Número 308 - Ano 12

São Paulo, quarta-feira, 30 de abril de 2014

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«Que diferença faz às flores / se por um segundo as contemplo?» (Fernando Campanella) *

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Roberval Pereyr
Roberval Pereyr

 

Caros,

“Se me buscarem, não vou./ Se me ofertarem, não quero. // Se me disserem quem sou, / direi que não sou, e espero.” Com versos assim, marcados por um ritmo envolvente e uma lógica que desconcerta as expectativas mais acomodadas, o poeta Roberval Pereyr vem firmando a cada passo sua posição como uma das vozes mais expressivas da atual poesia brasileira.

Nascido em Antônio Cardoso, BA, em 1953, Pereyr mora em Feira de Santana desde os 11 anos de idade. Poeta, ensaísta e professor universitário, é um dos nomes de relevo do grupo Hera, que se reuniu em Feira de Santana em torno da revista de mesmo nome no largo período de 1972 a 2005. Ao lado do poeta, pintor e também professor universitário Antonio Brasileiro, forma a dupla mais firmemente dedicada à poesia entre os autores do grupo.

Esta é a segunda vez que Roberval Pereyr aparece aqui nesta página. A primeira foi no boletim n. 35, no primeiro ano do poesia.net, em 2003. De lá até esta data, o poeta já trouxe à luz boas fornadas de poesia. Entre elas destacam-se os volumes Amálgama, de 2004, que reúne seus seis títulos iniciais; Mirantes, livro de inéditos de 2012; e 110 Poemas, antologia de 2013. A pequena seleta desta edição foi pinçada entre os poemas desses títulos mais recentes.

Não é difícil perceber que um dos eixos principais da poesia pereyriana ― traço que se mantém firme desde sua estreia ― são as indagações existenciais. Quem somos? Aonde queremos ir? Queremos mesmo, ou é só fingimento?

Talvez um de seus textos mais emblemáticos a respeito dessas inquietudes seja o poema “Canto em Si”, do livro Nas Praias do Avesso (2004): “Quem sou é sem fim porque mentimos. / Porque mentir não encara o destino, e gera / mil possíveis no impossível”. De fato, só a mentira ― assim como, de outro lado, a arte ― é capaz de engendrar possibilidades partindo da completa ausência de caminhos.

A mesma inquietação dá ao indivíduo que fala em “Soneto” (de Mirantes), a coragem de fazer esta singela declaração de revés seguida de estudada artimanha: “Briguei comigo: perdi. / Deixei que o tempo passasse. / Depois fiquei face a face / com o vencedor”. Manha de estrategista no encarniçado confronto do sujeito contra si mesmo.

Curiosamente, o lirismo reflexivo e filosófico de Roberval Pereyr não resulta numa poesia emproada e de acesso restrito. Herdeiro de certa tradição drummondiana, o poeta feirense tem os pés bem plantados na vida presente e não se distancia do chão.

Aliás, um traço que vale a pena citar: sua poesia não vende ilusões nem mitos fáceis para adoçar a travessia. Ele sabe que o caminho é tortuoso e não há sossego: “Minha paz é um pássaro sem sentido / voando sob a dúvida maior” (“A Outra Visão”, de O Súbito Cenário, 1996).

Portanto, damas e cavalheiros, preparem-se. É pura poesia, sem falsas promessas de redenção.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado

                    

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Nas praias do avesso

Roberval Pereyr

 


NUDEZ

Não quero ser simples.
Uma flor não é simples:
é uma flor. E não cede.



SOB AS MONTANHAS

As memórias — ei-las: é o que somos.
Pois o que buscamos é a perfeita forma
de um passado torto:

porque, ontem, fomos tristemente
outros — rudes
aprendizes do que nunca fomos.


De As Roupas do Nu (1981)


Helena Wierzbicki - Full of memories
Helena Wierzbicki, argentina, Repleta de Memórias




A OUTRA VISÃO 

O paraíso sempre foi perdido.
Minha paz é um pássaro sem sentido
voando sob a dúvida maior.

Apareço ante mim no dia turvo
com a foto de deus num álbum sujo
e eu de costas na foto vendo o sol.

Sem nenhum ritual exponho a foto.
Dentro dela me posto lá no fundo,
e às costas de deus, espelho dúbio,

me desnudo e declamo: somos pó.


               De O Súbito Cenário (1996)


CANTIGA DE MAL SABER

Entrei na vida de bruços
e ao avesso: de quem?

Meu anjo sou eu; meu urso,
meu urso sou eu também.

Ninguém conhece o percurso.
Ninguém.


               De Concerto de Ilhas (1997)



Helena Wierzbicki - Two energies
Helena Wierzbicki, Duas Energias



ERRATA

Onde se lê saudade,
leia-se:
soda cáustica.

Onde se lê silêncio,
sentença; infância,
escárnio.

E onde se lê (o) poema,
leia-se:
           o grande desastre.



DIÁLOGO

Dirás que somente o coração.
Eu direi: não.
E porás a culpa toda em mim.
Eu direi: sim.
E todos concordarão.
Eu direi: não.

 

Helena Wierzbicki - Secret sorrows
Helena Wierzbicki, Tristezas Secretas

 

CANTO EM SI

Eu, quem seria? O irmão
do anjo rebelado? O leão
irado contra as injustiças
                                     da selva? Quem
seria eu diante da ilusória
ânsia de pacificar humana fauna?

(Há cães nas praças, nos quintais
da alma, cem policíais em cada homem
que dança ri negocia
um resto de esperança e fim de mundo).
Mas quem seria eu que tanto busco
o que só se realiza em ser buscado,
o que não há?

Ai as lembranças, verdades
dispersas no coração, terra baldia,
de cujo fruto só me cabe a dor: quem sou,
onde me encontro neste continente
em que me traço, mapa rasurado?

Quem sou é sem fim porque mentimos.
Porque mentir não encara o destino, e gera
mil possíveis no impossível. Porque mentimos.

Mas a pergunta (ah, quem sou!) a pergunta
persiste.            E eu
(mortal, sincero: ouvidos n'alma) não durmo.



               De Nas Praias do Avesso (2004)


DECISÃO


          A Ricardo Costa

Se me buscarem, não vou.
Se me ofertarem, não quero.

Se me disserem quem sou,
direi que não sou, e espero.

Direi que esperar é tudo;
e que o que espero é nada;

que quando viajo, mudo
conforme as feições da estrada.


Helena Wierzbicki - Double vision
Helena Wierzbicki, Visão Dupla




DUO

Tenho um mestre que não conheço
e que me guia sem saber.
Não sabe meu endereço,
não sei seu nome: pra quê?

Só sei que me guia, e bem
ou mal
           me deixo reconduzir
aos mesmos vãos do real
em que me perco sem ir.

E ele, sem me dizer,
me diz que tudo está certo;
ao que eu, sem responder,
respondo: fique por perto,
mestre,
              que estou perdido.
E ele, sem existir, me diz:
sim, meu filho, sim.
E tudo perde o sentido.




SONETO

Briguei comigo: perdi.
Deixei que o tempo passasse.
Depois fiquei face a face
com o vencedor, mas fingi

pondo no rosto um sorriso
sincero porque sacado
do outro, cujo reinado
se estende a meu ser. Preciso

foi que eu me acomodasse
sempre que andei face a face
com ele, que sou eu mesmo.

Assim, toda perda é ganho,
e vice-versa: me apanho
de mim a mim, sempre a esmo.


               De Mirantes (2012)


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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2014


Roberval Pereyr
•  Poemas de As Roupas do Nu, O Súbito Cenário, Concerto de Ilhas
   
e Nas Praias do Avesso:
   
in Amálgama
    SCT/FUNCEB, Salvador, 2004
•  Mirantes
    7Letras, Rio de Janeiro, 2012

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* Fernando Campanella, em "Que diferença faz às flores"

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- Todas as imagens são pinturas de Helena Wierzbicki,
  pintora argentina contemporânea.