Número 307 - Ano 12

São Paulo, quarta-feira, 16 de abril de 2014

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«Que estará dizendo / o lábio quase humano / da orquídea?» (Cassiano Ricardo) *

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Ivo Barroso - foto Sandra Mara Franca
Ivo Barroso

 

Caros,

Quem acompanha o poesia.net há algum tempo certamente já teve a oportunidade de ver citado, mais de uma vez, o nome do poeta Ivo Barroso (1929-). Com efeito, ele já esteve em diferentes ocasiões nesta página, sempre como tradutor: de Arthur Rimbaud (n. 91); Dylan Thomas (n. 107); William Butler Yeats (n. 137); Shakespeare (n. 169); François Villon (n. 211); e Eugenio Montale (n. 246). Desta vez, no entanto, Ivo Barroso aparece aqui como autor de sua própria poesia.

Nascido em Ervália-MG, em 1929, Barroso mora no Rio de Janeiro desde 1945. Formado em direito e em línguas e literaturas neolatinas, trabalhou como assistente do editor das enciclopédias Delta-Larousse, Mirador e Século XX. Foi também editor-adjunto do Suplemento Literário do Jornal do Brasil, da revista Senhor e de Poesia Sempre (revista da Biblioteca Nacional). Em Portugal, foi editor da revista Seleções do Reader's Digest.

Como tradutor, publicou mais de 30 títulos de grandes autores, entre os quais se destacam as versões para o português da obra completa de Arthur Rimbaud (poesia completa, prosa poética e correspondência, em três volumes) e 50 sonetos de Shakespeare. Seus próprios livros de versos estão reunidos no volume A Caça Vitual e Outros Poemas, publicado em 2001.

A pequena amostra de poemas do autor mostrada ao lado foi toda extraída de seu livro A Caça Virtual. O "Soneto Estival",  mostra um movimentado dia de verão. Com decassílabos clássicos, rimas raras (cisternas / estremecer nas) e imagens pictóricas (... "os fogos do solstício / acenderam corcéis no azul da tarde", "um sol de raios duros / como um cacto de fogo"), o soneto é como um pequeno videoclipe retratando cenas da natureza.

Em "Condição", o poeta reflete filosoficamente sobre o tenso significado de um homem ter na mão uma granada pronta para ser lançada, seu conflito interno e a vontade de sumir com aquele objeto mortífero.

No poema "Nova Profissão de Fé", o poeta descreve com humor a atividade de produzir poemas na tela branca do processador de texto. Em certo momento, a luta com as palavras se torna uma atividade de caçador: "Ronda noturna essa / caçada / que nunca cessa. / No fim da madrugada / ainda acessa". Mas a tecnologia, se traz modernidade, também pode resultar em desastres. Num gesto brusco, o poeta eletrônico apaga todo o resultado de seu trabalho e perde todo o texto. Ó luta mais vã.

No poema seguinte, "Oblivion", um misterioso navio a vela lança ferros no porto do esquecimento. É como se uma pessoa ansiasse esquecer a vida vivida até aquele momento e recomeçar tudo "da forma ansiada".

Por fim, o poema "Lâmina" apresenta alguém que se entrega ao exercício de dividir em duas partes outra pessoa — possivelmente o parceiro amoroso, pondo de um lado as coisas que aprecia e de outro aquelas que o desagradam.


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Para acompanhar o que o poeta anda tramando de novo, visite o blog Gaveta do Ivo - Poesia & Tradução.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado

                    

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P.S.: O poeta e tradutor Ivo Barroso (Ervália-MG, 1929) faleceu em 5/10/2021, no Rio de Janeiro, aos 91 anos de idade.

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SUTILÍSSIMA FERIDA

Após a circulação da edição n. 306 do poesia.net, dedicada a Emily Dickinson, tive o prazer de receber a seguinte mensagem de Isa Mara Lando, uma das tradutoras citadas:


"Prezado Carlos Machado,

Gratíssima por incluir minhas traduções no boletim. Estou na excelente companhia de Augusto de Campos e Aíla de Oliveira Gomes. Se eu puder dar uma sugestão, gostaria que entrasse a tradução livre incluída nos adendos de meu livro para o poema 108, o último do boletim.

Isa Mara Lando"


Em seu livro Loucas Noites – Wild Nights, a tradutora explica: ao verter o poema 108, não encontrou, em quatro versos, uma solução que atendesse à rima original de Emily Dickinson: knife/life. Por isso, fez também uma versão livre, na qual usou a licença de incluir um verso extra para garantir a presença da rima.

Prometi a ela que, após a circulação desta nova edição do poesia.net, incluiria no site a versão "estendida" da tradução. Vejam o resultado.


O original:

Surgeons must be very careful
When they take the knife!
Underneath their fine incisions
Stirs the Culprit — Life!



A versão "oficial":

Tem cuidado, cirurgião
Ao tomar o bisturi!
Sob a tua fina incisão
Se agita a Culpada — a Vida!


A versão livre:

Tem cuidado, cirurgião
Ao tomar o bisturi!
Sob a tua fina incisão
— Sutilíssima ferida —
Se agita a Culpada — a Vida!



 

No porto do esquecimento

Ivo Barroso

 



SONETO ESTIVAL


Chegou verão e os fogos do solstício
acenderam corcéis no azul da tarde.
Os bois meditam verdes precipícios
de sombra, contornando o rijo mar de
bambuais sonoros. Uma cigarra arde
em desejos tardios. Adventícios
pássaros, cujo voo de bronze encarde
o céu translúcido, erguem-se no início
de novas fêmeas. Morna, nas cisternas,
a água esverdeou de ausência; e, pelos muros,
riscam lagartos de ouro a estremecer nas
locas o sonho em fio das aranhas.
Enquanto rola um sol de raios duros
como um cacto de fogo, das montanhas.




Georges Pierre Seurat - Uma tarde de domingo
Georges-Pierre Seurat, francês, Uma Tarde de Domingo, 1884-85



CONDIÇÃO


Na mão fechada
o homem segura
uma granada.

Dura presença
tensão amarga
que não o larga.

Ah se pudesse
deixar cair
esse projétil,

abrir os dedos
e decidido
no chão deixá-la

ou esquecê-la
(há quem esqueça
a própria face)

ou acordado:
seria um sonho
essa granada?

acostumar-se
com seu defeito
e (luva) usá-la

ou vantajoso
utilizar-se
de seu relógio;

no punho do ódio
hirto — escondê-la.

Mas ele sabe
que não o pode,
que um dia explode

na mão fechada,
sem estilhaços
rompendo os dedos

quebrando o braço,
mas lentamente
como as raízes

que se alimentam
de sua força,
desse impossível

que é soltá-la,
desse consolo
que é esquecê-la

e dessa angústia
que é transportá-la.




Georges-Pierre Seurat - Banhistas em Asnieres - 1884 Georges-Pierre Seurat, Banhistas em Asnieres, 1884




OBLIVION


Chega a sombria nave em terra estranha

A âncora estira a língua em sede e bebe
a úmida areia transbordada em peixes

Baixa o velame os suplicantes braços
anquilosados pelas calmarias

O mar secou dormiu a nave e o casco
na praia arqueja o pútrido arcabouço

Donde vem o quebrar de ondas monótono
se o mar secou se a nave empederniu

E que terras que flores serão estas
curvando os grandes halos multifólios

Ah lótus que chamais ao doce oblívion
me enredo neste ardil do esquecimento

Deixo no olvido a face o gesto e tudo
quanto a quilha cortou nas idas águas

Sugar o látex das rosáceas púrpuras
sem lar e sem destino concebido

sem pais sem língua mortas na lembrança
todas as coisas para as quais vivia

na paisagem humana das vivências
de novo construir da forma ansiada

e no mundo sem árvores sem pássaros
deixar os grãos e os átomos que trago

Donde vem donde vem a nau sombria




Georges-Pierre Seurat - Pescadores
Georges-Pierre Seurat, Pescadores, 1883



NOVA PROFISSÃO DE FÉ


O poeta já não escreve.
Sua escrita
por mais breve
ele digita.

Hoje se arrima
na frase elétrica
muito mais prática:
Adeus à rima.
Adeus à métrica.
Adeus gramática.

Como declara
ser bom poeta
na tela clara,
já náo procura
a via reta
na selva escura

E de atalaia
se pôe à espreita
de uma palavra que lhe caia
na rede branca que ele deita.

Ronda noturna essa
caçada
que nunca cessa.
No fim da madrugada
ainda acessa.

Da tela branca
noite afora
por fim arranca
a sua aurora.

No fim cansado
de tanta busca
com dissabor
toca o teclado
de forma brusca.

Nada se salva
de seu labor
de poeta.
Pois nada salva
na tela alva
que ele deleta.




LÂMINA


Como a um fruto
te decepo ao meio

o que          o que
gosto          não
em ti          gosto

metades sem sentido
ansiando pelo todo



poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2014


Foto: Sandra Mara Franca

Ivo Barroso
•  A Caça Virtual e Outros Poemas
   
Record, Rio de Janeiro, 2001

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* Cassiano Ricardo, "A Orquídea", in Um Dia Depois do Outro (1947)

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- Todas as imagens: quadros de Georges-Pierre Seurat (1859-1891),
  pintor pós-impressionista francês