Izacyl Guimarães Ferreira
Caros,
Poeta de longo curso e largo fôlego, Izacyl Guimarães Ferreira (Rio de Janeiro,
1930) escreve e publica poesia há mais de sessenta anos. Esta é a terceira vez
que ele comparece ao poesia.net. Nos dois boletins anteriores, o foco eram
trabalhos seus que atendem a um projeto.
No primeiro (poesia.net n. 104), o foco estava no livro
Memória da Guerra, publicado em 1991 e ampliado em 2002. O livro, escrevi em 2005, “reflete sobre a
insanidade dos conflitos armados — os atuais e os de sempre”.
O segundo boletim (poesia.net n. 254) concentra-se no volume
Discurso Urbano, de
2007. Também concebido como projeto poético, esse discurso representa um passeio
histórico por cidades do mundo, desde aglomerações humanas do Mundo Antigo, como
Constantinopla e Cartago, até metrópoles atuais, a exemplo de Berlim, Chicago e
Rio de Janeiro.
O trabalho mais recente do poeta é Altamira e Alexandria (2013), seu 21º livro.
Trata-se, mais uma vez, de um projeto que celebra a memória do homem e sua ânsia
de permanecer além da morte pessoal. O poeta assume como índices dessa necessidade de permanência as pinturas da
caverna de Altamira, na Espanha, e o resgate da destruída biblioteca de
Alexandria, no Egito.
Mas desta vez o boletim segue um caminho diferente. Em vez de enfocar um projeto
de Izacyl, faz um sobrevoo sobre seu trabalho, pinçando textos de várias fases
de sua trajetória poética.
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Em “Terapia”, do livro Declaração de Bens (1980), alguém faz uma espécie de
acerto de contas com o próprio passado. Retomo aqui uma das ideias muito caras ao poeta Jorge Luis Borges: nosso
único patrimônio é a vida que passou. Desse modo, ao organizar sua “declaração de
bens”, a voz do poema conclui: “Esse passado é meu. Posso mudá-lo. / (...) secar
o mar em meu lenço / apagar palavras do pensamento”.
Em “Serra da Estrela”, quem fala é, aparentemente, um descendente de
portugueses que traça o itinerário sentimental desde aquela serra, em Portugal,
até talvez o Brasil ou outros destinos: “avós que
partiram / meninos na aventura, sem saudade / descendo impacientes pelos rios”.
Esse poema pertence ao livro Escalas, que é de 1980, assim como
Declaração de Bens. Mas aqui vale uma
explicação. Esses dois títulos não circularam de forma independente. São livros
que o poeta tinha prontos e inéditos ao reunir sua poesia no volume Os Fatos
Fictícios – Poesia (1950-1980).
Nos poemas de Na Duração da Matéria (2010), Izacyl Guimarães Ferreira dedica-se
ao minucioso exercício de criar definições. Transcrevo aqui duas dessas curiosas
criações: “Corpo” e “Ilha”. O corpo é “inteiriço aparelho / de esperança e
penúria”. Para definir a ilha, essa “flor do mar”, ele recorre a Gertrude Stein
para concluir: “uma ilha / é uma ilha é uma ilha”.
“Registro de Imóveis” e “Terceiros” são poemas nos quais o poeta exercita um
lirismo marcado pela preocupação social. Nos dois textos, aparecem os que não
têm nada. “Eles são os de fora / os de baixo / de ontem / são os que nunca ou /
não mais”.
Por fim, um diálogo lírico escrito em Nova York, extraído do livro A Curto Prazo
(1971).
•o•
Izacyl Guimarães Ferreira estreou na poesia em 1950. Em 1980, reuniu no volume Os
Fatos Fictícios toda a obra
anterior e alguns títulos inéditos. Depois disso já publicou cerca de uma dezena de livros, entre os quais
os citados Memória da Guerra
(2002), Discurso Urbano (2007),
Na Duração da Matéria (2010) e
Altamira e Alexandria (2013). Ensaísta e divulgador de poesia, o autor
publica com frequência artigos em jornais, revistas e sites
especializados.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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Esperança e penúria
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Izacyl Guimarães Ferreira
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TERAPIA
Esse passado é meu.
Posso mudá-lo. Posso esconder um corpo e duas
lágrimas, posso fechar os olhos e esperar de novo. Posso até mudar de
nome. Posso deixar no escuro uma cidade, secar o mar em meu lenço,
apagar palavras do pensamento.
(Ia escrevendo a seguir:
Este
presente hoje ainda, amanhã ontem, posso inventá-lo. O que me aflige é
que é só isso o que eu posso fazer.
Mas não era isto o que eu
queria dizer.)
Esse passado é meu. Posso salvar um sonho ou dois
enquanto a amiga enxuga os olhos. Posso gravar meu nome numa pedra,
posso dizer perdão, amor, posso deixar que um tempo morra sem morrer
por ele.
Esse passado é meu. Posso adiá-lo.
De Declaração de Bens
(1980)
Sonia Delaunay
(1885-1979), artista ucraniano-francesa,
Ritmos Cachecol
(1976)
SERRA DA ESTRELA
Trouxe
comigo rios pacientes, macieiras molhadas de verão e a disciplina de
seguir a terra.
Trouxe comigo muros empedrados, uma sabedoria de
intervalos pequenos e de invernos sempre longos.
Trouxe comigo
vinhas de sol posto, quando ruídos muito leves chegam à hora e à luz
antiga do jantar.
Trouxe comigo uns avós que partiram meninos na
aventura, sem saudade descendo impacientes pelos rios.
De
Escalas (1980)
Sonia Delaunay,
Sem Título
(1972)
CORPO
Senhor e servidor no
contorno visível que define e limita, inteiriço aparelho de
esperança e penúria. A espreita em cada espelho explorando o possível,
animal natural de aceitação e fúria. Amando, mas mortal.
ILHA
Ínsula. Flor do mar, mera estilha de terra, lua solta nas águas,
satélite e só. Única: se uma rosa é uma rosa é uma rosa uma ilha é
uma ilha é uma ilha.
De Na Duração da Matéria (2010)
Sonia Delaunay,
Mural
REGISTRO DE IMÓVEIS
o bairro
não tem mapa a rua não tem nome a casa não tem número a porta não
tem chave
a mesa não tem pratos a cama não tem pés o teto não
tem luz o tanque não tem água
o pai não tem trabalho o filho
não tem vaga a mãe não tem mais nada
a morte não tem hora a
vida não tem volta a lista não tem fim
Sonia Delaunay,
Mercado do Minho
(1915)
TERCEIROS
Eles são os que
descem e desaparecem os que já não contam já não sabem ou jamais
contaram nem souberam
Entre as paredes do palco os arames da
cerca os abismos são os que não atravessam
Eles são os de fora
os de baixo de ontem são os que nunca ou não mais
Estão à
margem nas sombras Estão nas sobras nos guetos
Aí na
terceira classe na terceira idade no terceiro mundo inumerável
Eles são os de segunda mão e nenhuma chance
Aqui ao lado em
primeiro plano
De Entre os Meus Semelhantes (1991-1994)
Sonia Delaunay,
A Cidade de Paris
(1912)
CENTRAL PARK, DIÁLOGO
— Tantos bichos amansados e esse crépito de asas.
— Corta o
gelo um outro vento sobre o risco dos patins.
— Brancos de frio os
caminhos e esse fogo pelo rosto.
— Enche a tarde um outro som
varrendo as horas do parque.
— Há uma escrita azul e leve no sulco
ausente dos barcos.
— Há uma lembrança de passos nessa corrente
espelhada.
(New York)
De A Curto Prazo (1971)
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