Donizete Galvão
Caros amigos,
Este é o primeiro poesia.net de 2014.
Normalmente, nas edições de retorno das férias, procuro sempre um poeta forte,
para começar o ano em grande estilo.
Desta vez, esse princípio se
mantém. Contudo, o espírito não é bem de celebração, mas de saudade. Perdemos,
no dia 30 de janeiro, o poeta e amigo Donizete Galvão, desaparecido subitamente
aos 58 anos.
Nascido em 1955, em Borda da Mata, no sul mineiro, Donizete
estudou administração de empresas em Santa Rita do Sapucaí, MG, e mudou-se para
São Paulo no final dos anos 70. Na capital paulista, estudou jornalismo da
Faculdade Cásper Líbero e trabalhou durante mais de duas décadas na Editora
Abril, como jornalista e redator publicitário.
Sua obra poética
compreende oito títulos publicados — a rigor, sete e meio, já que um dos
livros foi escrito em parceria. Estreou em 1988, com Azul Navalha, que
conquistou o prêmio de autor-revelação da Associação Paulista dos Críticos de
Arte (APCA) e indicação para o Prêmio Jabuti. Vieram em seguida As Faces do
Rio (1191), Do Silêncio da Pedra (1996) e A Carne e o Tempo
(1997). Este também foi indicado para os prêmios Jabuti e Ciudad de Madrid.
Seguem-se Ruminações (1999), Pelo Corpo (2002), em
parceria com Ronald Polito, Mundo Mudo (2003) e O Homem Inacabado
(2010). Além dos sete e meio, como diria Fellini, Donizete Galvão escreveu dois
livros infantis, O Sapo Apaixonado (2007), ficção, e Mania de Bicho
(2009), poesia. No mais, publicou poemas em periódicos e participou de um bom
número de antologias, algumas no exterior.
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Para compor a miniantologia ao lado, reli todos os sete e meio livros
do poeta e fiz questão de incluir pelo menos um poema de cada um deles. Foi uma
tarefa duplamente difícil. Primeiro, porque não é trivial reler os escritos de
um amigo recém-desaparecido. Depois, pela seleção em si. No final, fiquei com 12
poemas. Donizete Galvão, vale lembrar, já esteve aqui, nas edições
número 19 e
número 236.
Havia também a restrição de não repetir poemas já
publicados no boletim. Mesmo assim, decidi republicar o poema “Escoiceados”, que
abre o livro Ruminações. Já analisado por críticos e acadêmicos, esse
texto é uma referência icônica à poesia do autor e também ao jeito de ser do
homem Donizete. Ali ele mostra sua origem, de menino criado em sítio e sua
concepção de mundo.
•o•
Donizete Galvão nunca se envolveu profundamente com a cidade grande.
Com aguçado senso crítico, ele mineiramente encarnava e adaptava, cerca de
cinquenta anos depois, o espírito presente nos versos de Drummond: “No elevador
penso na roça, / na roça penso no elevador”. Na cidade, ele cultivou amigos —
muitos —, mas intimamente nela enxergava tragédias. Isso é perceptível
desde seu primeiro livro, onde está o poema "Cidade": a grande urbe, para ele, é
um “blues de impossibilidades”, “mundo artificial com sua natureza de néon”,
onde “nada de eterno palpita”.
O mesmo tom vai aparecer no poema “A
Cidade no Corpo”, da coletânea Pelo Corpo, publicada em parceria com o
também mineiro Ronald Polito. Aí, sempre contundente, ele diz: “A cidade perfura
/ o corpo / até a medula”. E conclui com esta afirmação doída: “Esta cidade:
minha cela. / Habita em mim / sem que eu habite nela”.
Nostálgico, o
mineiro Drummond registrou algo como: saí de Minas, mas Minas nunca saiu de mim.
Donizete constrói uma espécie de antítese a isso. A contragosto, reconhece que a
metrópole está dentro dele, mas recusa-se a aceitá-la. Vale observar que este
segundo poema foi publicado 14 anos depois do primeiro. Significa que o
sentimento de mal-estar urbano não arrefeceu com o tempo.
O olhar do
poeta registra de várias formas esse mal-estar. Conheço a história do último poema ao lado, “O
Asfalto, Enfim”. O poeta me
mostrou o texto e comentou sobre ele antes de ser publicado. Em 2004, todos os
jornais e TVs deram, e vocês devem lembrar-se: houve um confronto armado na
favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. Como resultado, um homem morto foi
fotografado quando era transportado num carrinho de mão. Era um rapaz de 20
anos. Impressionado com a história, Donizete escreveu o poema. "Morte de cabeça
para baixo / como deveria ter sido a vida / inteira".
Incluí o texto na
seleção como uma referência. Observador do mundo, Donizete escreveu sobre muitos
personagens comuns, como a mulher que ganhou os peixes na Sexta-Feira Santa; a
“exilada” que faz tricô e insiste em dizer que não é daqui (“Sou de Aracaju,
Sergipe”); os artistas de circo: “Anaïs, índia guarani, que é exímia
equilibrista / Carece de vitaminas e de ir urgente ao dentista”.
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Escolhi o poema “Nina Simone”, do livro As Faces do Rio,
porque sei da verdadeira devoção que Donizete cultivava por essa cantora negra
americana de jazz e blues. Em ordem cronológica, esse é apenas o primeiro texto
que fala dela. Outros viriam. Nos versos, ele tenta, por vários ângulos,
descrever a voz dessa mulher que, além de intérprete magnífica, foi tenaz
lutadora pelos direitos civis. “Voz de soda cáustica / roendo a carne / até
cavar um fosso”.
Sensível à música popular, Donizete Galvão era também
um entusiasta das artes plásticas. Em mais de um de seus poemas, aparecem
pintores que ele admirava, como o suíço-alemão Paul Klee e o russo Wassily
Kandinsky. O poema “Quarteto em K”, do livro A Carne e o Tempo, começa
com os seguintes versos: “Kandinsky, Klee, Klein, Kapoor: / quarteto com um quê
de sagrado / nos seus reinos de cabala da cor”.
Não se deduza, pela Nina
Simone e pelo Quarteto em K, que o poeta não se interessasse por arte
brasileira. Ao contrário: ele mantinha constante diálogo com pintores daqui,
entre os quais fez vários amigos. Na página seguinte à que contém o poema aos
quatro K, por exemplo, encontra-se o poema “Grafito para Renina Katz”, a
gravurista carioca. Algumas páginas mais à frente, vem o poema “Mestre Didi”,
sobre o artista popular e sacerdote baiano na tradição nagô do candomblé. Diz o
texto: “mestre Didi faz da natureza /objetos de intricado relicário, / expõe com
palhas, cauris e cor / a entranha, a treva, o sacrário”.
Apesar disso,
nos doze poemas ao lado, não incluí nenhum dos textos em que Donizete toma como
tema as artes plásticas. Mas, como homenagem, escolhi, para ilustrar este
boletim, telas de Paul Klee, um de seus pintores favoritos.
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No livro Mundo Mudo, nessa leitura que fiz agora, impressionou-me
a, digamos, premonição que tinha o poeta sobre a morte. Leia os poemas “Visita”
e “Outra Aurora”. Primeiro, é uma visita que vai chegar e cobrir o anfitrião
“com o bálsamo branco / do silêncio”. Mais adiante, vem a aurora. “Toda
crispação do corpo chega ao fim. / Virá, / virá a aurora. / Não mais para mim”.
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Chegamos ao último livro do poeta, O Homem Inacabado. Tenho a
impressão de que nessa obra ele confirma e arremata todos os principais traços
de sua trajetória como homem e poeta. Em “Resposta” e “Vida Minúscula”, o que
vemos é a sistemática confirmação da origem. É o estranhamento do menino
do interior num mundo que só se equaciona em cidades cada vez maiores.
“Resposta” é mais íntimo: explica, talvez, o modo de ser do poeta. “Na infância,
o que se grava na carne permanece. / (...) Aprende-se a viver inacabado, / a
esconder, constrangido, o corpo / nas penumbras”. Versos pungentes.
O
outro texto, “Vida Minúscula”, mostra que o poeta se acredita um ser estranho,
inclusive na arte e na poesia. Conforme o texto, “para quem nasceu destinado / à
terra / à enxada” e descobre a língua e os livros, cria-se uma espécie de
contradição irreconciliável. A pessoa se torna um ser extraviado, vagando num
mundo “que sempre lhe será estranho”.
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Mas, afinal, o que desejava o poeta? Ser pedra e, ao contrário da
volatilidade da vida na cidade, ter o duro desejo de durar. Isso ele
próprio diz sobre o livro Do Silêncio da Pedra, uma expressão tomada
por empréstimo de Rilke.
Se o desejo é ser pedra, e durar, não tenho
dúvida de que a lembrança de Donizete Galvão e, mais ainda, seus versos vão
permanecer muito tempo.
•o•
Uma das características fundamentais da pessoa do poeta era o dom de
cultivar amizades. Todos os que com ele conviveram ressaltam isso, mesmo os que
só o conheceram virtualmente, por e-mail ou, mais recentemente, pelo Facebook.
Humberto Werneck o chama de "artista do convívio" e "agregador de afetos". Tarso
de Melo o classifica como "o poeta do desconforto", embora capaz de propiciar
conforto aos outros, o tempo todo. E Guilherme Gontijo Flores resume tudo:
"Muitas vezes o melhor, em literatura, é ficar sem conhecer as pessoas, porque
em geral o homem decepciona, está sempre aquém da obra. O Donizete não".
Não são poucos os amigos a fazer esse tipo de consideração. Reuni, num boletim
complementar, uma seleção de poemas e crônicas, nos quais amigos falam sobre a
figura do poeta e de sua poesia.
Clique aqui para ver o
poesia.net n. 302-A, com esses textos.
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Que nosso amigo descanse em paz.
Mas certamente, por muito
tempo, continuaremos a registar suas presença em nossas vidas. Espero também que
quem não deu a devida atenção ao artista enquanto vivo — editoras,
imprensa, autoridades culturais — perceba agora (antes tarde do que nunca)
a importância do trabalho desse poeta.
Obrigado, Doni. Pela poesia, pela
amizade, pela lição de humildade.
Carlos Machado
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DONIZETE NA TV CULTURA
Veja um vídeo com Donizete Galvão lendo versos
e falando sobre sua poesia, numa entrevista à TV Cultura de São Paulo, gravado
em 1999:
Donizete -
TV Cultura
Um mestre do convívio
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Donizete Galvão
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De Azul Navalha
(1988)
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CIDADE
ó
blues de cruciais impossibilidades dores de amores inexistentes rosas
amarelas mortas no apartamento beijos e saliva nas tardes desérticas
ó visão depressiva do asfalto molhado prédios encardidos & a horda
dos bárbaros arquitetura de guerra de dias provisórios espelho poluído
da cidade da chuva
ó mundo artificial com sua natureza de néon
espetáculo de vitrines e exibições nada de eterno palpita no seu coração
tudo já nasce velho para ser refeito amanhã
Paul Klee, Paisagem Dramática (1928)
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De As Faces do Rio
(1990)
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NINA SIMONE
Voz de taturana que deixa um rastro de fogo por onde passa. Voz
de soda cáustica roendo a carne até cavar um fosso. Voz púrpura
das cinco chagas da paixão. Voz de aço temperado com bourbon.
Voz de avatar, de deus Vishnu, de San Juan de la Cruz cantando
blues. Voz de negra veia, voz de lobisomem uivando para a lua
cheia.
Paul Klee, Angelus Novus (1920)
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De Do Silêncio da Pedra
(1996) -----------------------------------------
SILÊNCIO
De pedra ser. Da pedra ter o duro desejo de durar Passem as
legiões com seus ossos expostos. Chorem os velhos com casacos de
naftalina. A nave branca chega ao porto e tinge de vinho o azul do
mar. O maciço de rocha, de costas para a cidade sete vezes
destruída, celebra o silêncio. A pedra cala o que nela dói.
Paul Klee, Flora na Areia (1927)
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De A
Carne e o Tempo (1997) ---------------------------------------
SEGUNDA MEDITAÇÃO DA CARNE
Véu de penugem, que se ergue ao balançar dos lençóis. Corpo nu,
iluminado pela réstia de luz que vara o quarto. Desenho de ancas,
fluidez das pernas, cálido hálito de boca entreaberta. Inda que
imperfeita, quem sabe por isso mesmo, sua figura de mulher
resplandece como pera madura. De onde flui este desejo que dói como
fratura exposta? A alma quer mais do corpo. Quer que ele se gaste.
Quer que definhe, sem nada que lhe baste. Quer que se desespere por
nunca estar saciado. Quer que ele procure em vão, sem encontrar a
resposta.
LIÇÕES DA NOITE
Antes de sair de casa, mesmo com o sol ainda alto, convém preparar
a lamparina. Enchê-la de querosene, subir-lhe um tanto o pavio e
deixá-la bem perto da porta.
Antes de se ir para a cama, todo
cuidado é pouco: há que apagar a lamparina. Sua fumaça desenha
abstrações que marcam a cal da parede e tingem de negro nossas
narinas.
Quando a luz é precária e as sombras têm poderes,
tateia-se pela casa a buscar a lamparina. A brevidade de sua chama
e a baixa luz com que nos ilumina lembram-nos de que a noite é nossa
sina.
Paul Klee, Jardins do Sul (1921)
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De Ruminações
(1999)
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ESCOICEADOS
Meu pai e eu nunca
subimos num alazão
que galopasse ao vento.
Tínhamos um burro
cinza malhado: o Ligeiro.
Foi apanhado de um conhecido
por ninharia. Chegou com fama
de sistemático, cheio de
refugos. De trote tão curto
que dava dor nas costelas.
De certa vez, caímos do
burro. Meu pai e eu.
Eu e meu pai. Embolados.
Joelhos esfolados no
pedregulho. Levamos
bons coices. Meu pai e eu.
Os dois nunca subimos na
vida.
Paul Klee, Castelo e Sol (1928)
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De Pelo Corpo
(2002)
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A CIDADE NO CORPO
A cidade
perfura o corpo até a medula. Contamina os ossos com seus
crimes. Bica o fígado, pesa sobre os rins. Imprime seu labirinto de
cinzas na árvore dos pulmões. A cidade finca raízes no espaço das
clavículas. Esta cidade: minha cela. Habita em mim sem que eu
habite nela.
Paul Klee, Jardim sob a Água (1939)
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De Mundo Mudo
(2003) -------------------------------
VISITA
Que ela chegue
sem clarins ou trombetas, entre como facho de luz pelas gretas da
janela e atravesse o quarto na sua claridade.
Que ela chegue
inesperada, como a chuva na tarde calorenta e faça subir o odor
de poeira molhada.
Que ela chegue e se deite ao meu lado, sem
que a perceba. Que me lave com água de fonte e me cubra com o
bálsamo branco do silêncio.
OUTRA AURORA
Virá virá a aurora. Não mais para mim.
O sereno
se condensa em gotas de água. O besouro inicia a lenta travessia do
canteiro. Alguém coa o primeiro café. Toda crispação do corpo chega ao
fim. Virá, virá a aurora. Não mais para mim.
Paul Klee, Mulher com Vestido de Camponesa (1940)
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De O Homem Inacabado
(2010)
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RESPOSTA
Na infância, o que se grava na carne permanece.
O
sentimento de humilhação por se sentir torto fraco desastrado
quatro-olhos.
Aprende-se a viver inacabado, a esconder, constrangido,
o corpo nas penumbras.
Como querer que o homem velho, com sua parca
energia já gasta, mude o registro consolidado? Como querer que ande
horas sob o sol e faça exercícios vigorosos como se fora um ginasta?
VIDA MINÚSCULA
para quem nasceu destinado à terra à enxada
às tarefas às lidas com o gado a descoberta da língua, para além do
uso ordinário, e dos livros traz um veneno que o aparta dos seus
extravia-se vive-se à margem deseja sem saber o quê
tateia em um
mundo que sempre lhe será estranho
O ASFALTO, ENFIM
Se toda morte é descida, a morte mais dolorida
é aquela com o corpo varado de balas debruçado sobre o carrinho de
construção que desce as valas da favela.
Morte de cabeça para
baixo como deveria ter sido a vida inteira do moleque teimoso
que à força da bala quis levantá-la do chão.
poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado,
2014
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Donizete Galvão • Azul
Navalha Edições Excelsior, São Paulo, 1988
• As Faces do Rio Edições Água Viva,
São Paulo, 1990 • Do Silêncio da Pedra Arte
Pau-Brasil, São Paulo, 1996
• A Carne e o Tempo Nankin, São
Paulo, 1997 • Ruminações Nankin, São
Paulo, 1999
• Pelo Corpo - com Ronald Polito
Alpharrabio, Santo André, 2002 • Mundo Mudo
Nankin, São Paulo, 1996
• O Homem Inacabado Portal Editora,
São Paulo, 2010
______________ * Carlos Drummond de Andrade, "Especulações em Torno da
Palavra Homem", in A Vida Passada a Limpo (1959) ______________ Todas as imagens são pinturas de Paul Klee (1879-1940), suíço naturalizado
alemão. A escolha desse pintor é também uma homenagem a Donizete Galvão, que
revelou num poema, "Quarteto em K" (de A Carne e o Tempo, 1997), sua
admiração aos artistas plásticos Wassily Kandinsky, Paul Klee, Yves Klein e
Anish Kapoor.
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