Número 305 - Ano 12

São Paulo, quarta-feira, 19 de março de 2014

poesia.net header

«Uma rosa é uma rosa é uma rosa.» (Gertrude Stein) *

Izacyl Guimarães
Izacyl Guimarães Ferreira

 

Caros,

Poeta de longo curso e largo fôlego, Izacyl Guimarães Ferreira (Rio de Janeiro, 1930) escreve e publica poesia há mais de sessenta anos. Esta é a terceira vez que ele comparece ao poesia.net. Nos dois boletins anteriores, o foco eram trabalhos seus que atendem a um projeto.

No primeiro (poesia.net n. 104), o foco estava no livro Memória da Guerra, publicado em 1991 e ampliado em 2002. O livro, escrevi em 2005, “reflete sobre a insanidade dos conflitos armados — os atuais e os de sempre”.

O segundo boletim (poesia.net n. 254) concentra-se no volume Discurso Urbano, de 2007. Também concebido como projeto poético, esse discurso representa um passeio histórico por cidades do mundo, desde aglomerações humanas do Mundo Antigo, como Constantinopla e Cartago, até metrópoles atuais, a exemplo de Berlim, Chicago e Rio de Janeiro.

O trabalho mais recente do poeta é Altamira e Alexandria (2013), seu 21º livro. Trata-se, mais uma vez, de um projeto que celebra a memória do homem e sua ânsia de permanecer além da morte pessoal. O poeta assume como índices dessa necessidade de permanência as pinturas da caverna de Altamira, na Espanha, e o resgate da destruída biblioteca de Alexandria, no Egito.

Mas desta vez o boletim segue um caminho diferente. Em vez de enfocar um projeto de Izacyl, faz um sobrevoo sobre seu trabalho, pinçando textos de várias fases de sua trajetória poética.


                      •o•


Em “Terapia”, do livro Declaração de Bens (1980), alguém faz uma espécie de acerto de contas com o próprio passado. Retomo aqui uma das ideias muito caras ao poeta Jorge Luis Borges: nosso único patrimônio é a vida que passou. Desse modo, ao organizar sua “declaração de bens”, a voz do poema conclui: “Esse passado é meu. Posso mudá-lo. / (...) secar o mar em meu lenço / apagar palavras do pensamento”.

Em “Serra da Estrela”, quem fala é, aparentemente, um descendente de portugueses que traça o itinerário sentimental desde aquela serra, em Portugal, até talvez o Brasil ou outros destinos: “avós que partiram / meninos na aventura, sem saudade / descendo impacientes pelos rios”.

Esse poema pertence ao livro Escalas, que é de 1980, assim como Declaração de Bens. Mas aqui vale uma explicação. Esses dois títulos não circularam de forma independente. São livros que o poeta tinha prontos e inéditos ao reunir sua poesia no volume Os Fatos Fictícios – Poesia (1950-1980).

Nos poemas de Na Duração da Matéria (2010), Izacyl Guimarães Ferreira dedica-se ao minucioso exercício de criar definições. Transcrevo aqui duas dessas curiosas criações: “Corpo” e “Ilha”. O corpo é “inteiriço aparelho / de esperança e penúria”. Para definir a ilha, essa “flor do mar”, ele recorre a Gertrude Stein para concluir: “uma ilha / é uma ilha é uma ilha”.

“Registro de Imóveis” e “Terceiros” são poemas nos quais o poeta exercita um lirismo marcado pela preocupação social. Nos dois textos, aparecem os que não têm nada. “Eles são os de fora / os de baixo / de ontem / são os que nunca ou / não mais”. Por fim, um diálogo lírico escrito em Nova York, extraído do livro A Curto Prazo (1971).

                      •o•


Izacyl Guimarães Ferreira estreou na poesia em 1950. Em 1980, reuniu no volume Os Fatos Fictícios toda a obra anterior e alguns títulos inéditos. Depois disso já publicou cerca de uma dezena de livros, entre os quais os citados Memória da Guerra (2002), Discurso Urbano (2007), Na Duração da Matéria (2010) e Altamira e Alexandria (2013). Ensaísta e divulgador de poesia, o autor publica com frequência artigos em jornais, revistas e sites especializados.



Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado

                    




                      •o•


 

Esperança e penúria

Izacyl Guimarães Ferreira

 


TERAPIA

Esse passado é meu. Posso mudá-lo.
Posso esconder um corpo e duas lágrimas,
posso fechar os olhos e esperar de novo.
Posso até mudar de nome.
Posso deixar no escuro uma cidade,
secar o mar em meu lenço,
apagar palavras do pensamento.

(Ia escrevendo a seguir:

Este presente hoje ainda, amanhã ontem,
posso inventá-lo.
O que me aflige é que é só isso o que eu
posso fazer.

Mas não era isto o que eu queria dizer.)

Esse passado é meu. Posso salvar
um sonho ou dois
enquanto a amiga enxuga os olhos.
Posso gravar meu nome numa pedra,
posso dizer perdão, amor,
posso deixar
que um tempo morra sem morrer por ele.

Esse passado é meu. Posso adiá-lo.


         De Declaração de Bens (1980)
 


Sonia Delaunay - Echarpe Rhythmes
Sonia Delaunay (1885-1979), artista ucraniano-francesa, Ritmos Cachecol (1976)



SERRA DA ESTRELA


Trouxe comigo rios pacientes,
macieiras molhadas de verão
e a disciplina de seguir a terra.

Trouxe comigo muros empedrados,
uma sabedoria de intervalos
pequenos e de invernos sempre longos.

Trouxe comigo vinhas de sol posto,
quando ruídos muito leves chegam
à hora e à luz antiga do jantar.

Trouxe comigo uns avós que partiram
meninos na aventura, sem saudade
descendo impacientes pelos rios.

         De Escalas (1980)

 

Sonia Delaunay - Sem Título (1972)
Sonia Delaunay, Sem Título (1972)




CORPO


Senhor e servidor
no contorno visível
que define e limita,
inteiriço aparelho
de esperança e penúria.
A espreita em cada espelho
explorando o possível,
animal natural
de aceitação e fúria.
Amando, mas mortal.




ILHA

Ínsula. Flor do mar,
mera estilha de terra,
lua solta nas águas,
satélite e só. Única:
se uma rosa é uma rosa
é uma rosa uma ilha
é uma ilha é uma ilha.


          De Na Duração da Matéria (2010)



Sonia Delaunay - Mural
Sonia Delaunay, Mural



REGISTRO DE IMÓVEIS


o bairro não tem mapa
a rua não tem nome
a casa não tem número
a porta não tem chave

a mesa não tem pratos
a cama não tem pés
o teto não tem luz
o tanque não tem água

o pai não tem trabalho
o filho não tem vaga
a mãe não tem mais nada

a morte não tem hora
a vida não tem volta
a lista não tem fim



Sonia Delaunay - Mercado do Minho 1915
Sonia Delaunay, Mercado do Minho (1915)

 


TERCEIROS

Eles são os que descem e
desaparecem
os que já não contam
já não sabem ou
jamais contaram nem
souberam

Entre as paredes do palco
os arames da cerca
os abismos
são os que não atravessam

Eles são os de fora
os de baixo
de ontem
são os que nunca ou
não mais

Estão à margem
nas sombras
Estão nas sobras
nos guetos

Aí na terceira classe
na terceira idade
no terceiro mundo inumerável

Eles são os de segunda mão e
nenhuma chance

Aqui ao lado
em primeiro plano


          De Entre os Meus Semelhantes (1991-1994)



Sonia Delaunay - La Ville de Paris (1912)
Sonia Delaunay, A Cidade de Paris (1912)



CENTRAL PARK, DIÁLOGO


— Tantos bichos amansados
e esse crépito de asas.

— Corta o gelo um outro vento
sobre o risco dos patins.

— Brancos de frio os caminhos
e esse fogo pelo rosto.

— Enche a tarde um outro som
varrendo as horas do parque.

— Há uma escrita azul e leve
no sulco ausente dos barcos.

— Há uma lembrança de passos
nessa corrente espelhada.

(New York)


          De A Curto Prazo (1971)



poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2014




Izacyl Guimarães Ferreira
•  "Terapia", "Central Park, Diálogo"
    Os Fatos Fictícios - Poesia (1950-1980)

    LR Editores, São Paulo, 1980
• "Registro de Imóveis"; "Terceiros"
   Antologia Poética

   Topbooks, Rio de Janeiro, 2009
•  "Ilha", "Corpo"
    Na Duração da Matéria

    Scortecci, São Paulo, 2010
______________
* Gertrude Stein, poeta americana, 1874-1946, em "Sacred Emily", 1913
______________
- Todas as imagens: Sonia Delaunay (1893-1983), francesa nascida na Ucrânia,
   artista plástica e desenhista de moda.