Roberval Pereyr
Caros,
“Se me buscarem, não vou./ Se me ofertarem, não quero. // Se me
disserem quem sou, / direi que não sou, e espero.” Com versos assim, marcados
por um ritmo envolvente e uma lógica que desconcerta as expectativas mais
acomodadas, o poeta Roberval Pereyr vem firmando a cada passo sua posição como
uma das vozes mais expressivas da atual poesia brasileira.
Nascido em
Antônio Cardoso, BA, em 1953, Pereyr mora em Feira de Santana desde os 11 anos
de idade. Poeta, ensaísta e professor universitário, é um dos nomes de relevo do
grupo Hera, que se reuniu em Feira de Santana em torno da revista de mesmo nome
no largo período de 1972 a 2005. Ao lado do poeta, pintor e também professor
universitário
Antonio Brasileiro, forma a dupla mais firmemente dedicada à poesia entre os
autores do grupo.
Esta é a segunda vez que Roberval Pereyr aparece aqui
nesta página. A primeira foi no
boletim n. 35, no primeiro ano do poesia.net, em 2003. De lá até
esta data, o poeta já trouxe à luz boas fornadas de poesia. Entre elas
destacam-se os volumes Amálgama, de 2004, que reúne seus seis títulos
iniciais; Mirantes, livro de inéditos de 2012; e 110 Poemas,
antologia de 2013. A pequena seleta desta edição foi pinçada entre os poemas
desses títulos mais recentes.
Não é difícil perceber que um dos eixos
principais da poesia pereyriana ― traço que se mantém firme desde sua estreia ―
são as indagações existenciais. Quem somos? Aonde queremos ir? Queremos mesmo,
ou é só fingimento?
Talvez um de seus textos mais emblemáticos a
respeito dessas inquietudes seja o poema “Canto em Si”, do livro Nas Praias
do Avesso (2004): “Quem sou é sem fim porque mentimos. / Porque mentir não
encara o destino, e gera / mil possíveis no impossível”. De fato, só a mentira ―
assim como, de outro lado, a arte ― é capaz de engendrar possibilidades partindo
da completa ausência de caminhos.
A mesma inquietação dá ao indivíduo
que fala em “Soneto” (de Mirantes), a coragem de fazer esta singela
declaração de revés seguida de estudada artimanha: “Briguei comigo: perdi. /
Deixei que o tempo passasse. / Depois fiquei face a face / com o vencedor”.
Manha de estrategista no encarniçado confronto do sujeito contra si mesmo.
Curiosamente, o lirismo reflexivo e filosófico de Roberval Pereyr não
resulta numa poesia emproada e de acesso restrito. Herdeiro de certa tradição
drummondiana, o poeta feirense tem os pés bem plantados na vida presente e não
se distancia do chão.
Aliás, um traço que vale a pena citar: sua poesia
não vende ilusões nem mitos fáceis para adoçar a travessia. Ele sabe que o
caminho é tortuoso e não há sossego: “Minha paz é um pássaro sem sentido /
voando sob a dúvida maior” (“A Outra Visão”, de O Súbito Cenário,
1996).
Portanto, damas e cavalheiros, preparem-se. É pura poesia, sem
falsas promessas de redenção.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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Nas praias do avesso
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Roberval Pereyr
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NUDEZ
Não quero ser simples. Uma
flor não é simples: é uma flor. E não cede.
SOB AS MONTANHAS
As memórias —
ei-las: é o que somos. Pois o que buscamos é a perfeita forma de um
passado torto:
porque, ontem, fomos tristemente outros — rudes
aprendizes do que nunca fomos.
De As Roupas do Nu (1981)
Helena Wierzbicki, argentina, Repleta de Memórias
A OUTRA VISÃO
O paraíso
sempre foi perdido. Minha paz é um pássaro sem sentido voando sob a
dúvida maior.
Apareço ante mim no dia turvo com a foto de deus num
álbum sujo e eu de costas na foto vendo o sol.
Sem nenhum ritual
exponho a foto. Dentro dela me posto lá no fundo, e às costas de deus,
espelho dúbio,
me desnudo e declamo: somos pó.
De O
Súbito Cenário (1996)
CANTIGA DE MAL SABER
Entrei na
vida de bruços e ao avesso: de quem?
Meu anjo sou eu; meu urso,
meu urso sou eu também.
Ninguém conhece o percurso. Ninguém.
De Concerto de Ilhas (1997)
Helena Wierzbicki, Duas Energias
ERRATA
Onde se lê saudade,
leia-se: soda cáustica.
Onde se lê silêncio, sentença;
infância, escárnio.
E onde se lê (o) poema, leia-se: o
grande desastre.
DIÁLOGO
Dirás que somente o coração. Eu direi: não. E porás a culpa toda
em mim. Eu direi: sim. E todos concordarão. Eu direi: não.
Helena Wierzbicki,
Tristezas Secretas
CANTO EM SI
Eu, quem
seria? O irmão do anjo rebelado? O leão irado contra as injustiças
da selva? Quem seria eu diante da ilusória ânsia de pacificar humana
fauna?
(Há cães nas praças, nos quintais da alma, cem policíais em
cada homem que dança ri negocia um resto de esperança e fim de mundo).
Mas quem seria eu que tanto busco o que só se realiza em ser buscado,
o que não há?
Ai as lembranças, verdades dispersas no coração,
terra baldia, de cujo fruto só me cabe a dor: quem sou, onde me
encontro neste continente em que me traço, mapa rasurado?
Quem sou
é sem fim porque mentimos. Porque mentir não encara o destino, e gera
mil possíveis no impossível. Porque mentimos.
Mas a pergunta (ah,
quem sou!) a pergunta persiste.
E eu (mortal, sincero: ouvidos n'alma) não durmo.
De Nas Praias do Avesso (2004)
DECISÃO
A Ricardo Costa
Se me
buscarem, não vou. Se me ofertarem, não quero.
Se me disserem quem
sou, direi que não sou, e espero.
Direi que esperar é tudo; e
que o que espero é nada;
que quando viajo, mudo conforme as
feições da estrada.
Helena Wierzbicki,
Visão Dupla
DUO
Tenho um mestre que não conheço
e que me guia sem saber. Não sabe meu endereço, não sei seu nome: pra
quê?
Só sei que me guia, e bem ou mal me deixo reconduzir
aos mesmos vãos do real em que me perco sem ir.
E ele, sem me
dizer, me diz que tudo está certo; ao que eu, sem responder,
respondo: fique por perto, mestre, que estou perdido. E ele, sem
existir, me diz: sim, meu filho, sim. E tudo perde o sentido.
SONETO
Briguei
comigo: perdi. Deixei que o tempo passasse. Depois fiquei face a face
com o vencedor, mas fingi
pondo no rosto um sorriso sincero porque
sacado do outro, cujo reinado se estende a meu ser. Preciso
foi
que eu me acomodasse sempre que andei face a face com ele, que sou eu
mesmo.
Assim, toda perda é ganho, e vice-versa: me apanho de
mim a mim, sempre a esmo.
De Mirantes (2012)
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