhados.
5. Haroldo
de Campos e Caetano Veloso
Na maioria dos casos, os poemas que os
compositores escolhem para musicar são peças que apresentam certa regularidade
formal, o que lhes facilita a empreitada. Em “José”, embora as estrofes não
sejam uniformes, predominam os versos de cinco sílabas. Em “Vou-me Embora pra
Pasárgada”, todos os versos têm sete sílabas. Isso não vale para “Circuladô de
Fulô”, cantiga de um cantador de feira nordestina que Caetano Veloso
desentranhou de uma página do poema em prosa Galáxias, de Haroldo de Campos.
Num
texto em que não há pontuação nem mesmo maiúsculas para ajudar a leitura, Veloso
extraiu um refrão e desenvolveu o canto mastigado do repentista. O texto opera
com duas vozes. No refrão e na última das partes musicais, quem fala é o
cantador. Nas outras duas, um narrador descreve a cena.
Na transcrição
do poema, mantive o padrão usado por Haroldo de Campos em Galáxias, que é o
texto corrido sem parágrafos, como uma caudal sem fim. Separei, no entanto,
os blocos que correspondem às partes definidas pela música de Caetano. Vale
destacar que, dos quatro blocos aqui mostrados, somente o primeiro (que é também
o refrão) e o segundo têm no poema original uma sequência imediata. Os outros
dois, embora situados na mesma página, são trechos salteados.
As primeiras páginas de Galáxias
divulgadas amplamente, incluindo o “Circuladô de Fulô”, foram publicadas no
livro Xadrez de Estrelas, de Haroldo de Campos, em 1976. Contudo, o poeta data o
“Circuladô” de 1966. Ele também conta que apresentou o texto a Caetano em 1969,
durante o exílio do cantor em Londres. A gravação da música é de 1975.
6.
Drummond e Belchior O
cantor e compositor cearense Belchior é talvez o campeão na arte de
transformar poemas em canções. Em 2004, ele lançou um CD duplo, As Várias Caras
do Drummond, no qual apresenta 31 canções compostas sobre versos do poeta
itabirano. As caras do título se explicam também pelo fato de que o projeto
inclui um álbum com 31 retratos de Drummond pintados pelo compositor. Desse CD
selecionei o baião “Cota Zero”, feito em cima do micropoema modernista que está
no livro de estreia do poeta, Alguma Poesia (1930). Ah, acreditem: as
caras do
título também têm a ver com a revista Caras, que se associou a Belchior no
projeto.
7. Manuel Bandeira e Tom Jobim
Modernista de primeira água, Bandeira lançava mão de variados
recursos musicais em sua poesia. Poemas como “Rondó do Capitão” e “Os Sinos” são
daqueles que escancaradamente pedem melodia. “Trem de Ferro” (do livro Estrela da
Manhã, de 1936) também se inclui nesse grupo. Vários compositores
musicaram o delicioso “Café com pão / Café com pão” de Bandeira, mas a versão que aparece
aqui tem a assinatura de nosso mais celebrado maestro popular, Antonio Carlos Jobim.
Nos anos 80, a cantora Olívia Hime convidou, além de Jobim, um bom punhado de
compositores (Dorival Caymmi, Gilberto Gil, Francis Hime, Milton Nascimento,
Joyce e outros) e pediu-lhes que compusessem melodias sobre poemas de Bandeira.
Assim, Olívia montou o CD Estrela da Vida Inteira –
Manuel Bandeira (1986), no qual ela canta as canções encomendadas. Inicialmente,
neste boletim, destacamos a versão cantada por Olívia Hime.
Contudo, essa versão tornou-se indisponível no YouTube e foi substituída
por uma gravação do próprio Jobim, incluída no disco Antonio Brasileiro, de 1994,
da qual Olívia também participa.
8. João Cabral e Chico Buarque
“Funeral de
um lavrador” é uma das canções que valeram a Chico Buarque o elogio de João
Cabral de Melo Neto citado no início deste boletim. Divulgada na peça de teatro
e depois também gravada por Chico em 1968, a música foi adotada pela juventude
como uma denúncia da miséria no Nordeste e, ao mesmo tempo, um protesto contra a
ditadura.
9. Manuel Bandeira e Gilberto Gil
No projeto de Olívia Hime para musicar poemas de Manuel
Bandeira, coube a Gilberto Gil a tarefa de tornar cantáveis os versos de “Vou-me
embora pra Pasárgada”, talvez a página mais conhecida do poeta recifense. O
poema, como já vimos, também ganhou melodia de Paulo Diniz — e possivelmente
deve ter outras trilhas sonoras por aí. Apenas um resmungo: em sua interpretação, Olívia pronuncia
PaSSárgada, quando o S entre duas vogais pede o som de Z. Som que, aliás, é
o pronunciado pelo próprio Bandeira ao ler o poema.
10. Francisco
Carvalho e Fagner
O cantor e
compositor cearense Raimundo Fagner (1949-) pôs melodia em cinco poemas de seu
conterrâneo Francisco Carvalho (1927-2013). As canções estão no CD Donos do Brasil, de 2004. Entre
elas selecionei “O Bicho Homem”, texto do qual não consegui identificar a origem
exata. Na antologia Memórias do Espantalho – Poemas Escolhidos, lançada no mesmo
ano do disco, Francisco Carvalho reuniu textos de 19 de seus livros até então.
Essa coletânea inclui “O Bicho Homem” e indica Centauros Urbanos como livro de
origem. Consultei Centauros e o poema não está lá. E mais: a versão cantada por
Fagner é mais longa, tem umas quatro ou cinco estrofes além das publicadas na
antologia. É provável que Fagner tenha se baseado na versão original, depois
reduzida pelo poeta nos poemas escolhidos. A transcrição ao lado é a do disco de
Fagner.
•o•
Certamente dezenas de outros poemas que viraram
canções poderiam ser citados. Eu mesmo seria capaz de lembrar várias outras.
"Ismália", do poeta simbolista mineiro Alphonsus de Guimaraens, tem numerosas
versões cantáveis. O compositor baiano Alcyvando Luz (1937-1998) musicou poemas de
Drummond, entre os quais o conhecido "Memória", de Claro Enigma. José
Miguel Wisnik agregou melodia ao poema "Anoitecer", também de Drummond.
Francis Hime transformou em valsa um texto de Castro Alves. E João Bosco, no
samba "Pagodespell", juntou dois poemas-minuto do modernista Oswald de Andrade:
"Escapulário" (melodia de Caetano Veloso) e "Relicário" (melodia de Bosco, mas
com sacada de Chico Buarque para usar o poema como letra).
Este boletim, publicado originalmente em dezembro de 2013, já sofreu várias atualizações, especialmente em relação aos videoclipes musicais.
Vários deles saíram do ar e tiveram de ser substituídos. Um exemplo é o da canção “Trem de Ferro” (Tom Jobim/ Manuel Bandeira), originalmente
apresentada aqui na versão do CD Estrela da Vida Inteira, de Olívia Hime. Essa versão desapareceu do YouTube e tivemos
de substituí-la pela que está no disco Antonio Brasileiro (1994), de Antonio Carlos Jobim. Também “Circuladô de Fulô” (Caetano Veloso/
Haroldo de Campos) já foi substituída mais de uma vez.
10 poemas que viraram canções
Sete poetas, nove compositores
• Carlos Drummond de Andrade
+ Paulo Diniz
Paulo Diniz, José (1972), música dele sobre poema de Drummond
JOSÉ
E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo
sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora, você? você
que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que
ama, protesta? e agora, José?
Está sem mulher, está sem
discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode
fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio,
o bonde não veio, o riso não veio não veio a utopia e tudo
acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José?
E agora,
José? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum,
sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua
incoerência, seu ódio — e agora?
Com a chave na mão quer
abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar
secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora?
Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse a valsa
vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você
morresse... Mas você não morre, você é duro, José!
Sozinho no
escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para
se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha,
José! José, para onde?
• Cecília Meireles
+ Chico Buarque
Chico Buarque e MPB4, tema da peça Os
Inconfidentes. Música de Chico com trechos do Romanceiro da
Inconfidência
TEMA DE "OS INCONFIDENTES"
Toda vez que um justo grita,
um carrasco
o vem calar. Quem não presta, fica vivo; quem é bom, mandam matar. Quem
não presta, fica vivo; quem é bom, mandam matar.
[do Romance V]
Foi trabalhar para
todos... — e vede o que lhe acontece! Daqueles a quem servia,
já nenhum
mais o conhece. Quando a desgraça é profunda, que amigo se compadece?
Foi trabalhar para todos... Mas, por ele, quem trabalha? Tombado fica
seu corpo, Nessa esquisita batalha. Suas ações e seu nome, por onde a
glória os espalha? [do Romance
LIX]
Por aqui passava um homem — e como o povo se
ria! — que reformava este mundo de cima da montaria.
Por aqui
passava um homem... — e como o povo se
ria! — Ele, na frente, falava e,
atrás, a sorte corria...
Por aqui passava um homem — e como o povo se
ria! — "Liberdade ainda que tarde" nos prometia.
Por aqui passava
um homem... — e como o povo se
ria! — No entanto, à sua passagem, Tudo era
como alegria.
Por aqui passava um homem — e como o povo se
ria! —
"Liberdade ainda que tarde" nos prometia.
[do Romance XXXI]
Toda vez que um justo grita,
um carrasco o vem calar. Quem não presta fica vivo; quem é bom, mandam
matar. Quem não presta fica vivo; quem é bom mandam matar.
[do Romance V]
• Carlos Drummond de Andrade
+ Milton Nascimento
Milton Nascimento canta Canção Amiga
(1978), composição dele sobre poema de Carlos Drummond de Andrade
CANÇÃO AMIGA
Eu preparo uma canção em que minha mãe
se reconheça, todas as mães se reconheçam, e que fale como dois olhos.
Caminho por uma rua que passa em muitos países. Se não me veem, eu
vejo e saúdo velhos amigos.
Eu distribuo um segredo como quem
ama ou sorri. No jeito mais natural dois carinhos se procuram.
Minha vida, nossas vidas formam um só diamante. Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.
Eu preparo uma canção que faça acordar
os homens e adormecer as crianças.
• Solano
Trindade
+ João Ricardo
Ney Matogrosso, Tem Gente com Fome (1979). Música de João Ricardo sobre poema de Solano Trindade
TEM GENTE COM
FOME
Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo parece dizer tem gente com fome tem gente com
fome tem gente com fome
Piiiii
Estação de Caxias de novo a correr
de
novo a dizer tem gente com fome tem gente com
fome tem gente com fome
Tantas caras tristes
querendo chegar em algum destino em algum lugar
Só nas estações quando
vai parando começa a dizer se tem gente com fome dá
de comer se tem gente com fome dá de comer se tem gente com fome
dá de comer
Mas o freio de ar todo autoritário manda o
trem calar Psiuuuuuuuuuu.
• Haroldo de Campos
+ Caetano Veloso
Caetano Veloso canta "Circuladô de Fulô",
canção criada sobre trechos do poema em prosa "Galáxias", de Haroldo de
Campos
CIRCULADÔ DE FULÔ
circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não posso
guiá eviva quem já me deu circuladô de fulô e ainda quem falta me dá
soando como um
shamisen e feito apenas com um arame tenso um cabo e uma lata velha num fim
de festafeira no pino do sol a pino mas para outros não existia aquela
música não podia porque não podia popular aquela música se não canta não é
popular se não afina não tintina não tarantina e no entanto puxada na
tripa da miséria na tripa tensa da mais megera miséria física e doendo
doendo como um prego na palma da mão um ferrugem prego cego na palma espalma
da mão coração exposto como um nervo tenso retenso um renegro prego cego
durando na palma polpa da mão ao sol
o povo é o inventalínguas na malícia da mestria no matreiro da maravilha
no visgo do improviso tenteando a travessia azeitava o eixo do sol
e não peça que eu te guie não peça despeça que eu
te guie desguie que eu te peça promessa que eu te fie me deixe me esqueça me
largue me desamargue que no fim eu acerto que no fim eu reverto que no fim
eu conserto e para o fim me reservo e se verá que estou certo e se verá que
tem jeito e se verá que está feito que pelo torto fiz direito que quem faz
cesto faz cento se não guio não lamento pois o mestre que me ensinou já
não dá ensinamento
• Carlos Drummond de Andrade
+ Belchior
Belchior lançou em 2004 um CD duplo
com 31 poemas de Drummond musicados. A canção Cota Zero é parte desse disco
COTA ZERO
Stop. A vida parou ou foi o automóvel?
• Manuel Bandeira
+ Tom Jobim
Tom Jobim, com Olívia Hime e coro, canta a
música de Jobim para o poema "Trem de Ferro", de Manuel Bandeira
TREM DE FERRO
Café com pão Café com pão Café com pão
Virge Maria que
foi isso maquinista?
Agora sim Café com pão Agora sim Voa,
fumaça Corre, cerca Ai seu foguista Bota fogo Na fornalha Que
eu preciso Muita força Muita força Muita força
Oô... Foge, bicho Foge, povo Passa ponte
Passa poste Passa pasto Passa boi Passa boiada Passa galho De
ingazeira Debruçada No riacho Que vontade De cantar!
Oô... Quando me prendero No canaviá Cada
pé de cana Era um oficiá Oô... Menina bonita Do vestido verde
Me dá tua boca Pra matá minha sede Oô... Vou mimbora vou mimbora
Não gosto daqui Nasci no sertão Sou de Ouricuri Oô...
Vou
depressa Vou correndo Vou na toda Que só levo Pouca gente
Pouca gente Pouca gente...
•
João Cabral de Melo Neto
+ Chico Buarque
"Funeral de um Lavrador" é um trecho
de Morte e Vida Severina, de João Cabral, musicado em 1965 pelo jovem compositor Chico Buarque
FUNERAL DE UM
LAVRADOR
— Essa cova em que
estás, com palmos medida, é a conta menor que tiraste em vida.
— É de bom tamanho, nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe deste latifúndio.
— Não é cova grande, é cova medida, é a terra que querias ver
dividida.
— É uma cova grande para teu pouco defunto, mas
estarás mais ancho que estavas no mundo.
— É uma cova grande
para teu defunto parco, porém mais que no mundo te sentirás largo.
— É uma cova grande para tua carne pouca, mas a terra dada
não se abre a boca.
•
Manuel Bandeira
+ Giberto Gil
Olívia Hime interpreta a canção "Vou-me Embora pra Pasárgada",
composta por Gilberto Gil em cima dos versos de Bandeira
VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA
Vou-me embora pra Pasárgada Lá
sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que
escolherei Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra
Pasárgada Aqui eu não sou feliz Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente Que Joana a Louca da Espanha Rainha e
falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que nunca tive
E como farei ginástica Andarei de bicicleta Montarei em burro
brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar! E quando
estiver cansado Deito na beira do rio Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me
contar Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo É
outra civilização Tem um processo seguro De impedir a concepção
Tem telefone automático Tem alcaloide à vontade Tem prostitutas
bonitas Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der Vontade de me
matar — Lá sou amigo do rei
— Terei a mulher que eu quero Na cama
que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada.
•
Francisco Carvalho
+ Fagner
Musicado e gravado por Fagner em 2004,
O Bicho Homem é um texto do poeta cearense Francisco Carvalho,
falecido este ano
O BICHO
HOMEM
Que bicho é o homem
de onde ele veio para onde vai? Onde é que entra de onde é que sai?
Que raio lhe acende a chama da fúria? O que é que sobra da
cesta básica de sua penúria?
Que bicho é o homem do que se
enfeita? Que mão o ampara no chão de enigmas em que se deita?
Que bicho é o homem que mama no seio da reminiscência? E que
embala a morte em seu devaneio?
Que bicho é esse que carrega o
fardo de uma dor medonha? Que sucumbe ao charco mas ainda sonha?
Que bicho vagueia na treva hedionda? Que pantera esguia será
mais veloz do que a própria sombra?
O homem que tece as malhas
da lei. Que bicho é o homem que transforma em pêssegos as fezes do
rei?
Que bicho é o homem que ama e desama que afaga e magoa?
E que às vezes lembra um anjo em pessoa?
O homem que vai para a
eternidade num saco de lixo. Que bicho é o homem de salário fixo?
Que bicho é o homem que trapaceia? Que às vezes pensa Que é
mais brilhante do que a papa-ceia?
Que bicho é esse que escreve
as vogais das cinzas do pai? — De onde ele veio e para onde
vai?
Que bicho é o homem que se interroga? léguas de volúpia sonhos
e utopias tudo se evapora?
Que bicho é o homem de argila e
colostro que lavra e semeia? mas só colhe insônias em lavoura
alheia?
Os rastros do homem no vento ou na água são rastros de
fera. Mas que bicho é esse que se dilacera?
O homem suplica
os deuses concedem. Que bicho é o homem que sempre regressa às
praias do Éden?
Que bicho é o homem que escreve poemas na
aurora agônica e depois acende a fogueira atômica?
Que bicho te
oferta um ramo de rimas e à sombra dos mortos semeia gemidos por
sete Hiroximas?
Que bicho te espreita aos olhos dos becos onde
os cães insones mastigam as sombras dos antigos donos?
Que
bicho é o homem que rasteja e voa que se ergue e cai? — De
onde ele veio e para onde vai?
Que bicho é o homem de onde ele veio
e para onde vai? Onde é que entra de onde é que sai?
• "José"
Poema de Carlos Drummond de Andrade in José
(1942) Música de Paulo Diniz
in LP Paulo Diniz, E Agora José (1972) • "Tema de Os
Inconfidentes" Poema de Cecília Meireles (montagem de
trechos dos Romances V, LIX e XXXI) do Romanceiro da
Inconfidência (1953) Música de Chico Buarque,
feita para o espetáculo teatral Os Inconfidentes,
de Flávio Rangel, estreado em julho de 1968 in LP
Chico Buarque de Hollanda n. 4 (1970) • "Canção Amiga"
Poema de Carlos Drummond de Andrade in Novos Poemas
(1948) Música de Milton Nascimento
in LP Clube da Esquina 2 (1978) • "Tem Gente com Fome"
Poema de Solano Trindade Música de João Ricardo
in LP Ney Matogrosso, Seu Tipo (1979) • "Circuladô de Fulô"
Trechos do poema "Galáxias", de Haroldo de Campos in
Xadrez de Estrelas (1976)
Música de Caetano Veloso in LP Caetano Veloso, Joia
(1975) • "Cota Zero" Poema de Carlos Drummond de
Andrade in Alguma Poesia (1930)
Música de Belchior in CD Belchior, As Várias Caras de
Drummond (2004) • "Trem de Ferro" Poema de
Manuel Bandeira in Estrela da Manhã (1936)
Música de Antonio Carlos Jobim in CD Olívia Hime,
Estrela da Vida Inteira - Manuel Bandeira (1986) • "Funeral de um Lavrador"
Poema de João Cabral de Melo Neto in Morte e Vida
Severina (1955) Música de Chico Buarque inLP Chico Buarque de Holanda Vol. 3 (1968) • "Vou-me Embora pra Pasárgada" Poema
de Manuel Bandeira in Libertinagem (1930)
Música de Gilberto Gil in CD Olívia Hime, Estrela da
Vida Inteira - Manuel Bandeira (1986) • "O Bicho Homem" Poema de Francisco
Carvalho Música de Fagner inCDFagner, Donos do Brasil (2004)
______________ * Dante Milano, "Glória Morta", in Obra Reunida
(2004) ______________ - Imagens: Vídeos do YouTube