Ivo Barroso
Caros,
Quem acompanha o poesia.net há algum tempo certamente
já teve a oportunidade de ver citado, mais de uma vez, o nome do poeta Ivo
Barroso (1929-). Com efeito, ele já esteve em diferentes ocasiões nesta página,
sempre como tradutor: de Arthur Rimbaud (n.
91); Dylan Thomas (n.
107); William Butler Yeats (n.
137); Shakespeare (n.
169); François Villon (n.
211); e Eugenio Montale (n.
246). Desta vez, no entanto, Ivo Barroso aparece aqui como autor de sua
própria poesia.
Nascido em Ervália-MG, em 1929, Barroso mora no Rio de Janeiro
desde 1945. Formado em direito e em línguas e literaturas neolatinas, trabalhou
como assistente do editor das enciclopédias Delta-Larousse, Mirador e Século XX.
Foi também editor-adjunto do Suplemento Literário do Jornal do
Brasil, da revista Senhor e de Poesia Sempre (revista da
Biblioteca Nacional). Em Portugal, foi editor da revista Seleções do
Reader's Digest.
Como tradutor, publicou mais de 30 títulos de
grandes autores, entre os quais se destacam as versões para o português da obra
completa de Arthur Rimbaud (poesia completa, prosa poética e correspondência, em
três volumes) e 50 sonetos de Shakespeare. Seus próprios livros de versos estão
reunidos no volume A Caça Vitual e Outros Poemas, publicado em 2001.
A pequena amostra de poemas do autor mostrada ao lado foi toda extraída
de seu livro A Caça Virtual. O "Soneto Estival", mostra um
movimentado dia de verão. Com decassílabos clássicos, rimas raras (cisternas /
estremecer nas) e imagens pictóricas (... "os fogos do solstício / acenderam
corcéis no azul da tarde", "um sol de raios duros / como um cacto de fogo"), o
soneto é como um pequeno videoclipe retratando cenas da natureza.
Em "Condição", o poeta reflete
filosoficamente sobre o tenso significado de um homem ter na mão uma granada
pronta para ser lançada, seu conflito interno e a vontade de sumir com aquele
objeto mortífero.
No poema "Nova Profissão de Fé", o poeta descreve com
humor a atividade de produzir poemas na tela branca do processador de texto. Em
certo momento, a luta com as palavras se torna uma atividade de caçador: "Ronda
noturna essa / caçada / que nunca cessa. / No fim da madrugada / ainda acessa".
Mas a tecnologia, se traz modernidade, também pode resultar em desastres. Num
gesto brusco, o poeta eletrônico apaga todo o resultado de seu trabalho e perde
todo o texto. Ó luta mais vã.
No poema seguinte, "Oblivion", um
misterioso navio a vela lança ferros no porto do esquecimento. É como se uma
pessoa ansiasse esquecer a vida vivida até aquele momento e recomeçar tudo "da
forma ansiada".
Por fim, o poema "Lâmina" apresenta alguém que se entrega ao
exercício de dividir em duas partes outra pessoa — possivelmente o
parceiro amoroso, pondo de um lado as coisas que aprecia e de outro aquelas que
o desagradam.
•o•
Para
acompanhar o que o poeta anda tramando de novo, visite o blog
Gaveta do Ivo -
Poesia & Tradução.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
•o•
P.S.: O poeta e tradutor Ivo Barroso (Ervália-MG, 1929) faleceu em 5/10/2021, no Rio de Janeiro, aos 91 anos de idade.
•o•
SUTILÍSSIMA FERIDA
Após a circulação da
edição n. 306 do poesia.net, dedicada a Emily Dickinson, tive o
prazer de receber a seguinte mensagem de Isa Mara Lando, uma das tradutoras
citadas:
"Prezado Carlos Machado,
Gratíssima por incluir
minhas traduções no boletim. Estou na excelente companhia de Augusto de Campos e
Aíla de Oliveira Gomes. Se eu puder dar uma sugestão, gostaria que entrasse a
tradução livre incluída nos adendos de meu livro para o poema 108, o último do
boletim.
Isa Mara Lando"
Em seu livro Loucas Noites – Wild
Nights, a tradutora explica: ao verter o poema 108, não encontrou, em
quatro versos, uma solução que atendesse à rima original de Emily Dickinson:
knife/life. Por isso, fez também uma versão livre, na qual usou a licença de incluir
um verso extra para garantir a presença da rima.
Prometi a ela que, após a
circulação desta nova edição do poesia.net, incluiria no site a versão
"estendida" da tradução. Vejam o resultado.
O original:
Surgeons must be very careful When they take the knife! Underneath their
fine incisions Stirs the Culprit — Life!
A versão "oficial":
Tem cuidado, cirurgião Ao tomar o bisturi! Sob a tua fina incisão
Se agita a Culpada — a Vida!
A versão livre:
Tem cuidado,
cirurgião Ao tomar o bisturi! Sob a tua fina incisão — Sutilíssima
ferida — Se agita a Culpada — a Vida!
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No porto do esquecimento
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Ivo Barroso
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SONETO ESTIVAL
Chegou verão e os fogos do solstício
acenderam corcéis no azul da tarde.
Os bois meditam verdes precipícios
de sombra, contornando o rijo mar de
bambuais sonoros. Uma cigarra arde
em desejos tardios. Adventícios
pássaros, cujo voo de bronze encarde
o céu translúcido, erguem-se no início
de novas fêmeas. Morna, nas cisternas,
a água esverdeou de ausência; e, pelos muros,
riscam lagartos de ouro a estremecer nas
locas o sonho em fio das aranhas.
Enquanto rola um sol de raios duros
como um cacto de fogo, das montanhas.
Georges-Pierre Seurat, francês, Uma Tarde de Domingo, 1884-85
CONDIÇÃO
Na mão fechada
o homem segura uma granada.
Dura presença tensão amarga que
não o larga.
Ah se pudesse deixar cair esse projétil,
abrir os dedos e decidido no chão deixá-la
ou esquecê-la (há
quem esqueça a própria face)
ou acordado: seria um sonho
essa granada?
acostumar-se com seu defeito e (luva) usá-la
ou vantajoso utilizar-se de seu relógio;
no punho do ódio
hirto — escondê-la.
Mas ele sabe que não o pode, que um dia
explode
na mão fechada, sem estilhaços rompendo os dedos
quebrando o braço, mas lentamente como as raízes
que se
alimentam de sua força, desse impossível
que é soltá-la,
desse consolo que é esquecê-la
e dessa angústia que é
transportá-la.
Georges-Pierre Seurat, Banhistas em Asnieres, 1884
OBLIVION
Chega a sombria nave em terra estranha
A âncora estira a língua
em sede e bebe a úmida areia transbordada em peixes
Baixa o velame
os suplicantes braços anquilosados pelas calmarias
O mar secou
dormiu a nave e o casco na praia arqueja o pútrido arcabouço
Donde
vem o quebrar de ondas monótono se o mar secou se a nave empederniu
E que terras que flores serão estas curvando os grandes halos
multifólios
Ah lótus que chamais ao doce oblívion me enredo neste
ardil do esquecimento
Deixo no olvido a face o gesto e tudo quanto
a quilha cortou nas idas águas
Sugar o látex das rosáceas púrpuras
sem lar e sem destino concebido
sem pais sem língua mortas na
lembrança todas as coisas para as quais vivia
na paisagem humana
das vivências de novo construir da forma ansiada
e no mundo sem
árvores sem pássaros deixar os grãos e os átomos que trago
Donde
vem donde vem a nau sombria
Georges-Pierre Seurat, Pescadores, 1883
NOVA PROFISSÃO DE FÉ
O poeta já não escreve. Sua escrita por mais breve ele digita.
Hoje se arrima na frase elétrica muito mais prática: Adeus à
rima. Adeus à métrica. Adeus gramática.
Como declara ser bom
poeta na tela clara, já náo procura a via reta na selva escura
E de atalaia se pôe à espreita de uma palavra que lhe caia na
rede branca que ele deita.
Ronda noturna essa caçada que nunca
cessa. No fim da madrugada ainda acessa.
Da tela branca
noite afora por fim arranca a sua aurora.
No fim cansado de
tanta busca com dissabor toca o teclado de forma brusca.
Nada se salva de seu labor de poeta. Pois nada salva na tela
alva que ele deleta.
LÂMINA
Como a um
fruto te decepo ao meio
o que
o que gosto não
em ti gosto
metades sem sentido ansiando pelo todo
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